Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Sines, a megalomania triunfante
A vida em Sines mudou drasticamente em 1971, quando, por decisão do Estado Novo, se impôs a criação do Complexo Industrial de Sines. Tão pouco o 25 de Abril travou a forja de uma identidade industrial da qual não há volta atrás. O quotidiano das populações alicerçou-se numa ideia da modernidade e progresso que subjaz à dicotomia entre «trabalho» e «ambiente». Entre uma indústria que fixa as populações, lhes aumenta os rendimentos e os níveis de consumo e uma acelerada perda da qualidade de (e da) vida em todos os seus elementos básicos – no ar, na terra e na água –, geram-se lutas pelo território. A «competitividade nos mercados internacionais», assim decretava Marcello Caetano e todos os que se lhe seguiram, ditava o porto de águas profundas como porta de entrada europeia de energias fósseis, acoplada a uma vasta área industrial petroquímica.
Adentro que vamos no século XXI e o crescimento portuário de Sines surge a par de dois novos paradigmas industriais: a economia dos dados digitais e a transição energética «verde». A demanda energética necessária ao novo figurino industrial de Sines faz escalar o conflito territorial a toda a região alentejana, que reclama novas zonas de sacrifício para Centrais Solares, Eólicas e Linhas de Alta Tensão. Tomemos o fio à meada da história recente de um território que em permanente ecocídio se foi – assinalemos a contrariedade do verbo – naturalizando como território industrial.
Obra industrial centralista, Sines é hoje um concelho onde metade do território é propriedade estatal.
O devir industrial
O devir industrial de Sines é inaugurado pela transformação da cortiça, ainda no século XIX. Entre 1890 e 1960, para além da indústria corticeira, desenvolvia-se a indústria conserveira e o sector marítimo: pescadores e estivadores. Assim chegou o caminho-de-ferro. Em 1911, as fábricas já ocupavam um terço da população activa de Sines. Entre 1911 e 1950 a população de Sines duplicava de 4794 para 9490 habitantes. Apesar disso, a vila mantinha as suas actividades artesanais e práticas «vindas do fundo dos tempos», nas palavras de Sandra Patrício, do Arquivo Municipal de Sines.
A doença do gigantismo
Quando Marcello Caetano decreta, em 1971, o grande complexo portuário e industrial, nada mais será igual. Apesar da crise do petróleo de 1973, o Gabinete da Área de Sines (GAS) – «uma espécie de Estado dentro do próprio Estado fascista», dizia o comunista Américo Leal (1922-2021) – irrompia em Sines e Santiago do Cacém, impondo a expropriação das terras. «O momento da “modernização” da burguesia industrial e da tecnocracia havia chegado», como disse a socióloga Teresa Patrício, num artigo de 1991.
O desígnio de Sines será confirmado, após o 25 de Abril, pelo III Governo Provisório de Vasco Gonçalves, que mantém a zona de actuação directa do GAS «para o prosseguimento da realização do complexo urbano-industrial». Américo Leal recorda como, de imediato, uma Comissão de Redenção do Povo de Sines veio exigir o saneamento do GAS. Nesse Agosto quente de 1975, Afonso Cautela (1933-2018) relata, no jornal O Século, como camponeses, rendeiros e pequenos proprietários resistiam ainda ao avanço industrial até chegarem os carros militares do R11 de Setúbal para «restabelecer a ordem» em nome do «bom andamento dos trabalhos, com graves prejuízos para a economia do país», cedendo as terras aos novos donos industriais. Este percussor do movimento ecologista português diagnosticava a «doença do gigantismo» do projecto de Sines: um «plano de megalomania triunfante» para «realizar à vontade o Ecocídio sistemático». O socialista Artur Costa Pina, num testemunho apelidado de “História Trágico-Industrial”, recorda Sines como uma «enorme “residencial” com uma população flutuante de milhares de pessoas com alto poder aquisitivo que implicou por reflexo um alto custo de vida», tendo a autarquia chegado ao 25 de Abril numa «situação de quase rotura do tecido social». Por tudo isso, em Fevereiro de 1975, operava um Grupo de Trabalho de Informação da População que, em plena Revolução, não se esquivava à tarefa de fazer cumprir o sonho capitalista de Marcello Caetano.
Expropriações e terrenos ao abandono
Numa faixa de mais de 35 quilómetros e cerca de 41 mil hectares, surgia um novo porto, um complexo industrial e uma cidade de raiz: Vila Nova de Santo André, projectada para 100 mil habitantes, onde vivem hoje cerca de 11 mil, e que, junto com Sines e Santiago do Cacém, acolhia a nova população industrial, de migração interna e da vaga de retornados.
Em 1978 tinha início a laboração da refinaria da Petrogal e a Companhia Nacional Petroquímica, actual REPSOL, e, em 1979, a Central Termoeléctrica a Carvão da EDP. O novo porto torna-se a porta de abastecimento energético do país (petróleo e derivados, carvão e gás natural). Entre 1972 e 1981, a população de Sines cresce 92% e o centro urbano 94%. O nível médio de rendimentos aumenta significativamente, mas os pescadores e pequenos proprietários agrícolas são prejudicados, uns pela contaminação do peixe, outros pelas expropriações. Até 1984, 80% de quase 22 mil hectares previstos inicialmente são expropriados. Na memória de “Lavradores e Ceifeiros, entre a Lagoa de Santo André e o Vale do Sado” (2021), Dina Calado diz-nos, sobre os montes alentejanos que hoje vemos em ruínas, que «não foram as actividades industriais que preencheram o espaço antes ocupado pela agricultura, permanecendo os terrenos ao abandono, por cultivar até à extinção do Gabinete da Área de Sines, anos oitenta dentro, justamente toda a área que fora expropriada invocando fins de utilidade pública, o que deixou acesa até hoje tensão social».
Obra industrial centralista, Sines é hoje um concelho onde metade do território é propriedade estatal: 5,7% de órgãos da administração local; 44% de órgãos da administração central, frente a 49% de particulares e sociedades comerciais.
Se no final dos anos 80 apenas 15% da área total industrial estava ocupada, à entrada do novo século assiste-se a um novo fôlego vindo de várias empresas nacionais e estrangeiras. Sines, que somava cerca de 12 000 residentes nas décadas de 80 e 90, chega aos censos do século XXI com 14 000. Em 1988 fora finalmente extinto o GAS, hoje substituído pela AICEP Global Parques, gestora da Zona Industrial e Logística de Sines, a maior área do tipo em Portugal. A Zona Atividades Logísticas de Sines, na zona intra-portuária, é gerida pela Administração dos Portos de Sines e do Algarve. Outras três zonas de indústria ligeira encontram-se sob gestão municipal, restando destas ainda uma zona para a instalação de novas indústrias.
Poluição, o custo a pagar
A década de 1980 põe em evidência o custo a pagar. A poluição. Constantes derrames dos efluentes da refinaria e das novas fábricas do complexo petroquímico nas linhas de água. Ausência de estações de tratamento de águas e um fedor nos campos e na praia. A refinaria faz descargas através do tubo submarino a uma milha da Costa do Norte, onde também os petroleiros lavam os tanques, cujo crude acosta às praias de São Torpes e Sines. Do impacte sobre a pesca resultará, em Janeiro de 1982, aquela que foi apelidada a primeira «greve verde» em Portugal, controlada pelo executivo autarca comunista, que celebra vitória com a abertura de uma ETAR. O problema estava, porém, longe de terminar. Em 1987 dá-se o derrame do petroleiro Nisa; em 1989, do petroleiro Marão. Em Maio de 2011, é interdita a pesca na zona da Costa do Norte por ser o pescado impróprio para consumo. Em terra, a Central Termoelétrica a Carvão da EDP era quem mais poluía a atmosfera em Portugal. No projecto de Sines, refere Teresa Patrício, «a noção de irreversibilidade, genericamente aceite pelo Estado e impondo uma intervenção persistente, tornou-se no princípio da “absoluta irreversibilidade”. Quanto à participação das “massas democráticas”, esta tem vindo a aumentar mas sempre subserviente à lógica imposta pelo plano inicial».
Em Janeiro de 1983, o poeta Al Berto escrevia da sua casa na Rua do Forte, em Sines: «Anoiteceu. A vila está cercada por pipelines, luzes indecifráveis, chaminés gigantescas, máquinas que corroem a terra, traçam acessos rodoviários, fazem tudo o que se lhes depara pelo caminho. (…)
Dentro de pouco tempo será insuportável viver aqui. O vento e as águas chegarão contaminados. A praia será um areal negro, um pesadelo sem nome, onde morrem as palmeiras, que ali plantaram. Os barcos serão os nossos fantasmas vagueando sobre as águas sujas de óleo, e uma gaivota perder-se-á no veneno da alba. Em mim nunca mais fará claro, nunca mais amanhecerá. Nem será preciso acender qualquer luz de vigia… eu morro com as paisagens».
Da praia ao resort
A velha tradição veraneante da praia de Sines foi sendo contrariada como opção de desenvolvimento turístico. Ainda assim, com vista à conservação de habitats de elevada biodiversidade, é criada em 1988 a Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina e, em 1995, o Parque Natural que se inicia em São Torpes, a sul de Sines.
A aplicação de normas e avaliações ambientais, a partir da década de 1990, não impediu a crescente facilitação do licenciamento industrial ou dos «resorts» no eixo Tróia-Melides e, a sul de Sines, a partir de Porto Covo. Em Outubro do ano passado, e novamente no 25 de Abril deste ano, diversos colectivos da região marcharam em Sines e Lisboa reclamando justiça social e ambiental no litoral alentejano, e exigindo a voz das populações locais nos processos de decisão.
O discurso politicamente correcto anuncia uma nova vaga industrial, assente, em primeiro lugar, numa reconfiguração da base energética – do fóssil aos biocombustíveis, à energia eólica e solar, e à instalação de projectos na área do hidrogénio verde.
Crescimento do Porto de Sines
O crescimento do Porto de Sines avança. O terminal de contentores XXI do Porto de Sines, a funcionar desde 2003, em concessão por 30 anos à PSA – multinacional estatal da Autoridade Portuária de Singapura – emprega cerca de 1.200 trabalhadores em modo precário através da subsidiária Laborsines. Para lá dos portos de pesca, recreio e serviços, e do Terminal XXI, somam-se o terminal petroquímico, o de granéis líquidos, o de granéis sólidos e o Terminal GNL de Gás fóssil liquefeito da REN Atlântico, este movimentando mais de 50% do gás natural consumido em Portugal.
Em 2021 teve início a expansão da 3ª fase do Terminal XXI, com consequências na Praia de São Torpes. A conclusão está prevista para 2030, com um aumento da movimentação anual de 2,3 para 4,1 milhões de TEU (contentores de 20 pés). Eis que Sines entra na disputa pelos maiores porta-contentores. Com mais de 4000 comboios por ano a sair do porto, à expansão associa-se o novo Corredor Ferroviário Internacional Sul, que fechará o Corredor Atlântico da Rede Transeuropeia de Transportes e encurtará a ligação à fronteira com Espanha em 140km, quando concluído o troço Évora-Elvas em 2025. Apesar disso, está também anunciada nova ligação Sines-Grândola (para lá do troço existente Sines/Ermidas do Sado/Grândola) no Plano Nacional de Investimentos 2030, que tem vindo a ser contestado pelos impactes no montado, na Serra de Grândola, em ecossistemas lagunares e na proximidade às populações.
Nova vaga industrial − resistência à vista
Na actual revisão do PDM, é declarado que a cidade de Sines «está preparada para lutar contra um excesso de indústrias que possam vir a estiolar Sines e a prejudicar as suas condições de vida e ambientais». Não negando «a vocação que foi imposta a Sines e que continua a fazer sentido para o desenvolvimento do Alentejo e do País», projeta-se «Sines a renascer das cinzas e dos fumos e efluentes poluídos, à procura de um espaço humano e economicamente positivo, com os seus símbolos e convicções».
O discurso politicamente correcto anuncia uma nova vaga industrial, assente, em primeiro lugar, numa reconfiguração da base energética – do fóssil aos biocombustíveis, à energia eólica e solar, e à instalação de projectos na área do hidrogénio verde; em segundo lugar, no Sines TECH – Innovation & Data Center Hub, que prevê um centro de processamento de dados (data center), usufruindo do cabo submarino EllaLink de transmissão de dados que liga Fortaleza (Brasil) a Sines e do projectado Olisipo que ligará Sines-Lisboa, onde se encontram os cabos 2Africa e Medusa com ligação a Carcavelos.
Os anos 20 do século XXI apresentam-se como novo capítulo desta história industrial num palco feito de diferentes zonas de sacrifício, quer naturais, quer humanas. Mas anunciam-se também a resistência e recusa da «absoluta irreversibilidade» desta ideia de progresso.
Legenda da fotografia [em destaque]: Sines, anos 1970. Fotografia de J. M. Cavalinho no blog Cabo de Sines
Artigo publicado no JornalMapa, edição #42, Julho|Setembro 2024.
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