Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Transição Energética e Zonas de Sacrifício
Perante o novo paradigma industrial de Sines, de que Transição Energética estamos a falar?
O objectivo declarado seria uma “descarbonização”, mas na realidade esconde várias estratégias políticas com o objectivo de um crescimento económico contínuo e acelerado. Nós vivemos na periferia de um país periférico, uma coisa que dói para aceitar. As estratégias vêm de cima: do Olimpo de Bruxelas e por via de consequências mais globais, dos conflitos geoestratégicos nos quais a Europa quer assegurar a sua situação num novo paradigma que não vai ser muito sustentável. Temos aqui uma expansão industrial centralizada num paradigma chamado “verde”, um eufemismo infeliz e que é implementada à medida dos interesses económicos corporativos e com a benesse das autoridades competentes e representantes políticos. É lógico que tudo isso não vai servir o bem público. Um neoliberalismo implementado a ferro e fogo e que chega próximo de um capitalismo selvagem, quase um neocolonialismo, como estivéssemos a ser colonizados por nós próprios, pelos filhos e vizinhos. O pior de tudo é que isso é uma réplica do modelo dos combustíveis fósseis: não há consideração pelos bens comuns, pelos limites ecológicos aqui na região e no planeta.
Se não estamos a falar da necessária Transição Energética, para quem serve verdadeiramente esta transição?
Vamos ser mais explícitos: quem lucrará com isso? Grandes corporações onde temos vários actores, como as grandes empresas petrolíferas que agora têm sempre um braço de renováveis e coisas como empresas de capital, como a famigerada Aquila Capital baseada em Hamburg, com um portfolio de energias renováveis e projectos verdes. O real interesse destes bancos de investimento é implementar estes megaprojectos numa escala considerável, levando-os ao ponto de comprovada capacidade operacional para depois transaccionar (vender, comprar, consolidar) esses assets [activos económicos]. E continuamente capitalizando-os em termos de créditos de carbono, essa grande falácia, e da Net Zero [mercado de créditos de carbono]. O capital de uma Aquila Capital (que fundada em 2001 gere mais de 15 mil milhões de euros em renováveis e imobiliário) é baseado em créditos de carbono e para esses big players do momento é um mercado fantástico. É a nova corrida ao petróleo e ao gás, só que agora nas energias renováveis. E por cima dessas empresas operacionais há o Banco de Investimento Europeu que participa em várias delas. Toda uma estrutura montada para um sistema centralizador e não democrático.
Depois, a escala aqui é fundamental. Se pudéssemos pulverizar pequenas unidades fotovoltaicas na escala apropriada, no terreno apropriado, que não seriam zonas agrícolas, mas descentralizadas em terrenos e áreas artificializadas, acho que essa seria uma premissa para uma transição energética mais justa e mais democrática. Mas não é isso que está acontecendo.
Mas em Sines falamos de um aumento energético que se torna complicado. Não estamos a criar energia renovável apenas para suprir as comunidades, há aqui um outro cliente em jogo.
Esse grande cliente é todo o conglomerado de Sines e em Portugal será também Matosinhos. Em Sines, perante os projectos de expansão previstos, estamos a falar de um incremento de sete a oito terawatts/hora por ano. Só o Data Center são quase 5000 GWh anuais. Em 2021, o consumo anual em Sines rondava os 1201 GWh anuais, pelo que calculando somente a energia necessária ao Data Center (4769,8), ao projecto de Hidrogénio da Galp (770) e do Green H2 (495) e a fábrica de baterias de Lítio (450), chegaremos a um gasto expectável mínimo de 7696 GWh/ano. Estamos a falar de um incremento de sete a oito vezes mais e que continua a expandir-se. Qualquer coisa num raio de 70 quilómetros ou mais em termos de produção energética ligada à rede vai cair em Sines. A imagem que uso é a de um buraco negro onde não sabemos qual o horizonte de eventos, o ponto de não retorno.
Qual é essa geografia das zonas de sacrifício de que estamos a falar?
Em Sines como nó da rede eléctrica nacional, há claramente a intenção de fazer o abastecimento por todos esses mega projectos, como esse infeliz nomeado Parque Solar Fernando Pessoa em Vale de Água e São Domingos (o poeta deve estar-se virando na cova…) e o projecto do Cercal por exemplo. Todos eles feitos em função de três factores estratégicos. Um é a proximidade aos pontos de intercepção à Rede ou implicando uma Linha de Muita Alta Tensão até à Subestação de Sines; o segundo é a utilização de grandes áreas de terrenos planos, evidentemente agrícolas, ou com montado ou eucaliptos; o terceiro é a estrutura do domínio da terra que reflecte um passado do Alentejo: grandes proprietários que vão lucrar – e nem moram aqui – com essa tal transição energética. Nós estamos a copiar exactamente o mesmo modelo extractivista e feudal, até. Os lucros são absurdos, estão a oferecer algo como 2000 euros por hectare de renda por ano.
E depois há aqui um outro factor, temos cada vez menos pessoas que possam reclamar outra vivência para esses territórios.
E aí temos um efeito interligado. Esses projectos vão esvaziar ainda mais o território. Impõem não termos uma voz activa, não termos massa crítica. Imagina se fossem fazer um megaparque em Monsanto, ao lado de Lisboa…
Comparando Vale de Água e São Domingos e o Cercal, esta última parece beneficiar de alguma massa critica neo-rural que motiva uma reacção.
A resposta é muito simples: vê a vila do Cercal e vê as aldeias de São Domingos e de Vale de Água… Depois tem outro aspecto. O que me surpreendeu e continua me surpreendendo é um receio muito grande em ambas as comunidades de sair à tona. Pessoalmente dizem-nos que estamos certos, mas “o meu primo e o meu filho trabalham na Câmara ou tem um alojamento local financiado pela Câmara”. Toda uma rede de dependência e de subsídios que é inata à rede social daqui. Há uma grande dose de receio em ser visto como um oponente.
Qualquer coisa num raio de 70 quilómetros ou mais em termos de produção energética ligada à rede vai cair em Sines.
Voltando a Sines, um outro confronto que surge resulta da vivência industrial que se separou da ruralidade. Se as pessoas têm consciência dos custos, no tema da poluição e das nocividades do trabalho industrial, já hoje parece difícil comunicar a quem trabalha no Complexo de Sines a urgência destas lutas a partir das novas zonas de sacrifício rurais, perdida a memória e solidariedade entre si.
É essa mesma malha de dependência económica que distancia as pessoas que aí trabalham dos efeitos desse tipo de trabalho nas áreas circundantes. Tocas numa coisa importante que são as externalidades desse mundo e do novo monstro de Sines. Essa área de sacrifício é também a área onde as nuvens de partículas finas e gases descem desde Sines. Daquelas chaminés, a sua distribuição é um cone a jusante do vento e todas as partículas e gases atingem o solo 30 a 50 quilómetros de distância. Há uma zona de sacrifício em termos de saúde ao redor de Sines, como também dentro nas próprias instalações. O número de cancros e aberrações genéticas, perdas de parto, é já bastante elevado em Sines e na região circundante. Esse estudo não está feito porque não há vontade de o fazer. Não há uma avaliação estratégica ambiental, social e de saúde pública do impacto da nova expansão. Mas há uma necessidade de saber de onde vêm essas fontes difusas e qual é a carga adicional que esta expansão vai causar. Há sinergias, efeitos cumulativos dessas indústrias, e tudo isso tem um impacte muito maior do que aqueles pequenos impactes minimizados nos Estudos de Impacte Ambiental, omissos, pré-aprovados e dentro de um processo viciado em que as autoridades competentes fecham um olho ou dois.
E como se ultrapassa a dicotomia ambiente/ trabalho?
Na dicotomia trabalho/ambiente e saúde pública é a velha história: não se faz uma omelete sem quebrar ovos. Somos todos responsáveis como consumidores ou produtores, nesta sociedade globalizante. Não é um paradoxo, mas uma relação directa. No nosso sistema de vida, os nossos padrões de consumo, as nossas expectativas, ultrapassam largamente o que a nossa comunidade natural, digamos assim, pode aguentar, pelo que vamos sofrer as consequências, fechando o círculo que isto é.
Qual seria então o território que haveríamos que construir?
A pergunta fundamental. Eu não vejo Sines como algo a ser fechado e destruído, mas para ser remodelado em termos sociais, ambientais e tecnológicos. Se estivéssemos num avião poderíamos ir numa trajectória planeada e com uma aterragem suave, ou como tem sido, planamos até cairmos bruscamente numa catástrofe. Estou a falar do óbvio, mas como poderíamos contribuir para uma aterragem mais suave? Vê como estou evitando o termo decrescimento, mas é isso mesmo. O decrescimento planeado seria uma solução. Mas teríamos de passar por uma mudança de valores muito grande e não vejo muito bem como o vamos fazer. A nossa posição pessoal perante tudo isto é também a incoerência. Somos parte integrante e ao olharmos nos olhos dos nossos filhos e netos vamos ver uma realidade muito incómoda. Existe uma opção fácil? Não. O decrescimento planeado é politicamente impossível, não tenho grandes esperanças de que a descida seja suave.
Se olharmos ao nosso redor num círculo de 70 km, temos uma tempestade perfeita. Uma transição energética que não é transição, mas uma adição de energia ao que já existe, duplicando sete a oito vezes sua escala, ou mais. A expansão industrial, com todo esse pesadelo sobre os recursos, impactes ambientais, sociais, etc. Depois, questões como a falta de água e os projectos de agro-indústria que se multiplicam por todo o lado; projectos turísticos de luxo; novas minas, todo um novo cenário de minerais críticos para a Europa. Só falta um elemento para a tempestade perfeita: o nuclear. E a pressão do nuclear vai aumentar, porque estas estratégias políticas dependem de uma aceleração muito grande da questão da energia. Todo este discurso de crescimento infinito vai desembocar aí, com as suas consequências. Estamos a ser levados por uma falsa narrativa, sem pensar muito em consequências e sem termos alternativas de momento.
E não estamos a falar em Sines como se fosse um sistema único, estamos dentro de um sistema muito grande. A geoestratégia de recursos, desde metais a fontes de energia, a trabalho barato, etc., todo um cenário de conflitos inevitável.
É difícil ser optimista, mas algo te move a ti e aos jovens também, que são valores que nos tocam, como a natureza, a solidariedade…
É por aí. Não temos uma crise de recursos naturais, temos uma crise de valores. Uma crise de valores interna, de comunidade e pessoal. E aqui vem a noção de Gaia, onde a base comum seria a reverência à natureza, essa conexão profunda com os valores naturais. E até lá, continuar a construir comunidades saudáveis e solidárias num ambiente saudável.
Infografias de Ana Farias
Artigo publicado no JornalMapa, edição #42, Julho|Setembro 2024.
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