Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Literatura Para Tempos Difíceis
No momento em que vivemos uma aceleração tecno-totalitária, os romances que aqui sugerimos para ler ou reler, no silêncio e na lenteza, podem bem ser vitualhas, dando a cada um(a) a oportunidade de fazer obrar o espírito crítico. Sumariamente vou recenseá-los.
Primeiramente, o célebre Frankenstein de Mary Godwin Shelley, companheira do maior poeta do seu tempo, Percy B. Shelley. Filha de William Godwin, autor do An Enquiry Concerning Political Justice (1791), que Pedro Kropotkine disse conter «a exposição sincera do que mais tarde foi conhecido com o nome de anarquismo», e, de Mary Wollstonecraft autora da obra que é ainda hoje considerada fundamental e fundadora do feminismo, Uma Vindicação dos Direitos das Mulheres (1796, editado na Antígona em 2017).
Frankenstein foi escrito em 1818. Pouco ou muito todos conhecemos a história. Um jovem de boas famílias lança-se um pouco ao acaso no estudo da biologia. Trabalhador incansável consegue realizar o sonho dos atuais transhumanistas: dar vida à matéria inanimada. «Foi numa sinistra noite de Novembro que pude finalmente contemplar o resultado do meu árduo trabalho. (…) À uma hora da manhã, uma chuva lúgubre martelava os vidros e a minha vela estava prestes a apagar-se, quando, sob uma luz moribunda, vi abrirem-se os olhos amarelos e baços da criatura. A coisa começou a arfar com dificuldade ao mesmo tempo que um espasmo convulsivo agitava os seus membros». A experiência torna-se um pesadelo. «O sonho desvanecia-se, enchendo-se o meu coração de um horror e de um asco de me tirar o fôlego. (…) Maldito seja, detestável demónio, o primeiro dia em que viste a luz! Maldita sejam (…) as mãos que te formaram!» Embora de início a criatura não tivesse malévolas intenções, por causa da perseguição cruel a que passa a ser objecto, acaba por se virar contra o seu criador. Existe aqui uma forte ligação à obra de William Godwin: a perseguição a que o ser-humano se vê permanentemente sujeito, quer pelos agravos e convenções sociais, quer pelo poder da lei. Tema que em William Godwin é uma obsessão, nomeadamente no romance Calleb Williams, e que Mary Shelley com uma imaginação mais invulgar desenvolve no seu Frankestein. Este é um romance epistolar de divertimento, onde as cenas de loucura e os crimes de sangue são utilizados como aviso perante a ambivalência do progresso técnico, o qual não tem limites de incómodos morais, éticos ou legais. Por consequência, o resultado é a criação de um monstro incontrolável.
Quando cada um de nós se adapta aos desastres, às obrigações que nos são hoje impostas e que nos acostumam de modo progressivo à perda das liberdades, outro livro a ler ou reler é o romance inesquecível de George Orwell 1984 (publicado em 1949). Uma distopia que interroga estes tempos de comunicação manipuladora, de controle tecno-cientifico e outras Novilínguas.
«Guerra é Paz. Liberdade é Escravidão. Ignorância é Força». Estes avisos não são só enunciados, servem para criar um ambiente de medo e de terror. Orwell descreve uma espantosa opressão totalitária, com vídeo vigilância total, polícia política, tortura. A teletela ominipresente na sociedade totalitária descrita por Orwell é o smartphone dos dias de hoje? Pura e simplesmente, em vez de uma terrível opressão, este esbulho desenrola-se hoje de maneira divertida, confortável e surge como uma necessidade técnica inevitável para gerir uma sociedade cada vez mais maquinal. Orwell também vê o desaparecimento da autonomia, o fascínio pelo Poder e pelas máquinas, como vontade de produzir um «homem novo». Cada ser-humano deve ser igual a todos os outros, ousar contrariar esta ordem significa deixar de ser cidadão e um perigo para a sociedade. «Como posso deixar de ver o que está diante dos meus olhos? Dois e dois são quatro. Às vezes são cinco. Às vezes são três. Às vezes são as três coisas ao mesmo tempo. Deves fazer maior esforço. Não é fácil recobrar a razão.»
Não é só um regime político que Orwell critica, mas um estado de espírito, uma mentalidade, que também se desenvolve nas nossas democracias. Os temas de Orwell são muito atuais.
No entanto, é o Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley que parece corresponder melhor à cultura capitalista em que vivemos, particularmente, pelo hedonismo que a atravessa. Aliás, estes três romances distópicos que aqui sugiro para leitura são complementares. Em o Admirável Mundo Novo, Huxley descreve um sociedade de tipo totalitário. Uma sociedade hierarquizada, racionalizada, que instaurou um implacável eugenismo de Estado onde os seres-humanos são fabricados in vitro. A produção de humanos «Alfa» geneticamente determinados para constituir a élite da nação, enquanto que os «Epsilons» são privados de inteligência humana. «Pela primeira vez na história, sabe-se perfeitamente para onde se caminha.» «Comunidade, Identidade, Estabilidade.» Os últimos humanos «selvagens», aqueles que não são produzidos cientificamente, são acantonados em reservas. A forma clássica de reprodução pelo sexo entre uma mulher e um homem é considerado como imundo e perverso. Graças aos meios de comunicação de massas e à droga, no romance o soma, a segurança material anestesia todo o medo de viver. O sexo desenfreado e o soma, «todas as vantagens do cristianismo e do álcool; nenhum dos seus defeitos», são encorajados para aniquilar qualquer resquício de instinto ou desejo de liberdade que surja. Um mundo asséptico, onde a doença e a velhice foram erradicadas de modo cientifico: «Civilização é esterilização». No seu livro, Regresso ao Admirável Mundo Novo (1958) Aldous Huxley conclui que o mundo se assemelha cada vez mais à sua distopia. Hoje, não podemos estar mais de acordo. Porém, como ainda não está completamente concluído, talvez, ainda nos reste espaço para contrariar este pesadelo.
Frankenstein
Mary Shelley
Tradução: João Costa Guimarães
Editores Edição ASA
1984
George Orwell
Tradução: Ana Luísa Faria
Antígona, 3 edição 2007
Admirável Mundo Novo
Aldous Huxley
Tradução: Mário-Henrique Leiria
Antígona, 1 edição 2013
Artigo publicado no JornalMapa, edição #36, Dezembro 2022|Fevereiro 2023.
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