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Lendo: (Pós)Fascismo, trabalho e precariedade – parte II

(Pós)Fascismo, trabalho e precariedade – parte II

(Pós)Fascismo, trabalho e precariedade – parte II


Na primeira parte deste artigo começou-se por analisar a composição socioprofissional do potencial eleitorado do Chega e em que medida é que esta traduz a existência de um elemento comum entre os velhos fascismos e os novos pós-fascismos. Antes de avançar, contudo, é importante justificar o recurso a esta última categoria na análise de formações partidárias como a liderada por André Ventura (AV).

Clarificando conceitos.

Em termos rigorosos, defini-la como fascista implicaria secundarizar importantes traços tanto da ideologia, como da experiência histórica. Dado o tema deste artigo, é de salientar, entre outras diferenças, a do seu programa económico, baseado na doutrina do corporativismo. Teoricamente, esta surge como uma alternativa ao socialismo e ao liberalismo, tendo como principal objetivo organizar a economia a partir da cooperação das suas «forças vivas», capital e trabalho, representadas pelas devidas associações patronais e sindicais. O objetivo era evitar tanto as experiências políticas a leste, na Rússia, em 1917; como as experiências económico-financeiras a oeste, nos Estados Unidos da América, a 1929. O papel do Estado limitar-se-ia assim, supostamente, ao exercício de um papel de arbitragem. Em termos práticos, porém, a perpetuação do princípio de propriedade privada dos meios de produção, articulada com a supressão do princípio de luta de classes e consequente proibição quer de sindicatos livres, quer de greves, conduziu a um enorme desequilíbrio na relação entre estas «forças vivas».

Embora os atuais partidos pós-fascistas mantenham alguns destes elementos, como a aversão à luta de classes ou a afirmação de um poder arbitral, o modelo económico é bastante distinto. As políticas económicas dos fascismos não são estranhas ao paradigma keynesiano-fordista então dominante, intervindo diretamente na economia através da propriedade de empresas públicas, da regulação da concorrência e do comércio externo ou da proteção de alguns setores tidos como determinantes para uma soberania nacional.

O pós-fascismo, pelo contrário, não só não se opõe, como reproduz os preceitos essenciais do liberalismo económico. Neste sentido, parece estar mais próximo, ideologicamente, do modelo preconizado pelas ditaduras sul-americanas da segunda metade do século XX (Chile, por exemplo) do que propriamente nos corporativismos fascistas da Europa. O papel arbitral reivindicado não se exerce com o objetivo de impor uma orientação ao mercado, mas sim de assegurar a sua livre operacionalidade. O programa do Chega é clarividente no que respeita a este fim: o papel do Estado na economia é colocado no final, num capítulo dedicado às suas funções subsidiárias e/ou supletivas. Conforme se pode ler: «Ao Estado compete uma função arbitral e não a de concorrente com empresas privadas. Não cabe, pois, ao Estado ser o “dono” na Economia, como o entendem os comunistas; nem motor da Economia, como o entendem os socialistas; ou mesmo dinamizador da Economia, como o entendem os sociais-democratas e democratas – cristãos. Ao Estado não compete a produção ou distribuição de bens e serviços, sejam esses serviços de Educação ou de Saúde, ou sejam os bens vias de comunicação ou meios de transporte. Ao Estado compete, como o entendem os conservadores liberais que somos, funcionar como entidade arbitral, reguladora e, no limite, supletiva não interferindo na produção e oferta de bens ou serviços limitando-se, por intermédio de entidades para o efeito constituídas, a regular e arbitrar no âmbito dos vários mercados, de forma a que se não constituam monopólios ou oligopólios» 1.

o “subsidiodependente” – figura cuja criação tende a ser reforçada por preconceitos racistas

Não por acaso, este mesmo documento começa por afirmar a importância das reflexões presentes nas obras de Edmund Burke, Ludwig von Mises ou Friederich Von Hayek, não se encontrando qualquer referência a Mussolini ou Salazar. A menção de teóricos liberais poderá, à primeira vista, causar alguma sensação de estranheza. Contudo, atendendo à secundarização da liberdade política em relação a uma liberdade individual, pois «um povo livre não é necessariamente um povo de homens livres» 2, estas afinidades não devem constituir uma surpresa (nem, por conseguinte, a eventual coligação deste partido com outras formações pertencentes ao mesmo campo político-partidário).

Embora o conceito de pós-fascismo traduza, per si, uma certa indefinição, acaba por ser o mais coerente na análise de um partido do qual ainda pouco se sabe, dado a sua novidade. Se, por um lado, é possível identificar elementos em comum com os velhos fascismos – o nacionalismo, a xenofobia, o ataque racista a minorias étnicas, a defesa da superioridade dos valores cristãos, o reforço da autoridade em detrimento de direitos, liberdades e garantias – por outro, nas palavras de Enzo Traverso, «o pós-fascismo pertence a um regime particular de historicidade – o início do século XXI – que explica o seu errático, instável, e por vezes contraditório conteúdo ideológico, no qual filosofias políticas antinómicas se misturam» 3.

posfascismo

Vão trabalhar!: Neoliberalismo, precariedade e obreirismo

Ao longo da campanha para as eleições presidenciais realizada por AV, o candidato apoiado pelo Chega viu-se confrontado por diversas concentrações e manifestações antifascistas. Muitas vezes, a sua resposta resumiu-se a algo como «Vão trabalhar!». Embora o trabalho esteja longe de corresponder a um tema particularmente abordado tanto pelo dirigente, como pelo partido, o mesmo não deixa de constar no seu programa. A sua conceção é bastante coerente com as réplicas de AV às injúrias de que foi objeto. O capítulo dedicado às questões de emprego, começa precisamente por ditar que o «Estado não deve ter a preocupação de criar empregos, a não ser para os seus serviços, mas apenas implementar as condições necessárias para que estes sejam criados pelos agentes da sociedade». Tal implica, entre outras medidas, a «alteração da legislação laboral no sentido da flexibilização dos fluxos de entrada e saída da situação de empregado» e «dos salários pela aplicação da máxima “salários diferentes para trabalho diferente”», bem como a aprovação de legislação com vista a «equiparar os trabalhadores do sector público ao sector privado» 4 Relativamente aos sindicatos, advoga-se o «fim dos vários privilégios dos sindicatos e nomeadamente o de poderem requisitar filiados ao seu trabalho profissional» 5.

O modo inequívoco como estas medidas são apresentadas, por comparação a uma narrativa mais moderada à direita, e o relativo sucesso eleitoral de AV em regiões menos abastadas 6 poderá, à primeira vista, ser difícil de explicar. Em primeiro lugar, é importante frisar que esta questão não corresponde, propriamente, a um dado novo, uma vez que o voto de setores subalternos em partidos de direita em Portugal sempre constituiu uma realidade, motivada tanto por fatores económicos (a semi-proletarização e os efeitos da pequena propriedade, elemento estrutural da condição proletaróide 7), como socioculturais (a religiosidade, por exemplo) ou políticos (caciquismo ou nepotismo). Em segundo lugar, e conforme mencionado, o lugar ocupado pelas temáticas do trabalho e do emprego na economia do discurso do Chega é bastante parco, encontrando-se esta preenchida por uma série de soundbytes passíveis de gerar mais likes, partilhas e cobertura mediática. Em terceiro lugar, a precariedade resulta não apenas de um processo de desregulação das leis do trabalho, mas de uma variedade de dispositivos. Para quem é trabalhador independente (falso ou verdadeiro) ou empresário em nome individual, as obrigações e deveres fiscais são tão ou mais centrais que o disposto no código laboral (o movimento Gillets Jaunes em França iniciou-se como resposta à implementação de uma taxa de carbono, responsável pelo aumento dos preços da gasolina 8 ). Como tal, a defesa de um Estado mínimo e/ou a evocação dos direitos dos contribuintes aos frutos do seu trabalho e respetiva definição de um inimigo a abater, o subsidiodependente – figura cuja criação tende a ser reforçada por preconceitos racistas – poderão arregimentar alguma simpatia em vários setores sociais, independentemente da classe.

Mais do que o PSD, é a própria dinâmica do capitalismo que contribui para uma normalização do Chega.

Finalmente, é curioso verificar que o programa do Chega em torno das questões de trabalho e do emprego em nenhum momento se faz munir de categorias como a de empreendedor, recuperando um espírito obreirista 9. Mais do que sintoma de uma falta de sofisticação e/ou de um certo conservadorismo, as posições em torno destas matérias – de resto, semelhantes à do Vox espanhol – reflete o quadro de relações de trabalho pós-2008. A partir de então o neoliberalismo entra numa fase punitiva 10, ilustrada pelos processos de austeridade como resposta a uma irresponsabilidade coletiva (o «viver acima das disponibilidades»). Se o discurso neoliberal em torno do trabalho reivindicava uma lógica expressiva, de profunda identificação e prazer na sua realização (ao ponto de se por de parte o próprio conceito), velhas ideias como dever e sacrifício, próprios da ética protestante, parecem retornar. O tipo de recuperação económica verificada, fruto do crescimento de setores como o da hotelaria ou das plataformas digitais, onde o trabalho tende a ser intensivo, mal pago e precário, não parece ser, de todo, incompatível com estes valores. Mais do que o PSD, é a própria dinâmica do capitalismo que contribui para uma normalização do Chega.

Ao mesmo tempo, porém, este obreirismo pós-fascista oferece-nos a oportunidade de refletir sobre o que é que poderá constituir uma política antifascista. Se é o próprio capitalismo a reforçar o Chega, então qualquer a oposição radical (ou seja, que vise a sua raiz) ao mesmo deverá tomar como objeto as estruturas que o mobilizam. Um dos meios à disposição poderá passar não só pela solidariedade com os visados, mas pela própria reivindicação da figura do subsidio-dependente e da rejeição do trabalho como princípio constituinte e mediador das relações socias, por via de medidas como a da diminuição do tempo de trabalho sem redução de salários, por exemplo. Se nos mandam trabalhar, a resposta só poderá ser algo como, evocando as palavras do poeta, «Vão vocês!» 11

 


Texto de ZNM
Ilustração de Catarina Santos


Artigo publicado no JornalMapa, edição #30, Março|Maio 2021.


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Notas:

  1. IV – Funções subsidiárias e/ou supletivas. 5. Economia. Programa partido Chega 2019 https://tinyurl.com/vnebe4xd.
  2. Acrescenta Hayek, «A relação que se procura frequentemente entre esse consentimento da ordem política e a liberdade individual é uma das fontes da confusão atual sobre o seu significado. É claro que qualquer um “pode identificar a liberdade… com o processo de participação ativa no poder público e no processo legislativo público”. Mas devemos esclarecer que quem fizer essa identificação está a falar de um estado que não aquele que nos importa». Friederich Hayek (2018). A Constituição da Liberdade. Lisboa, Edições 70, p. 38. Noutra obra, o mesmo autor defende que «A democracia é essencialmente um meio, um mecanismo utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. Como tal, não é de todo infalível ou garantida. Nem nos devemos esquecer de que tem havido muito mais liberdade cultural e espiritual em governos autocráticos do que em algumas democracias». Friederich Hayek (2013). O Caminho para a Servidão. Lisboa, Edições 70, p. 100.
  3. Enzo Traverso (2019), The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. London, Verso, p. 7.
  4. IV – Funções subsidiárias e/ou supletivas. 6. Emprego. Programa partido Chega 2019.
  5. IV – Funções subsidiárias e/ou supletivas. 4. Trabalho. Idem
  6. Para uma análise detalhada dos resultados das eleições presidenciais ver Pedro Varela (2021), O fenómeno eleitoral da extrema-direita: algumas notas, análises e caracterizações. https://semearofuturo.com/
  7. Ver primeira parte deste artigo, publicada na edição anterior do jornal Mapa, N.º 29, Dezembro 2020-Fevereiro 2021.
  8. Plateforme d’Enquêtes Militantes (2019)., «Back to the Future: The Yellow Vests Movement and the Riddle of Organization». https://tinyurl.com/ncwn82re
  9. Álvaro Briales (2020). Crisis del empleo y derechización social: hacia una crítica antifascista del trabajo. In Fundación de los communes (org.), Familia, raza y nación en tiempos de posfascismo. Madrid, Traficante de Suenos.
  10. William Davies (2016), The new neoliberalism. New Left Review, 101.
  11. Referência a «Vamos ao Trabalho» da banda Peste & Sida (É que é, 1990).

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