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Lendo: «Mulheres, Vida, Liberdade» contra a guerra

«Mulheres, Vida, Liberdade» contra a guerra

«Mulheres, Vida, Liberdade» contra a guerra


Uma declaração de um colectivo composto por feministas internacionalistas iranianas, curdas e afegãs que defende que devemos opor-nos ao ataque assassino que as forças armadas de Israel e dos Estados Unidos estão a levar a cabo contra as pessoas no Irão, recusando-nos ao mesmo tempo a tolerar a opressão perpetrada pelo governo iraniano.

O colectivo, de nome Roja, redigiu esta declaração em 16 de Junho, o terceiro dia da guerra. Foi originalmente publicada em persa e o Jornal MAPA deitou mão da versão em inglês que aparece no site Crimethink. Muito se passou desde então. Ainda de acordo com este site, o Roja é um colectivo feminista-internacionalista independente com sede em Paris, cujos membros são originários do Irão, do Afeganistão (Hazara) e do Curdistão. O coletivo foi formado em resposta ao assassinato de Jina (Mahsa) Amini pelo Estado e à revolta nacional Jin, Jiyan, Azadi («Mulheres, Vida, Liberdade») em Setembro de 2022. O Roja centra-se nas lutas políticas e sociais no Irão e no Médio Oriente, bem como no trabalho de solidariedade local e internacional em França, incluindo com a Palestina.

Manifestação em Paris organizada por: Roja, Feminists4Jina e Socialist Solidarity.

«Mulheres, Vida, Liberdade» contra a guerra
Estamos contra as duas potências coloniais, patriarcais e belicistas. Mas isto não é passividade. É o ponto de partida da nossa luta ativa pela vida.

Se Israel conduz as crianças de Gaza para a matança com uma bandeira queer do arco-íris, a República Islâmica do Irão encharca a Síria de sangue sob um pretexto anti-imperialista. Um comete genocídio contra os árabes na Palestina, o outro subjuga as etnias não persas dentro das suas fronteiras. Netanyahu procura usurpar o significado de «Mulheres, Vida, Liberdade» para vestir o seu expansionismo colonial e a sua agressão militar com roupas de «liberdade», enquanto Khamenei investiu todos os recursos na construção de um império xiita, supostamente para combater o ISIS e defender a Palestina.

De facto, estes dois inimigos de longa data espelham-se um no outro em termos de matança e malevolência. Não devemos equiparar estes dois regimes capitalistas em termos das suas posições na ordem mundial: a capacidade de agressão militar da República Islâmica é, sem dúvida, muito inferior à capacidade de Israel e do seu apoiante imperialista ocidental. No entanto, o sofrimento que infligiu é tão absoluto como a violência do fascismo sionista. Qualquer tentativa de relativizar esse sofrimento, quantitativa ou qualitativamente, é redutora e enganadora. Esse sofrimento abrange múltiplas formas de opressão, incluindo os custos exorbitantes do seu projecto nuclear e a tomada da dignidade humana como refém.

Esta guerra assimétrica entre Israel e a República Islâmica é, acima de tudo, uma guerra contra nós.

É uma guerra contra o que criámos na revolta Jin, Jyain, Azadi, o que alcançámos e o que se encontra no seu horizonte potencial: uma revolta feminista, anticolonial e igualitária que não emergiu do poder estatal, mas teve origem nas lutas populares do Curdistão – especialmente as lideradas por mulheres – e que depois ecoou por toda a geografia do Irão.

É simultaneamente uma guerra contra as classes oprimidas e trabalhadoras: contra as enfermeiras do Hospital Farabi, em Kermanshah, e contra os bombeiros da pequena cidade de Musian, em Ilam, que foram atingidos por ataques aéreos israelitas – os primeiros a 16 de Junho, os segundos duas vezes, a 14 e 16 de Junho.

Esta guerra visa as infra-estruturas e as redes que sustentam a vida quotidiana nesta região.

Assumir uma posição clara e intransigente em relação à guerra – condenar a agressão de Israel e dizer «não» à República Islâmica – é a base estratégica mínima para dar forma a uma campanha colectiva que exija um cessar-fogo imediato. «Mulheres, vida, liberdade contra a guerra» não é apenas um slogan; traça uma fronteira nítida em torno de um conjunto de tendências cujas contradições e conflitos são hoje mais claros do que nunca.

De um lado estão os defensores oportunistas da mudança de regime que, durante anos, apoiaram as sanções ocidentais e norte-americanas, rufaram os tambores da guerra, negaram o genocídio de Gaza – e agora defendem a «libertação» em abjecta subserviência ao seu mestre, Israel. Em suma: os que minimizam o belicismo imperialista ocidental, sobretudo os monarquistas persas-nacionalistas de extrema-direita.

Do outro lado está o campismo [campism], a posição política que apoia qualquer projecto – por mais autoritário que seja – que se oponha ao bloco ocidental, apresentando-o como «resistência».

Para além disso, há forças que dão prioridade à luta contra o ataque criminoso de Israel, apelando ao «estado de emergência» ou ao «interesse do povo». Este último grupo acaba por branquear os crimes da República Islâmica no país e no estrangeiro ou por adoptar um silêncio estratégico. Foram estes que, depois de 7 de Outubro de 2023, lançaram avisos sobre o perigo da indiferença em relação ao destino comum dos povos do Médio Oriente – mas, em vez de enfatizarem a luta internacionalista de base, esbateram a linha entre a resistência popular e o poder do Estado. Observaram corretamente que o Irão vem a seguir ao Líbano e à Palestina na chamada «nova ordem do Médio Oriente», mas apenas para minimizar e desvalorizar as lutas das mulheres, das minorias étnicas e das classes oprimidas neste «momento». Os seus avisos permaneceram abstractos porque não disseram uma palavra sobre a apropriação – e monopolização ideológica – do discurso anti-colonial pela República Islâmica desde a revolução de 1979.

Acreditamos que só traçando estas fronteiras – sublinhando as relações mútuas e inseparáveis entre as múltiplas lutas sociais na região – é que poderemos formar uma frente sólida contra o genocídio de Israel e, simultaneamente, arrancar o discurso anti-colonial ao monopólio da República Islâmica, confrontando os etno-nacionalistas que negam a existência de minorias étnicas e o «colonialismo interno» na República Islâmica.

Em solidariedade com o destino comum dos povos do Médio Oriente – de Cabul a Teerão, do Curdistão à Palestina, de Ahvaz a Tabriz, do Baluchistão à Síria e ao Líbano – que é a base material da luta internacionalista, dirigimos esta declaração aos oprimidos e aos subjugados no Irão e na região, à diáspora e às «consciências acordadas» do mundo.

Manifestação em Paris organizada por: Roja, Feminists4Jina e Socialist Solidarity.

Morte por bombas e mísseis
A limpeza étnica perpetrada pelo criminoso Estado israelita não se limita a este dia, a este ano ou mesmo a este século. No entanto, falha geopolítica que se abriu a 7 de Outubro de 2023 ameaça agora engolir a República Islâmica e o povo do Irão por dentro – a uma velocidade espantosa e com uma intensidade chocante – lançando um horizonte sombrio que ultrapassa os nossos limites emocionais e psicológicos.

Estes podem ser os dias mais críticos das nossas vidas desde a Revolução de 1979.

Desde a madrugada de sexta-feira, 13 de junho, até segunda-feira, 16 de junho, o exército israelita levou a cabo 170 ataques, atingindo 720 alvos em todo o Irão.

– Primeira fase: instalações nucleares, bases de mísseis, sistemas de defesa aérea e assassinatos de investigadores e comandantes militares em áreas residenciais – visando dezenas de comandantes de topo do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica [um ramo das Forças Armadas iranianas], infligindo um golpe sem precedentes na estrutura de segurança militar do IRGC [corpo de guardas da revolução islâmica].

– Segunda fase: ataques coordenados a refinarias e depósitos de combustível (Shahran em Teerão e Pars South no Golfo Pérsico), portos, aeroportos e infra-estruturas críticas que afectam não só as artérias militares, mas também a reprodução social e a vida quotidiana.

– Terceira fase: ataques a símbolos da autoridade governamental – ministérios, edifícios oficiais e a principal agência de radiodifusão da República Islâmica em Teerão – o núcleo central de interrogadores, torturadores e propagadores de ódio. Uma instituição mediática com um historial de quatro décadas a fabricar dossiers, a espalhar mentiras e a difamar os pobres, as mulheres, os emigrantes afegãos e os dissidentes políticos.

Em todas estas fases, contrariamente às promessas sedutoras dos propagandistas fascistas que vendem a liberdade através de bombas, o que se verificou não foram «ataques pontuais» a alvos militares, mas sim o massacre indiscriminado de civis, mulheres e crianças. Até 15 de Junho, pelo menos 600 pessoas foram mortas e 1277 ficaram feridas. [No momento em que publicamos este artigo, os números são consideravelmente mais elevados].

Em resposta, a República Islâmica tinha lançado mais de 350 mísseis e drones contra Israel até 16 de Junho. Um dos principais ataques teve como alvo o norte de Israel, incluindo Haifa – o núcleo industrial estratégico e um centro logístico de energia. Embora a maioria dos projécteis tenha sido interceptada pelos sistemas de defesa das forças armadas israelitas e dos seus aliados, vários atingiram zonas civis. Até ao momento da elaboração deste relatório [16-18 de Junho], foram mortos 24 israelitas, incluindo quatro mulheres de uma única família.

Nesta situação terrível, a República Islâmica não só abandonou uma população aterrorizada – não conseguindo fornecer sequer os serviços mais básicos, como informação pública transparente, abrigos antiaéreos ou sistemas de alarme – como também intensificou o controlo do Estado: destacando esquadrões de choque, erguendo postos de controlo nas cidades e afiando a sua lâmina para execuções sob o pretexto de «espionagem para Israel». Embora isto não seja surpreendente em tempo de guerra – na verdade, é sintomático da incapacidade do regime para garantir a segurança – traz consigo a ameaça sussurrada de «pendurar traidores em todas as árvores». Esta lógica flui naturalmente de um regime cuja própria sobrevivência depende da repressão interna, das execuções, da militarização da vida quotidiana e da expansão regional implacável.

Faixa da ROJA numa manifestação em Paris contra o genocídio na Palestina

 

Representação colonial e normalização da guerra
A «guerra contra o terror» – o projecto imperialista que derramou sangue no Afeganistão e no Iraque no início do século XXI – passou agora o testemunho a Israel: um ataque «preventivo» destinado a conter a ameaça nuclear iraniana 1. Mais uma vez, repete-se o guião dominante nos média: Israel tem como alvo apenas «locais militares», utilizando «mísseis de precisão» e «drones inteligentes» para dar liberdade e democracia ao povo iraniano.

Mas esta narrativa não se refere a Parnia Abbasi, o poeta de 24 anos assassinado em Sattarkhan, Teerão. Não faz qualquer menção aos assassínios de Mohammad Ali Amini, o atleta adolescente de taekwondo, ou de Parsa Mansour, jogador nacional de padel. Nem um sussurro sobre Fatemeh Mirheidar, Niloufar Qalewand, Mehdi Pouladvand ou Najmeh Shams. Não se tratava de «alvos militares» nem de «ameaças nucleares» – apenas de seres humanos, cujos corpos foram desmembrados no silêncio mediático global, retalhados por mísseis israelitas. Esta é apenas a ponta do icebergue da «liberdade» que Israel – apoiado pelo Ocidente – pretende introduzir através do amontoado de cadáveres e de devastação.

As forças reaccionárias que reduzem a «mudança de regime» a uma mera remodelação política a partir de cima – sem qualquer transformação social real – estão agora a abraçar abertamente o seu salvador de longa data, Israel. Os monárquicos transformaram as vítimas dos bombardeamentos em estatísticas, declarando sem vergonha: «A República Islâmica executa milhares de pessoas todos os anos, por isso a morte de dezenas ou centenas por Israel é justificável». Esta é a mesma lógica desumanizante – o cálculo quantitativo da morte – que os Estados Unidos utilizaram para justificar a destruição de Hiroshima e Nagasaki: «Se a guerra continuar, morrerão mais pessoas, por isso, lancem a bomba».

A morte de civis nos recentes ataques de Israel, o aumento do controlo estatal no Irão, a destruição de infra-estruturas sociais – nada disto são «erros não intencionais» ou danos colaterais. São a lógica da guerra, especialmente quando conduzida por um regime como o de Israel. A conhecida alegação de que os civis ou locais não militares estão a ser utilizados como «escudos humanos» – outrora invocada em Gaza, agora utilizada para justificar ataques à Prisão de Dizelabad e ao Hospital Farabi em Kermanshah – é uma distorção deliberada, utilizada para mascarar e inverter a verdade desta lógica exterminatória.

Não existem «ataques justos ou «bombardeamentos justos». As experiências históricas do Iraque, do Afeganistão e da Líbia – sim, a mesma Líbia que Netanyahu cita abertamente como modelo para a mudança de regime no Irão – atestam esta verdade com sangue.

Manifestação em Paris, organizada por: Roja, Feminists4Jina e Socialist Solidarity.

 

«A Nova Ordem do Médio Oriente»: Porque é que Israel atacou o Irão?
A escala sem precedentes dos ataques de Israel indica que Israel está a tentar conseguir uma mudança de regime em grande escala – ou o colapso do regime. Não podemos descartar a Operação «Leão em Ascensão» como uma mera extensão da hostilidade de longa data entre os dois Estados. Está enraizada num processo regional mais vasto que teve início a 7 de Outubro com um golpe no chamado «Eixo da Resistência» e que atingiu agora profundamente o núcleo das estruturas de poder de Teerão.

O ataque de Israel à República Islâmica marca o último capítulo de uma transformação mais vasta da geopolítica e da economia do Médio Oriente.

Gaza, para Israel, não é apenas um campo de batalha – é um projetco de colonização. O ataque a Gaza é uma campanha para exterminar ou expulsar mais de dois milhões de palestinianos e transformar a costa ensanguentada na visão de Trump de uma «Riviera do Médio Oriente» – praias de luxo, casinos e uma zona de comércio livre para brancos.

Passo a passo, Israel expulsou o Hezbollah do sul do Líbano, destruindo as suas infra-estruturas, matando comandantes e desmantelando a sua máquina de guerra. O mesmo está agora a acontecer com a IRGC. Na Síria, um regime apoiado pela Rússia, pelo Hezbollah e pelo IRGC – à custa de meio milhão de mortos e doze milhões de desalojados – desmoronou-se abruptamente perante os rebeldes apoiados pela Turquia. O corredor Xiita Teerão-Beirute, outrora uma artéria estratégica que ligava o Irão ao Mediterrâneo, tornou-se o seu calcanhar de Aquiles – a pista através da qual os aviões de guerra o atacam agora.

Na nova ordem imposta no Médio Oriente, um bloco de poder capitalista israelo-americano está a remodelar agressivamente a região através de rotas logístico-económicas (o Corredor Índia-Médio Oriente-Europa), da normalização político-económica (os Acordos de Abraão) e do militarismo expansionista sob a forma de genocídio e anexação de Gaza 2.

No meio da desintegração do «Eixo de Resistência», a doutrina de longa data do Corpo de Guardas da Revolução Islâmica de «nem guerra nem paz» – uma estratégia de crises fabricadas e de uma calculada atitude de brinkmanship [jogo de cintura, malabarismo] – entrou em colapso. Durante anos, o regime usou confrontos limitados e controlados como arma para evitar tanto a guerra total como a paz genuína. Hoje, vê-se exposto num campo de batalha onde as regras mudaram irrevogavelmente.

Este colapso, agravado pela perda total de legitimidade interna do regime – marcada pelas revoltas em massa de Dezembro de 2017, Novembro de 2019 e o movimento «Mulheres, Vida, Liberdade» -, constitui um golpe final. A República Islâmica já não pode gerir, adiar ou exteriorizar as suas crises. Não tem legitimidade a nível interno e não tem qualquer influência estratégica na região. É um resquício queimado numa ordem militarizada e multipolar emergente.

Neste vórtice de sangue, os Estados Unidos – correndo contra a China e manobrando através da Rússia – esforçam-se por recuperar a sua hegemonia fracturada. Netanyahu agarra-se à guerra sem fim como bilhete para a sua sobrevivência interna. E dentro do aparelho dirigente da República Islâmica, muitos pretendem agora tornar-se eles próprios instrumentos de mudança de regime. Entretanto, o povo continua refém de uma guerra que não é sua, uma guerra que não oferece qualquer horizonte de libertação.

Não à repetição da Líbia, Não ao massacre do verão de 1988

Recordar o caminho percorrido desde a «bênção» da guerra Irão-Iraque para a consolidação da República Islâmica nos seus primórdios até à execução em massa de presos políticos pelo regime no Verão de 1988 é hoje tão urgente como recordar o percurso imperialista que conduziu à «Líbiazação» 3 de toda uma sociedade.

A história das «intervenções humanitárias» no Iraque e no Afeganistão – quer sob o pretexto de «armas de destruição maciça» ou de «crimes contra a humanidade» – tem de ser lida em conjunto com a história das lutas no Irão que, desde antes da Revolução de 1979 até hoje, deram erradamente prioridade ao anti-imperialismo acima de tudo. Do mesmo modo, a história colonial de Israel – desde a Nakba de 1948 até à traição de Nasser ao pan-arabismo em 1967 – tem de ser compreendida do ponto de vista do Sara turcomano e do Curdistão, locais de colonialismo interno.

Durante mais de uma década, os ideólogos da «ilha de estabilidade» (o nome que os campistas deram em tempos à República Islâmica do Irão) utilizaram o medo da «síriazação» para envergonhar as lutas populares independentes e chamar o povo às urnas, vendendo a intervenção sangrenta do IRGC na Síria como uma estratégia de dissuasão para evitar a «síriazação» do Irão. Basta recordar esta história para justificar um «não» decisivo ao discurso dos campistas – um discurso que, em vez de se apoiar no poder popular organizado a partir de baixo, se inclina para a realpolitik e, em nome do anti-imperialismo, trata o inimigo do inimigo como um amigo, mesmo quando ele é igualmente mau.

Há cerca de 45 anos, no início da Guerra Irão-Iraque, alguns grupos progressistas enveredaram pelo nacionalismo – tratando a guerra como um acontecimento «nacional». Isso só serviu para consolidar o regime autoritário islâmico. Alguns mantiveram-se silenciosos enquanto a República Islâmica usava a palavra «imperialista» para justificar a imposição do véu obrigatório às mulheres e o envio de tropas para o Curdistão; outros, embora tenham falado, não conseguiram mobilizar a opinião pública contra o inimigo interno, feito à imagem de um inimigo externo, ajudando assim a normalizar uma hierarquia centrada no homem/persa/xiita.

Neste momento – quando a narrativa do «estado de emergência» sugere que se trata de um momento excecional e desconexo -, não há maior imperativo do que invocar uma memória histórica plural e multifacetada. Só a partir de uma memória histórica heterogénea e com várias vozes – do ponto de vista dos povos oprimidos – podemos dizer «não» ao imperialismo, ao controlo estatal baseado na guerra e ao campismo, tudo ao mesmo tempo. Ao projeto de recordar essa história estratificada – de Cabul a Gaza, através de destinos e diferenças partilhados – apelamos ao internacionalismo.

Num mundo que oscila entre a militarização fascista e as guerras aparentemente intermináveis, o nosso caminho reside na organização activa e de massas para um cessar-fogo imediato, para a paz e para a reprodução da vida contra a máquina da morte. O nosso campo de acção não está alinhado atrás de Estados nem investido em lançar-lhes olhares esperançosos , baseia-se no cuidarmos umas das outras, na ajuda mútua e na construção de uma rede de apoio, consciência e solidariedade – desde as idosos e crianças até às marginalizadas e deficientes – como testemunhámos magnificamente na revolta Mulher, Vida, Liberdade, em que a solidariedade entre as oprimidas se tornou uma força para viver, resistir e criar.

A transparência da informação e a consciencialização – sem reproduzir as narrativas israelitas ou da República Islâmica – devem ser os pilares desta resistência cultural e política.

Submetermo-nos ao fatalismo e pintar um futuro apocalíptico em que tudo já acabou são formas de reproduzir a lógica da morte. Contra essa noção de futuro, o que é absolutamente urgente é moldar uma campanha de massas que vise o cessar-fogo imediato e a abertura de um horizonte de libertação:

Mulheres, Vida, Liberdade contra a Guerra
Berxwedana Jiyan e
Resistência é Vida
Palestina Livre
Roja
18 de junho de 2025

Para conheceres os antecedentes do movimento Jin, Jiyan, Azadi («Mulher, Vida, Liberdade») no Irão, lê isto; para mais informações sobre a revolta que eclodiu em 2022, começa aqui.

Notas:

  1. Embora o programa nuclear da República Islâmica tenha sido, desde o início, um processo dispendioso e antidemocrático com graves consequências ecológicas – impulsionado pelos Guardas Revolucionários para garantir a sobrevivência do regime nas competições geopolíticas regionais e globais, Embora não reconheçamos nenhum «direito» à República Islâmica ou a qualquer outro Estado de adquirir armas nucleares e acreditemos que as armas nucleares e a corrida global a elas devem ser totalmente desmanteladas, o ataque de Netanyahu baseia-se, no entanto, numa narrativa falsa, que faz lembrar a invasão do Iraque pelos EUA sob o pretexto de eliminar as «armas de destruição maciça»: ou seja, que o Irão está a poucos passos de construir «a bomba». Embora a República Islâmica tenha, de facto, aumentado significativamente as suas reservas de urânio próximo do grau de pureza para armas, não há provas de uma decisão de construir uma bomba nuclear. Mesmo que partamos do princípio de que a República Islâmica adquiriu uma bomba, são os próprios povos da geografia política do Irão que têm de decidir o seu destino com autonomia e autodeterminação – e isso não justifica de forma alguma o ataque militar de Israel.
  2. A operação «Dilúvio de Al-Aqsa» de 7 de Outubro pode ser interpretada no contexto desta nova arquitectura de dominação: como uma tentativa de perturbar o projecto de normalização de Israel através dos Acordos de Abraão e de interferir com uma das rotas mais vitais do fluxo de capital transnacional – que começa na Índia, passa pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos, chega a Israel e se estende daí até às costas da Grécia, no Mediterrâneo.
  3. A «Líbiazação» refere-se a uma estratégia imperialista em que um Estado é primeiro pressionado diplomaticamente para se desarmar – muitas vezes sob o pretexto de acordos internacionais ou preocupações humanitárias -, depois sujeito a uma intervenção militar e, por fim, empurrado para o colapso do Estado e para um caos prolongado. O termo é inspirado no caso da Líbia, onde o regime de Kadhafi foi persuadido a abandonar os seus programas de armamento, mais tarde alvo de uma campanha militar liderada pela NATO, em 2011, e acabou por se desintegrar num país fragmentado e devastado pela guerra.

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Jornal Mapa

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