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Lendo: Monstros debaixo da cama

Monstros debaixo da cama

Monstros debaixo da cama


Crise financeira, crise pandémica, crise geopolítica, crise energética, crise climática, crise inflaccionária.

Longe vai o tempo em que a «crise» ainda podia ser anunciada como um acontecimento conjuntural de onde todos sairíamos colectivamente renovados e com uma lição aprendida. Mesmo para aqueles que sempre viveram em crise, parecia possível acreditar que o infortúnio era uma espécie de nuvem a pairar sobre uns quantos e não uma tempestade a cercar-nos sem permitir qualquer fuga. Mas agora são tantas as rupturas a eclodir em simultâneo, que se tornou evidente que já não é de uma simples fissura que se trata. A crise parece ter-se transformado convenientemente em guerra: uma guerra permanente com várias frentes, capaz de legitimar os múltiplos «sacrifícios» e de mobilizar o «esforço colectivo salvífico» que se exige em nome de um bem maior. Perante a sucessão de catástrofes anunciadas, torna-se difícil distinguir que «valores» e «estilo de vida» são esses pelos quais nos devemos sacrificar. Mas o que é certo é que a deterioração das condições de vida, o crescimento das desigualdades económicas e o sacrifício das «liberdades e garantias» em nome da «segurança» vão-se banalizando com eficácia. Talvez por uma certa aura de inevitabilidade. Talvez porque a guerra desloca o inimigo para algo exterior a um «nós» e nos permite imaginar que somos parte de uma comunidade.

Essa comunidade tem que ser constantemente encenada através da ritualização e rememoração permanente do que nos transforma num «nós». Mas a massa fundamental que une essa comunidade é o «outro», o bárbaro que ameaça a nossa paz e bons costumes. Esse «outro» não é apenas o inimigo longínquo que se aproxima das nossas fronteiras e ameaça saltar a barreira que nos separa a qualquer momento. Ele está entre nós. E há que recordar quem é esse inimigo e onde é que ele está, mesmo quando não o vemos. Agentes e instituições governamentais e independentes unem-se, frequentemente, nessa tarefa, reproduzindo os diagnósticos de uns e de outros para materializar a realidade que fantasiam como profecias auto-realizáveis. Falam-nos de um país que é estranho à maioria e que só eles conhecem, logo o seu grau de eficácia é imperscrutável e a sua autoridade intangível.

O Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), obra do Governo, identificou um aumento na «criminalidade grupal» durante o ano de 2021, associando-o às «Zonas Urbanas Sensíveis» (ZUS) e a expressões musicais como o hip-hop ou o drill.

Nas últimas semanas, contudo, um dos documentos oficiais que mede a temperatura à «nossa» ordem pública e um dos institutos independentes que a «observa» – um gesto passivo que lhe permite assegurar a sua neutralidade e distanciamento – causaram alguma perplexidade nas redes sociais. O Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), obra do Governo, identificou um aumento na «criminalidade grupal» durante o ano de 2021, associando-o às «Zonas Urbanas Sensíveis» (ZUS) e a expressões musicais como o hip-hop ou o drill. Jorge Bacelar Gouveia, «observador» independente, enquanto actual Presidente do Conselho Directivo do Observatório sobre Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo (OSCOT), deu visibilidade ao diagnóstico na comunicação social, referindo uma «nova cultura hip-hop» por trás desse crescimento da «delinquência» colectiva. A surpresa que estas declarações causaram é injusta. Afinal de contas, constituem um exercício recorrente que serve a identificação e criação dos «nossos» inimigos internos. E os alvos nem mudam muito: expressões artísticas e culturais «marginais», populações que habitam em territórios periféricos («zonas sensíveis»), populações racializadas, culturas políticas que desafiam a norma (nesse relatórios, há sempre umas linhas que assumem despudoradamente vigilância política sobre «anarquistas» e «autónomos»).

O hip-hop é, desde sempre, um desses fenómenos identificados como fonte de variadas perturbações da ordem pública e ameaças à «nossa» segurança colectiva. No início, a ameaça era o hip-hop como um todo. Depois veio o Grime. Hoje é o Drill. Na impossibilidade de conter a crescente popularidade do hip-hop, foram-se criando cordões sanitários dentro do próprio estilo, separando as expressões «boas» das expressões «más». Em Inglaterra, o surgimento do Grime nos bairros sociais londrinos, no início da década de 2000, fez soar os alarmes (sempre pela mesma razão: relacionando o estilo e o aumento da criminalidade violenta) e os debates sucederam-se, criaram-se comissões políticas e task forces, entre elas a absurda e famosa Respect Agenda, promovida por Tony Blair como o remédio para salvar o país da decadência dos costumes e dos valores. O problema, como o próprio Blair afirmava, nada tinha que ver com a pobreza, nem com devastação de imensas zonas do território londrino pela especulação imobiliária e pela alta finança. As postcode wars, como eram conhecidas, e que também o Drill reproduz como forma de afirmação identitária e criação de rivalidades territoriais, em nada se relacionava, obviamente, com o crescente isolamento e restrição do acesso de determinadas populações à cidade. Era tudo uma questão de «bons costumes» e «boas maneiras». A culpa da pobreza e do isolamento que afectava essas comunidades era fruto das letras e da estética do estilo, sempre a verbalizar beef’s entre gangs e tão inventivos a criar variações da palavra «facadas» quanto os esquimós o foram com a palavra «neve» (a comparação é de Dan Hancox, o autor da melhor história do Grime, “Inner City Pressure”).

Magicamente, palavras como «pobreza», «desigualdade» ou mesmo «racismo» não aparecem nas 338 páginas do RASI.

O propósito é evidente: profiling e targeting das populações que habitam as ditas ZUS, situando, através de uma lógica perversa, a origem de qualquer «problema» nesses hábitos peculiares – como fazer música – e nas vivências de certas camadas populacionais, geralmente minoritárias. Magicamente, palavras como «pobreza», «desigualdade» ou mesmo «racismo» não aparecem nas 338 páginas do RASI (para ser rigoroso, «racismo» aparece em referência a eventos desportivos e não como causa de nada). Tal como em Inglaterra, o «problema» resulta, certamente, dos costumes pervertidos e do mau-feitio de quem os pratica. O resultado, neste caso, é a reprodução de estigmas raciais e a justificação da violência policial, da vigilância e da segregação territorial alimentada pelo mercado e por políticas públicas. O Drill até pode ter uma carga niilista inédita no género (mas não no campo musical; porém, nem uma linha sobre Black Metal, por exemplo) e, em alguns casos, a violência que descreve pode muito bem ir além da mera dimensão performativa. Mas só uma miopia pouco inocente permite apontar que estas expressões são a causa e não uma representação da violência quotidiana com que coabitam. É a forma mais conveniente de evitar pegar nos problemas pela raiz. O rapper Ice Cube, há uns anos, em resposta a quem o acusava de ser responsável pela corrupção moral da juventude, dizia que If I’m more of an influence on your son as a rapper than you are as a father, you got to look at yourself as a parent. E é precisamente para evitar que nos olhemos ao espelho e enfrentemos os problemas pela raiz que esses diagnósticos existem. Na luta do bem contra o mal em que somos convidados a participar, é fundamental isolar a origem dos problemas, identificar os lugares onde se escondem os inimigos e moldar a sua existência espectral para que a ameaça pareça real. Como os monstros debaixo da cama que nos mantêm acordados, mas que vivem, afinal, na nossa imaginação.

 


Ilustração [em destaque] de  José Smith Vargas.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #35, Setembro|Novembro 2022.


Written by

Diogo Duarte

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