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Lendo: Guerra e paz: o capital ou a vida!

Guerra e paz: o capital ou a vida!

Guerra e paz: o capital ou a vida!


Entre 8 e 11 de Setembro, activistas de mais de 20 países e culturas – da Suécia à Eslovénia, de Portugal ao Azerbaijão, do Curdistão à Ucrânia… – reuniram-se em Sofia, capital da Bulgária, para debater a actual conjuntura política e coordenar formas de luta contra as restrições à vida colocadas pelo capital. Com o cenário de fundo de uma guerra no coração da Europa, uma centena e meia de activistas convocados pela Transnational Social Strike Platform (TSS) partilharam pontos de vista sobre a degradação das condições de reprodução social em curso e problematizaram as causas da sua origem: a externalização dos custos causados pela guerra na Ucrânia e pagos pela classe trabalhadora; a migração e o regime de fronteira da UE; a feminização da sobrevivência e os desdobramentos patriarcais; o imparável fluxo do capital e a fascistização dos territórios; e as ilusões do “capitalismo verde” na era da transição energética. A reportagem completa sobre o encontro internacional promovido pela TSS, plataforma que visa “construir as condições de possibilidade de uma greve social transnacional”, pode ser lida no site do jornal MAPA. Do relato repleto de imagens e de episódios que traduzem a vivacidade dos dias em Sofia, destacamos as passagens sobre o tema da emigração e da guerra em curso.


«A classe trabalhadora sempre foi uma classe migrante»

No primeiro painel, “Migrant and Feminized Labour”, Valentina Vasilionova, a presidente da Federação Europeia dos Sindicatos de Trabalhadores Agrícolas, sustenta que «as mulheres estão na fundação da reprodução social» e traça a imagem de que o «pão que comemos tem o cheiro do seu esforço». Mulheres que, com a precarização das condições de vida na Bulgária, foram forçadas a emigrar, passando a trabalhar em actividades agrícolas, separadas das suas famílias e enviando os seus ordenados. O sector alimentar da UE está fortemente dependente de uma força de trabalho não nacional, empregando um elevado número de trabalhadores sazonais e migrantes, uma realidade a que o lock-down de fronteiras a contas da pandemia deu particular visibilidade. Estima-se em um milhão o número de trabalhadores agrícolas. Depois de vinte anos de luta, Vasilionova enfatiza que em Julho deste ano a UE reconheceu os direitos sociais dos trabalhadores agrícolas, apelando aos Estados-membros para assegurar a correcta aplicação da legislação comunitária relevante para combater o abuso e proteger as vítimas. Menos mal se a directiva comunitária sair do papel… Contudo, a estimativa oficial reflecte apenas a força de trabalho legal, excluindo os indocumentados. A realidade do trabalho agrícola sazonal é dura, levada a cabo em circunstâncias de sobre-exploração laboral e sob condições de vida habitualmente precárias, em alojamentos partilhados, nos piores casos em celeiros, contentores ou abrigos rudimentares, sem água corrente, electricidade ou saneamento apropriado, como sucede em Portugal particularmente nas plantações de morangos e mirtilos ou nos olivais e amendoais de produção superintensiva, em certas zonas do Alentejo. Os migrantes indocumentados, mas também os legais, podem ser ainda vítimas de máfias ilegais. Formas modernas de escravatura que coagem os trabalhadores a viver em permanência sob a ameaça de perderem os seus empregos, de serem repatriados ou de sofrerem danos físicos ou violência psicológica. As mulheres, em particular, correm o risco adicional de serem exploradas e abusadas sexualmente como parte intrínseca de um sistema organizado de exploração, abusos e degradação extremos que têm sido reportados em algumas regiões de Espanha (Huelva e Almeria), Itália (Ragusa, na Sicília) e no Alentejo (Portugal). A sindicalista búlgara reforça que «a situação dos trabalhadores sazonais e migrantes é inaceitável». Defende que precisamos de «trabalho decente e salários justos de maneira a dar outra perspectiva às pessoas nos seus próprios países». Não hesita em reivindicar que a «Europa tem de nos dar um futuro melhor».

migrantes

Kostadinka Kuneva tornou-se um símbolo da luta sindical das mulheres migrantes, não só na Bulgária, mas também na Grécia. Sem dúvida, foi a participante mais acarinhada pelos presentes ao longo das jornadas de quatro dias. Se em 2008 o primeiro estampido da rebelião nas ruas de Atenas ficou marcado pelo assassinato do jovem Alexandros Grigoropoulos, outro episódio brutal indignou a sociedade grega. Kostadinka, à época sindicalista e líder do Sindicato Grego de Empregadas de Limpeza e Empregados Domésticos, regressava a casa, terminado o seu turno da noite, quando foi atacada por agressores desconhecidos com ácido sulfúrico. O ataque deixou o seu rosto desfigurado, causando a perda de visão num dos seus olhos e, forçada a engolir uma parte do ácido, danificando severamente órgãos internos. Formada em História, Kostadinka trabalhava como empregada de limpeza para a empresa IKOMET, e o ataque foi descrito como a agressão mais grave a um sindicalista na Grécia em mais de meio século.

Num extraordinário registo de humildade, Kostadinka nunca se referiu ao episódio pessoal de violência que sofreu, em que confluíram o patriarcado do salário e a xenofobia, preferindo falar das condições estruturais de exploração dos migrantes e da violência a que estão submetidos. Entre vários exemplos, mencionou o caso dos 28 migrantes do Bangladesh que foram feridos num tiroteio, perpetrado por um dos supervisores da plantação de morangos de Nea Manolada (Grécia, 2013), depois de os trabalhadores se auto-organizarem e reclamarem seis meses de salários em atraso. A salada de morangos sangrentos, com os produtos tóxicos do racismo e o aditivo da exploração laboral, atingiu o escândalo quando os capatazes e os donos da plantação foram ilibados em tribunal, num exemplo demonstrativo da correlação entre a reprodução selvagem do capital e as estruturas estatais de coacção legal.

Ao conviver de perto com os dramas mais duros da migração «é difícil não rejeitar em absoluto a Frontex»

Keith Taylor, dos Angry Workers (UK), aproveitou o momento para lembrar que «a classe trabalhadora sempre foi uma classe migrante». De facto, o poder coage os trabalhadores a migrar e o capital move-se. Desde a transição do feudalismo para o mercantilismo que a materialidade dos processos históricos de herança imperialista e neo-imperialista do movimento do capital condicionam, quando não obrigam, «as pessoas e as coisas», pluriculturas e seus estilos de vida, a saírem dos seus lugares. Forçadas a abandonar os seus lugares de origem, a classe migrante aspira ao direito de sobrevivência ou «direito de fuga» (Sandro Mezzadra) ao mesmo tempo que assegura a reprodução do capital e o poder de uma nova ordem mundial. À luz desta complexidade – a relação entre fluxos do capital e fluxos migratórios –, em que termos podemos descrever a política migratória da UE no seu todo? A fronteira não dá descanso. Não há meses sem mortes, seja na vala de Ceuta, seja em águas italianas ou gregas, seja na fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia, seja na Turquia, na Líbia ou no Níger, a fronteira fáctica mais a sul da Frontex. Tanto em terra como no mar, o risco é permanente. É suficiente mover-se para que o direito à vida seja posto em cheque.

Aigul Hakimova conhece como a palma da mão este drama. Há vinte anos que a activista quirguize faz parte do colectivo Infokolpa Initiative para denunciar o regime de fronteira da UE. «É um modelo que cria condições específicas de exploração dos migrantes. Ao abrir ou fechar as fronteiras em determinados locais, ao filtrar e seleccionar quem pode e quem não pode passar, ora empurra as pessoas a sobreviver em condições precárias, ora força-as a atravessar fronteiras em circunstâncias perigosíssimas». Aigul vive em Liubliana e, apesar de sublinhar que «os migrantes ocupam uma faixa crucial de sujeição à exploração do capital dentro da UE», considera que «a ideia do projecto de uma união europeia não é má». Evocando os episódios de extrema violência das forças da ordem polacas na raia com a Bielorússia, salientando «que todo o sistema de protecção elaborado pela UE se tornou refém de um Estado que implementou as suas próprias regras», sustenta que preferia «uma autoridade europeia a controlar o espaço Schengen do que as polícias nacionais». Ilre tem uma opinião mais céptica. A activista de origem turca está na frente da defesa dos direitos dos migrantes na ilha de Lesbos e explica que ao conviver de perto com os dramas mais duros da migração «é difícil não rejeitar em absoluto a Frontex», um questionamento debatido no workshop “Migrant struggles against exploitation, racism and patriarchal violence”. Um tanto aborrecida com a deriva teórica das discussões e enquanto partilha um alperce e recebe em troca chips de coco, contextualiza que «a realidade é tão dura que a maioria dos activistas não aguentam mais de seis meses a dedicar o seu tempo em Lesbos». É mais do que compreensível. Se até depois de algumas horas de trabalho teórico precisamos de vir apanhar ar…

Marco Meliti

«Esta guerra não tem começo nem fim»

O espectro da opressão homo-patriarcal contra a condição das mulheres exacerbou-se com a guerra na Ucrânia. Sasha Talaver faz parte da Plataforma de Resistência das Feministas Russas contra a guerra (Feminist Anti-war Movement). Esclarecendo que «as guerras imperialistas sempre fizeram parte da história russa», considera que o conflito actual «tornou visível e acelerou o desprezo contra os discursos feministas». Por um lado, exemplificado na normalização do discurso macho-facho de humilhação da mulher em geral, nomeadamente a propagação de um discurso de ódio nas redes sociais – «tenho um sofá para partilhar com refugiada ucraniana, com cama e comida» –, por outro, revelado na recuperação pelas forças oficiais do governo de Putin do conceito de «mãe heroína», vulgarizado durante a Guerra Patriótica (II Guerra Mundial) para enaltecer as mulheres com mais de onze filhos! Sasha argumenta que a guerra «não é um acontecimento discreto que tem um fim e um começo: a guerra é apenas o culminar ou o clímax da violência patriarcal em que estamos a viver. Para nós, feministas, é óbvio que esta guerra faz parte da violência contra a qual temos vindo a lutar e continuaremos a lutar». O discurso antibelicista e antipatriarcal da activista russa ganhou amplitude com a intervenção logo em seguida de uma «aliada», a feminista ucraniana Olega Lyubchenko, que revelou que o Movimento transnacional conta com a adesão virtual de mais de 80 mil pessoas. Preocupada com esta problemática, a activista italiana Paola Ruden pergunta-se se o movimento Feminist Strike Movement «vai perder com a guerra aquilo que conquistou nos últimos anos», constatando que «a guerra vai afectar e mudar as nossas condições de vida e de reprodução social». Aquilo que a historiadora Silvia Federici chamaria uma nova forma de caça às bruxas, capturando o útero das mulheres e perseguindo quem resiste. O tempo passa, mas a mesma luta permanece, e precisa de aliadas e aliados.

A mensagem do feminismo de hoje no encontro de Sofia esteve à altura dos tempos, tal como há mais de um século fizeram Emma Goldman e Rosa Luxemburgo, que se opuseram terminantemente à I Guerra Mundial. Apesar da perseguição que sofreram – a primeira punida pelo governo “Democrata” dos EUA com pena de prisão e o exílio, a segunda pagando com a vida às mãos dos capangas do SPD alemão –, ambas as revolucionárias feministas e antimilitaristas fizeram tudo o que puderam para demonstrar que a guerra era um “baluarte” de expansão do imperialismo e de rentabilização do sistema capitalista. Porém, no novo milénio, as guerras não são apenas um mecanismo de expansionismo e monetarização, os conflitos bélicos são parte da normalidade capitalista de enfrentar os seus limites estruturais, um desdobramento que prefigura cada vez com maior evidência um futuro próximo de controlo eco-fascista da escassez. Uma problemática que urge a favor de um questionamento: irá o sistema capitalista gerir a fase do seu próprio colapso sem o emergir do eco-fascismo?

a guerra «não é um acontecimento discreto que tem um fim e um começo: a guerra é apenas o culminar ou o clímax da violência patriarcal em que estamos a viver».

O afecto é político porque o capitalismo é tristeza

Embora no domingo, último dia do encontro, ainda tivessem decorrido actividades, já em modo desacelerado, o grande plenário aconteceu no sábado, ao final da tarde: “Permanent Assembly against the War: the challenges of a transnational politics of peace”. Isabella Consolati tomou a palavra pela Transnational Social Strike Platform, co-organizadora do simpósio activista, para esclarecer que «não estamos com nenhum estado-nacional no tabuleiro deste jogo, mas não somos neutrais. Estamos com as populações ucranianas e russas que aspiram a viver em paz. Estamos com aqueles que enfrentam as piores circunstâncias desta guerra, as mulheres, as crianças, a comunidade LGTB’+, os homens que se evadem». Nesse sentido, constatou que «a guerra serve para silenciar as populações» e sublinhou que estamos perante «uma guerra generalizada e não de um episódio isolado», salientando que «mesmo quando as tropas de Putin saírem da Ucrânia, a guerra vai continuar».

A TSS caracteriza a invasão da Ucrânia pela Federação Russa como a III Guerra Mundial. Numa intervenção emotiva, Aigul discordou, convicta de que começou em 1991, com o desmembramento da União Soviética. O grupo activista da Georgia aplaudiu. Falaram das armadilhas das revoluções das cores, no desmantelar do que restou do estado-social da Grande Mãe soviética. A activista ucraniana levantou-se e tomou Aigul nos braços. As filhas do mundo abraçaram-se. O afecto é político porque o capitalismo é tristeza. O bio-capitalismo desvia para a actividade produtiva e lucrativa o afecto dos seres humanos, o cuidado e a atenção, estirpando-lhes o coração, roubando-lhes a alma, sacrificando-lhes o corpo. Mas o amor não é só sentimento, é também acção, como nos ensinou Bell Hooks…

 


Fotografias de  Marco Meliti


Artigo publicado no JornalMapa, edição #36, Dezembro 2022|Fevereiro 2023.



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