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Lendo: Hiroshima Palastina

Hiroshima Palastina

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Uma das formas mais eficazes para não ter de tomar posição sobre um assunto é descartá-lo através da fórmula «é uma situação complexa» (como se houvesse alguma coisa simples). Israel devia ter essas palavras escritas na bandeira, tantas são as vezes que servem para relativizar o projecto colonial, o regime de apartheid e a limpeza étnica do povo palestiniano por que são responsáveis há décadas. A complexidade desta «situação» particular é adensada por factores emocionais e históricos. Não há como não sentir um misto de perplexidade e de desconforto ao ver o Estado de Israel repetir os mesmos actos que vitimaram o povo judeu ao longo de séculos e séculos de perseguição. E não há como não recordar que o holocausto foi feito mesmo à nossa porta e com a nossa conivência. Foi ontem e os seus fantasmas ainda convivem nas fotos e nas memórias de muitas famílias.

Para além destes complexos de culpa, na tolerância ocidental escondem-se, ainda, com pouca discrição, os mesmos preconceitos e mecanismos de que se fizeram muitos genocídios. O racismo e os processos de construção da identidade que insistem em estabelecer uma diferença entre um «nós» e um «eles» continuam a alimentar comunidades. E a legitimação dos actos mais perversos por via de processos de «racionalização» sinistros não desapareceram. Israel, ainda por cima, parece-se «connosco». É vista como um bastião de democracia num mar de fundamentalismos. Participa na Eurovisão e nas competições desportivas europeias, tem gente jovem e progressista e é um paraíso queer e vegan. Podia muito bem ser na Europa. No fundo, o que torna a «situação complexa» e faz de Israel um país melhor do que os «outros» é – parafraseando os punks israelitas Dir Yassin – «pedir desculpa quando mata inocentes»; é os seus «soldados terem olhos azuis e escreverem poesia»; é usar tecnologia militar avançada e não ter esconderijos nem recorrer a pedras, mísseis toscos e bombistas suicidas (in “All our planes have returned safely”).

Talvez ajude deixarmos de nos deslumbrar com alegadas afinidades «identitárias» e largar a insistência em confundir a história do povo judaico com o Estado de Israel. O assunto perde parte da sua complexidade se recusarmos cair na armadilha da «culpa» e da «vergonha» que tantas vezes serve os interesses dos mais poderosos. E é de poder que se trata. Episódios como esses fazem parte de um mesmo contínuo irredutível a religiões ou culturas: fazem parte de uma história de poder. Só a presença de forças mais insidiosas permite compreender que aqueles que ainda têm visíveis as feridas de um passado recente possam fazer do holocausto que as provocou um pechisbeque, como alguém dizia na televisão há dias. Nenhum Yom HaShoah (Dia da Memória do Holocausto) evitará que o passado se repita enquanto não forem destruídas as estruturas e os mitos que sustêm a persistência das formas de dominação e de autoridade que alimentaram os actos mais tenebrosos da história da humanidade.

AkrabutPosto isto, é possível compreender que quem vive num Estado militar e seja doutrinado no ódio para com o vizinho desde que nasce possa acreditar que reside num Oásis protegido por um muro. O que não é tão compreensível é que os cidadãos do «mundo ocidental» dito democrático dêem as cambalhotas mais espalhafatosas para justificar cada crime cometido por Israel. Especialmente quando, há décadas, nos chegam vozes do território israelita que não demonstram a mesma tolerância com o governo do sítio onde vivem e nasceram. Foi, aliás, na cena punk-hardcore israelita que se concentraram algumas das expressões mais dissonantes. Particularmente pujante nos anos 90, dela jorraram palavras e acções que poucos no Ocidente se atrevem a pronunciar com medo de serem rapidamente estigmatizados e apodados de «anti-semitas». A banda que mais terá contribuído para a explosão da cena punk-hardcore israelita foi Nekhei Na’atza, surgida na primeira metade da década de 90 e movida por um profundo desprezo por um Estado fundado na religião e no militarismo (o primeiro EP, editado 1994, intitulava-se Renounce Judaism). Em 1997, tornar-se-ia a primeira banda punk a lançar um LP em Israel, Hail the New Regime. Na capa, o então recém-nomeado primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, o mesmo que anos depois voltaria a ocupar o cargo e nele permanece até aos nossos dias, aparecia a fazer uma saudação romana. Um dos legados mais importantes de Nekhei Na’atza foi a influência que teve na renúncia e na deserção do serviço militar obrigatório por uma parte da juventude israelita que circulava no meio underground, o que a tornou um alvo frequente das autoridades. Das suas cinzas surgiriam os já referidos Dir Yassin, banda que viria a alcançar maior projecção internacional. Formada em 1997, fez de cada uma das suas músicas a garantia de que não soariam apenas «músicas calmas e bonitas» enquanto as bombas continuassem a cair (in “Brotherly Mass Grave”). Na denúncia destemida da ocupação da Palestina pelo Estado Israelita não hesitavam em usar a palavra «genocídio» e em denunciar o «complexo do holocausto» como uma desculpa (in “Independence Day”).

Foi na cena punk-hardcore israelita que se concentraram algumas das expressões mais dissonantes.

Nos dias que correm a virulência da «cena» punk israelita parece ter esmorecido. Para isso terá contribuído o crescimento da extrema-direita na sociedade e no Estado israelitas e uma dinâmica demográfica em que muitos dos seus integrantes emigraram para fugir ao serviço militar, para além de um número maior de imigrantes entrou no país em busca da «terra prometida». Para Federico Gomez, vocalista dos Nekhei Na’atza, a sociedade israelita é hoje mais intolerante e racista do que era nos anos 90. Como consequência, a crítica à ocupação da Palestina tornou-se mais dissimulada e a mensagem mais críptica e focada na vida dentro do Estado de Israel. Algumas das excepções podem ser encontradas na compilação Standing Together Against Annexation, que foi lançada em 2020 e reúne 38 bandas de punk israelitas, na sua maioria com letras em hebraico. Entre elas encontramos nomes como Akrabut, Kids Insane (que já tocaram em Portugal), Useless ID, Deaf Chonky e MooM. No geral, confirmam-se as referências menos directas à ocupação e as críticas dirigem-se mais para a «doutrina do medo» e para a «cultura de violência» de um Estado militar. Mas em bandas como os Akrabut, na música “Hiroshima Palastina” (também nome do EP que lançaram em 2018), encontramos preservada a intransigência dos anos 90. Há pouco, em plena ofensiva israelita, deixavam nas redes sociais uma pequena frase: «ninguém viverá em paz enquanto a Palestina não for livre». O que nos recorda que os bombardeamentos podem ter parado entretanto, mas a paz continua a ser uma miragem.

Bandas e compilações como estas podem parecer pouco mais do que pedras lançadas a tanques. Mas, para além do impacto que têm no próprio contexto asfixiante em que existem, recordam-nos que o Estado de Israel nunca agradou sequer a muitos daqueles que pretende representar. Para os mais púdicos, talvez ajude a classificar aquilo que fazem nos termos adequados e que de complexo tem pouco:«“limpeza étnica», «colonização» e «apartheid». Libertem a Palestina!

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #31, Julho|Setembro 2021.


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Written by

Diogo Duarte

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