Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: As pessoas só pensam no trabalho
Antonio Maria Pusceddu, antropólogo do CRIA-ISCTE, tem trabalhado na história e na transformação das regiões industriais, incluindo as novas «geografias da energia» nos contextos da Transição. Em Itália, interessou-se pelo complexo petroquímico de Brindisi e o gerar de «ambientalismos operários» no cruzamento da fábrica com os movimentos ambientalistas. Por cá, encontrámo-nos em Sines para uma conversa. Desde logo, Pusceddu refere uma diferença crucial (já apontada também na entrevista a Sergio Marashin): «enquanto em Brindisi toda a questão de saúde se tornou uma ferramenta muito forte em todo o movimento ambiental, em Sines nada. Os estudos epidemiológicos foram feitos pelas autoridades sanitárias públicas na relação entre a poluição ambiental e um conjunto de cancros. Em Sines, numa primeira impressão, parece que se trata de uma área pacificada. Não é de todo certo que não exista, há as suspeitas…, os colegas que no passado podem ter morrido por causa da exposição à toxidade, mas a imagem fabricada é que Sines é a coisa mais sofisticada e limpa do mundo».
Pesquisando as memórias pós 25 de Abril em Sines, Pusceddu de imediato anotou uma «luta pela sobrevivência da cidade, em que no plano original as pessoas seriam deslocadas para Santo André e Sines seria, como dizia o primeiro director do Gabinete da Área de Sines, o Cais do Sodré do Alentejo». Apesar do movimento popular até à Greve Verde, «ainda agora, numa conferência dos 50 anos de Abril, se apontou essa ideia canónica de que havia coisas mais urgentes a pensar do que o ambiente, reduzindo-o àquela visão burguesa da defesa da natureza e ignorando tudo aquilo que desencadeia.» Assim, acerca das questões ambientais, não hesita em afirmar não haver actualmente «uma grande preocupação em relação ao que está a acontecer [na região], para lá de um conjunto de pessoas que fazem parte de uma rede que vai para além de Sines».
Trabalho, Ambiente e Transição
Uma dessas pessoas é Bruno Candeias, natural das Ermidas do Sado, trabalhador e sindicalista na REPSOL, membro do Bloco de Esquerda e uma das vozes activas dos movimentos ambientalistas do litoral alentejano. Ser delegado sindical e activista ambiental «não é fácil! É um exercício diário, tentar encontrar soluções, narrativas que permitam defender o trabalhador na transição justa. O que não é fácil porque entramos num patamar de suposições e para os trabalhadores as suposições são nada; precisam sim de soluções concretas, no momento. Por outro lado, é difícil dialogar com os trabalhadores e com as comunidades, porque vivem dessas indústrias, e os próprios sindicatos no seu geral são muito recuados em relação a isso. O SIEAP, Sindicato das Indústrias, Energias, Serviços e Águas de Portugal, a que pertenço, é um sindicato pequeno que ainda vai falando sobre isso, mas na maior parte das vezes há mesmo contradições.
Neste ponto, é obrigatório falar do fecho da Central Termoeléctrica a carvão de Sines. Para Bruno Candeias, se este «foi um contributo essencial, o problema é que existem coisas que se tornam difíceis para todos aqueles que defendem esse caminho do encerramento. Uma, é agora importar de Espanha ou de Marrocos energia que vem do carvão ou do nuclear, o que é uma hipocrisia. O segundo aspecto é que, de 400 trabalhadores, 300 foram para o fundo de desemprego. Não houve um planeamento sério para fazer disto um exemplo nacional, para que todos pudessem ver que sim, é possível encerrar indústrias poluentes sem que ninguém perca os seus direitos e os seus postos de trabalho. No entanto, não foram vistos como trabalhadores penalizados pela transição, mas entregues à selvajaria do mercado de trabalho. Foi muito mau.»
«No caso da Central, se o nosso Sindicato dizia que não vale a pena andar para trás, temos é de encontrar soluções; tínhamos a CGTP à porta da fábrica a dizer que era urgente que não fechasse, a apelar à produção nacional e à nacionalização de sectores estratégicos. A perspectiva é sempre a mesma e a questão ambiental é secundarizada. Desde que seja estratégico do ponto de vista económico para o Estado, a questão do carvão é pouco relevante. Um tipo de discurso que não ajuda muito na própria comunidade local onde, com essas entropias, não há entendimento.»
António Pusceddu prefere enquadrar o discurso da CGTP na «reconfiguração que começou há vinte anos para fazer de Sines uma porta de entrada no circuito global de mercadorias, mais do que um lugar de produção. Daí terem um discurso sobre a soberania nacional e defesa das capacidades produtivas. Discurso que perdurou no encerramento da Central. Este foi um daqueles casos exemplares em que tudo é alimentado para aquele tipo de conspiração à volta da Transição. Alguém diria “conspiração”, mas é realmente um caso claro desta grande reestruturação do Capital na dita Transição verde. A acção do Estado, da Câmara, revelou falta de capacidade de resposta e que a EDP poderia fazer o que quisesse. Em nome da Transição. O discurso da soberania nacional e da defesa produtiva levanta um paradoxo que não é de resposta fácil e é partilhado por muitos: daqueles que podem ter posições negacionistas aos que tenham uma clara posição de defesa da necessidade de uma Transição, questionando contudo se é possível ter uma Transição Energética nacional. Qual é o contributo oriundo de uma migalha, como Portugal, numa dimensão global? É evidente que esse discurso levanta questões. E depois, enfim, encerra-se a Central e aumenta o volume do tráfico marítimo do Porto de Sines, responsável pelas maiores emissões. Um conjunto de paradoxos e, claramente, de contradições».
Migrantes, Salários e Habitação
Ambiente à margem, em Sines há outras preocupações. Diz-nos António que «há mais uma preocupação com o efeito que está a ter esta expansão industrial, em termos de um grande número de força de trabalho, na sua maioria de comunidades migrantes, em condições bastante complicadas, e uma série de fricções que se estão a agudizar em relação aos salários. Porque esta sobreabundância de mão de obra resulta em dumping salarial e está a criar uma situação bastante explosiva em relação às formas regressivas que estes salários podem ter. Acho que as preocupações são mais nesse sentido. Há um conjunto de transformações que já aconteceram no sentido de uma maior precarização, como se vê pelo número de agências de trabalho temporário, que em Sines é absurdo, ou quando no Porto de Sines se cria uma empresa onde em 1200 estivadores nem 100 são directos. Daí a grande preocupação com a deterioração das condições de vida, com o grande afluxo de trabalhadores, a falta de habitação e a questão salarial. Dentro destas questões não vejo haver grande preocupação por parte dos trabalhadores sobre a questão ambiental, nem climática.»
O investigador recorda o movimento pela justiça climática, como alguma preocupação da Climáximo numa aproximação a Sines. «Mas no feedback que continuo a ter de pessoas que estão de alguma forma alinhadas com as mesmas estratégias, a percepção é de desacordo profundo com as modalidades e a ingenuidade em trazer modelos de acção mais metropolitanas, que num contexto de Lisboa e Porto têm possibilidade de crescer, mas num contexto mais pequeno, onde a questão laboral é muito mais forte, correm o risco de ter o efeito contrário.»
Bruno Candeias sabe que está perante «um apego ainda muito grande às concepções vindas do socialismo real, digamos assim, da industrialização e do progresso. Aquela lógica do progresso a favor dos trabalhadores, que é a história de Sines. A lógica de esquerda aqui criada a seguir ao 25 de Abril ou a que existe actualmente, uma lógica totalmente de mercado, é igual. Só muda a cor da bandeira. Emprego, emprego, emprego e o resto não interessa. Quando foi da operação Influencer, mais do que o estrito caso, a nível local todos vieram a partilhar uma mesma linha fundamental: os projectos não podem parar, queremos desenvolvimento. Por outro lado, em São Domingos ou no Cercal, geraram-se pequenos movimentos de cidadãos que têm feito um trabalho imenso, porque há a consciência da destruição da identidade rural que os levou a viver ali. Aí é possível chegar próximo das pessoas e ser compreendido porque há de facto uma fractura. Aqui o grande desafio é como conseguirmos criar uma narrativa que seja aceite e consiga disputar o espaço público desta identidade e dependência industrial. Há uma incapacidade muito grande de quem defende os caminhos alternativos em derrubar a barreira da comunicação.»
O que mobiliza?
«A percepção da transição permanece muito no campo teórico académico», acaba por nos dizer António Pusceddu. «Poderemos falar de muitas respostas, como a reindustrialização noutro sentido, mas qual é o sujeito que transportará as respostas? Não é apenas elaborar as respostas, mas qual é essa massa crítica. O facto de não existir talvez advenha desta ser uma cidade constrangida em termos de dimensão, apesar de agora não sabermos exactamente quantas pessoas estão a morar em Sines. Moro no bairro Amílcar Cabral, onde há uma associação que funciona como apoio aos migrantes, que estão a aumentar. A conjuntura é super favorável para o capital, com milhares de trabalhadores à disposição, sem nenhuma responsabilidade em termos de emprego numa selva de empreiteiros.»
Bruno contrapõe a ideia de uma reindustrialização apelando ao papel do Estado e aos empregos para o clima. «É obviamente muito difícil voltarmos à ideia da pequena aldeia, até porque há uma identidade industrial aqui que não pode ser desvalorizada. Pelo que se quisermos fazer uma reindustrialização adaptada à nossa realidade e aos novos desafios, nomeadamente à questão climática, que tenha uma perspectiva social agregada, temos de pensar que tipo de indústrias faz sentido existirem.»
Intersectando a linha condutora deste raciocínio, António, antropólogo à escuta, liga a omnipresente visão trabalhista com «essa ideia do senso comum, banal, mas recorrente, de que “as pessoas só pensam no trabalho”. E aí vês as dimensões de vida a esvaziarem-se, da vida cultural, da vida em comunidade. Os sítios de referência da cidade abandonados, como se esta fosse somente uma reserva da força de trabalho.»
Chegamos ao fim da conversa e para Bruno Candeias «a propaganda que é feita, muito forte e difícil de combater, é de que Sines vai se transformar radicalmente num pólo industrial verde. Essa é a falácia. E não há uma conexão entre as pessoas que aqui vivem e as pessoas dos territórios que vão ser sacrificados aqui ao lado. Propositadamente. Pelo que há que tentar conseguir criar um elo entre tudo isto.»
Para António Pusceddu «fica a pergunta em cima da mesa: como é que essa articulação consegue ir além da pequena obrigação do indivíduo, ou seja, qual é o motivo mobilizador? A defesa do ambiente, a justiça climática, concordamos todos, mas há que aumentar a parada. O discurso climático é “o” discurso, logo subordinado à justiça climática algo que me parece politicamente um bocado míope. Podemos todos concordar, mas aqui a mobilização está a fazer-se para quê, exactamente? Parece-me demasiado evanescente. Não quer dizer que a questão climática não seja um problema, mas será um motivo socialmente mobilizador fora de alguns contextos?».
Legenda da fotografia [em destaque]: Central Termoeléctrica de Sines, 2007 | Fotografia de João Campos (CC 2.0]
Artigo publicado no JornalMapa, edição #42, Julho|Setembro 2024.
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