Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Ocupar as ondas, ou porque importa a rádio na era dos podcasts
Em Dezembro de 2020, uma das mais longevas rádios livres da Catalunha, a Contrabanda, foi obrigada a parar a sua emissão FM por ordem judicial do Tribunal Superior de Justiça da Catalunha. Faltavam poucos dias para celebrar 30 anos no ar. A sentença contra as emissoras «piratas» (ali entendidas como emissoras comerciais que emitem sem licença) resultou de denúncias da Associação Catalã de Rádio, levando por arrasto, e «de forma negligente», meios livres e sem fins lucrativos como esta rádio histórica, isenta de publicidade e de subsídios (públicos ou privados), e que subsiste exclusivamente através de quotas, carolice e militância dos seus associados.
Num manifesto divulgado no seu website, a «rádio livre, não comercial, assembleária e autogerida » anunciou que se viu obrigada a desmontar a antena e restante equipamento técnico do centro emissor de Turó de la Rovira – um ponto alto da cidade que, para além de oferecer vistas panorâmicas sobre a cidade, serve também como ponto de emissão livre desde 1991. O colectivo denuncia os interesses das «corporações mediáticas» e a falta de vontade política das administrações públicas, incluindo o Ajuntament de Barcelona (liderado pelos esquerdistas Barcelona en Comú desde 2015) a quem acusa de «aproveitar uma decisão judicial sobre a reordenação das torres de emissão para levar avante parte do plano urbanístico» para aquela zona.
Em defesa da liberdade de emissão e de expressão
«O espectro é um domínio público e o acesso em igualdade de condições é um direito», remata um comunicado que surgiu poucos dias após a retirada da antena do ar, ecoando o manifesto da Contrabanda e em defesa da emissão FM comunitária (subscrito até à data de fecho desta edição por cerca de 170 pessoas e organizações). Embora a teoria sobre os direitos à liberdade de expressão por qualquer meio de reprodução esteja muito longe daquilo que acontece na realidade, de facto os direitos humanos compreendem uma dimensão individual e outra colectiva, incluindo o direito à comunicação: todas as pessoas devem poder expressar-se individualmente e em grupo. Sendo os meios comunitários, «livres» ou autogeridos, aqueles que mais favorecem esta expressão, há que velar para que não sejam eclipsados ou anulados pelo duopólio dos meios públicos e comerciais – assim o afirmava já em 1980 a UNESCO, no relatório «Um mundo, muitas vozes».
O manifesto da Contrabanda reivindica uma série de medidas concretas para garantir os direitos dos «espaços comprometidos com a Comunicação Livre», como a reserva de um terço do espectro radiofónico para as rádios livres, a disponibilização de espaços públicos para a instalação de antenas e transmissores de meios não comerciais e o acesso a licenças de emissão. Sem estas garantias, as rádios livres ficam condenadas à clandestinidade e constantemente ameaçadas de serem escorraçadas da sua emissão.
Exercer o direito à comunicação implica o planeamento de frequências no espectro, mas desde há décadas que as poucas frequências comunitárias que ainda restam no espectro radiofónico em Barcelona têm sido alvo de um cerco. Trata-se da «ameaça típica dos comuns naturais e urbanos», como afirma o comunicado em solidariedade com a Contrabanda, comparando a questão primordial do acesso ao espectro com a usurpação dos montes e dos rios, ou a privatização dos jardins e praças das cidades. Por mais sentido que possa fazer a ideia de ondas de rádio como um bem comum – aqui entendido como um recurso de acesso aberto autogerido pelas comunidades – quaisquer tentativas de transformar esse desígnio em consequências têm tido o silêncio como resposta. Talvez aqueles de nós que sentem a ideia de comum e trabalham na rádio para além da instituição formal tenham pouca paciência e energia para estas lutas. Talvez os reguladores saibam isso.
«Continuar a emitir pela internet é uma opção mas não a solução.»
(Des)enquadramentos legais: uma longa luta para aceder ao espectro?
As rádios livres possibilitam a tomada de consciência e a acção colectiva sobre assuntos que afectam a vida quotidiana, já que partem de contextos locais onde certos grupos de afinidade se encontram (vizinhos, colectivos, etc.) e põem em prática as suas vontades e a sua liberdade de expressão. A participação é a essência destes meios, assim como a ausência de interesses lucrativos. Enquanto a «indústria cultural» e os meios de comunicação de massas se focam na geração de consumo e entretenimento, os meios de comunicação livres possibilitam o envolvimento real das pessoas, seja através da criação de programas e conteúdos, seja através das contribuições que permitem sustentar financeiramente os próprios meios.
Organizam-se horizontalmente, tomam decisões por consenso e esforçam-se por estar atentos e desprender-se de certos hábitos autoritários que parecem estar atrelados a uma certa procura por eficiência que está inculcada em nós. Em última análise, uma rádio comercial gera um serviço para terceiros, enquanto uma rádio livre ou comunitária se gera a ela própria através da participação dos seus membros.
A ideia de Rádios Livres, tida em absoluto, só é viável se admitirmos uma cacofonia nos nossos receptores: cada emissor de rádio como um participante numa peça sonora em constante improvisação que acontece de modo único em cada receptor. O cenário é esteticamente aliciante, mas carece daquilo a que estamos habituados a nomear como comunicação. Regrar “tecnicamente” as vozes, para que elas se possam assumir e distinguir, é a pedra de toque para toda a confusão seguinte. Trata-se de regulação ou de entendimento entre os que partilham um certo espaço – técnico, formal – de comunicação?
Portugal: nem lei nem foras-da-lei?
Antes de tentar a resposta, três dados. Primeiro, não existe qualquer enquadramento legal para as rádios comunitárias em Portugal. A Lei da Rádio de 1988 é omissa quanto à dimensão comunitária e à possibilidade de existência de um sector que não seja público/estatal nem privado/comercial. Isto fez com que a onda de radiofonia livre, pirata, que se propagou na década de 1980, praticamente se eclipsasse com a entrada em vigor de um sistema que obriga à constituição formal, a requisitos técnicos sofisticados e ao pagamento de taxas, competindo com meios comerciais.
Segundo, hoje em dia, em Portugal, a Entidade Reguladora da Comunicação está a obrigar todas as iniciativas comunicantes que se denominem “rádios” a prestar declarações e garantias como se de uma rádio comercial com alvará se tratasse. É jornalismo? Tem de seguir as regras deontológicas. Tem emissão regular? Tem de prestar contas do que anda a dizer. Está formalizada como entidade? Tem de declarar os seus interesses. Se se chamasse “blog hertziano” ou outra coisa qualquer, estaria submetido às mesmas regras?
Terceiro, a ANACOM concede autorizações temporárias para projetos não comerciais, por período não superior a 60 dias, mas a frequência de transmissão é cobrada a uma taxa mínima de 50 euros por 15 dias, e caso a emissão temporária queira insistir em renovações sucessivas, estas serão certamente tidas como ilegais por se aproximarem de uma emissão regular.
São muitos problemas juntos. O nome “rádio” parece, de facto, neste momento, mais forte do que a técnica fundadora da rádio – emissão em ondas hertzianas captáveis por receptores compatíveis a maior ou menor distância. A ideia maravilhosa de Rádio arrisca-se a diluir-se no seu longo lastro de compromissos e ambições. Talvez seja a altura de distinguir entre rádio – técnica de comunicação – e rádio – forma de utilização dessa técnica e de outras (por exemplo, a Internet), hoje ritualizada nos mecanismos de regulação, formatos de edição, pressupostos de conteúdo, objectivos.
Estado espanhol e Catalunha
No Estado espanhol, as rádios de carácter comunitário surgiram em plena transição pós-franquista e por isso chamavam-se «livres». Desde o seu início, a existência de redes e de espaços de «coordenação» regional e estatal foi determinante para o reconhecimento legal. Já na segunda metade da década de 2000, foram envidados esforços para a articulação dos meios comunitários, resultando na constituição formal da Rede de Meios Comunitários (ReMC), em 2015. A ReMC facilita a partilha de experiências e de preocupações do sector, sobretudo no que diz respeito à reivindicação do reconhecimento legal, e o seu trabalho foi determinante para a inclusão das rádios comunitárias na lei aprovada em 2010.
A nível da Catalunha, as mobilizações do início da década de 2000 tiveram como resultado a inclusão das rádios comunitárias na lei autonómica de comunicação aprovada em 2005. Porém, o reconhecimento legal não é suficiente se não existe a planificação de frequências. Esta é a grande inação do Estado espanhol que deixa as rádios comunitárias totalmente vulneráveis. Isto é fruto de uma apropriação do espectro radioeléctrico por parte do Estado e do mercado. Daí a importância de reivindicar este bem público como um direito ao qual os grupos sociais devem poder aceder de forma comunitária, como base para garantir os direitos humanos e constitucionais de acesso à informação e liberdade de expressão.
Espaços de articulação
Para além das redes mais ou menos institucionais que permitem articular e dar visibilidade aos meios, é antes de mais a existência real de pessoas e projectos de rádio livre ou comunitária que persistem no tempo e que resistem nos territórios o que dá sentido a esta luta. Só em Barcelona, a Rede de Rádios Comunitárias (Xarxa de Ràdios Comunitàries de Barcelona). congrega 41 rádios associativas, piratas, livres, comunitárias – e o mapeamento nem está completo já que, por exemplo, a Contrabanda não está lá. A rádio (por enquanto) despojada das ondas hertzianas mostra-se crítica quanto à iniciativa impulsionada pelo Ajuntament em 2018, afirmando, no seu manifesto, que a Rede de Rádios Comunitárias se revela «claramente insuficiente» perante «os problemas reais e flagrantes das rádios livres e restantes meios autogeridos». Por outro lado, existem outros espaços de articulação dos meios mais contestatários, dos quais um exemplo é a rede de rádios livres, que dinamiza acções colectivas como os «cadenazos radiofónicos», juntando diferentes meios em emissões simultâneas por todo o Estado espanhol (e além).
Também em Portugal já houve esta dinâmica, só que o seu apogeu aconteceu há mais de três décadas. Em 1988, a poucas semanas da publicação do decreto-lei de regulamentação da rádio, «mais de duas centenas de rádios espalhadas por todo o país [participaram] na maior cadeia radiofónica portuguesa de que reza a história», conta um artigo do Público intitulado «Rádios calaram-se há dez anos» (em 1998). As emissoras que participaram na acção protestavam contra a obrigação de encerramento das rádios não oficiais no processo de preparação do concurso público para atribuição de frequências. Na transição entre a pirataria e a legalidade, poucas resistiram à burocracia e aos encargos. Um mapeamento das rádios comunitárias em Portugal realizado por Miguel Midões, aponta somente 24 iniciativas activas em todo o território em 2019, algumas com mais de uma década de existência (como a Rádio Zero, a Stress.fm e a Manobras). A sua presença é quase em exclusivo online, com atribuição de frequências FM só em casos esporádicos. Já do outro lado da península, a internet é entendida como «uma opção, mas não a solução», como defende a Contrabanda e tantos outros meios que insistem em ocupar as ondas. Talvez seja só romantismo nostálgico dos tempos em que não vivíamos bombardeados pela internet. Talvez porque ainda importa ecoar a dimensão colectiva e corpórea da rádio livre no éter hertziano, só que querem tirar-nos o ar.
Transmitir rádio envolve complexidade e conhecimentos de eletrónica e física, mas está ao alcance, com toda a informação que está disponível online, de qualquer autodidacta dedicado. Embora o equipamento de rádio seja dispendioso, a sua construção DIY reduz drasticamente os custos.
Seguem as necessidades essenciais:
Transmissor rádio FM
• Composto por módulo de transmissão e fonte de alimentação/amplificador (em separado ou combinado);
• Em condições ideais, um transmissor com potência de 5W ERP alcança 4-5 km; um de 50W ERP alcança 30 km;
• Nunca ligar o transmissor sem estar ligado à antena: não tendo por onde escoar a potência, irá queimar.
Antena
• Adequada às características do transmissor;
• Pode ser direccional (maioria da potência num sentido, mais ganho) ou omnidireccional (transmite em todos os sentidos, ganho mais baixo);
• Montar o mais elevado possível: telhados, torres altas, etc. O topo de uma montanha é ideal;
• Mantê-la longe dos outros equipamentos (emissor, fontes de áudio, outras antenas, etc.);
• Preferível investir numa boa antena do que em mais potência de sinal.
Cabo coaxial
• Transfere a energia do transmissor para a antena;
• Para distâncias curtas entre transmissor/antena (<10m) e baixa potência, os mais comuns RG-58 são suficientes. Comprimentos e potência superiores, usar de melhor qualidade, como o RG-8.
Equipamento áudio
• Mesa de mistura para gerir as várias fontes de áudio, computador, microfones, etc.
• Compressor de sinal à saída da mesa para controlar um nível óptimo para a emissão.
Operação
• A geografia é determinante. Escolher um ponto mais elevado possível e com campo aberto. Montanhas ou uma massa grande de edifícios produzem uma sombra que anula a propagação do sinal;
• Escolher uma frequência, no espectro da FM (87-108Mhz), com o máximo de espaço desocupado à sua volta. Isto evita o conflito com transmissões mais potentes das emissoras oficiais e também evita chamar a atenção ao interferir com estas emissões;
• Ter um rádio FM para monitorizar a transmissão. Alternar entre frequência de operação e frequência de outra estação para comparar os níveis de volume;
• As autoridades utilizam equipamento para detecção de direcção de rádio. Não sendo uma leitura imediata, é no entanto de evitar o mesmo local de transmissão;
• Evitar usar nomes ou informações que possam revelar identidade ou localização;
Resumo e tradução por Ricodemus a partir de «The hitchhikers guide to… operating a pirate radio station» (peacenews.info) e «Como configurar uma estação de rádio» (pcs-electronics.com).
Texto de Sara Moreira*, Nuria Reguero*, Anselmo Canha [*Dimmons-UOC].
Ilustração [em destaque] de inês x.
Caixa de ferramentas por Ricodemus.
Artigo publicado no JornalMapa, edição #30, Março|Maio 2021.
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