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Lendo: Estamos juntos, estamos fortes

Estamos juntos, estamos fortes

Estamos juntos, estamos fortes


Nos bairros da periferia de Lisboa a solidariedade auto-organizada existe desde antes da pandemia. Nestas comunidades, já antes confinadas em territórios de exclusão e conflito, nasceram redes de entreajuda como a Nu Sta Djunto, que agora no Casal de São Brás (Amadora) dinamizou um ponto solidário de recolha e distribuição de bens alimentares.

Quando a pandemia e o estado de emergência assolou Susana, uma das pessoas que faz parte da Nu Sta Djunto (NSD), um movimento informal de entreajuda nos bairros periféricos da grande Lisboa, rapidamente procurou actuar, com uma certeza adquirida nos oito anos do colectivo: «não estávamos a reagir, não fomos apanhados na curva, já andávamos a fazer as coisas e já tínhamos uma resposta concreta, e foi só reforçá-la, foi só enquadrá-la». De imediato ligou para o Sinho, do Casal de São Brás, mais conhecido como Boba, na periferia da Amadora: «Ei, continuamos a estar juntos, e imagino que agora aí se estejam a acentuar as necessidades e que seja preciso actuar…» A resposta já estava em marcha e veio nas palavras de Sinho: «Sim, mana, estamos aqui, vamos agora reunir na associação de moradores e já estamos aí alerta e organizados para agir, porque, sim, a necessidade está a crescer».

O Ponto Solidário da Boba

O próprio Sinho, como é conhecido José Baessa De Pina, explicou ao Jornal MAPA como nasceu o Ponto Solidário da Associação dos Cavaleiros de São Brás. «Fazendo parte do Nu Sta Djunto, esta é uma iniciativa que venho fazendo desde há muito tempo com vários membros da comunidade e de fora da comunidade. Achei que era muito importante neste momento termos uma rede na comunidade a combater esta situação, por isso desafiei as associações que trabalham na comunidade da Boba: a Associação Efeito Dominó, Associação Desportiva da Amadora, Associação Cavaleiros de São Brás e o Boba Studio. Como eles trabalham todos com crianças e conhecem a realidade de cada uma delas, foi um bom ponto de partida para saber quais são as verdadeiras dificuldades na comunidade. Também já tínhamos uma lista de pessoas que precisam de apoio, uma lista desde o tempo do NSD, já sinalizadas por mim, pelo Boss e por outra malta do NSD. Não foi muito difícil, porque já tinha uma estrutura e muitas pessoas e voluntários: logo que a iniciativa avançou, eles chegaram logo à frente.» Ao grupo de voluntários do Nu Sta Djuntu Boba, junto com as associações acima, a rede de partilha e de donativos rapidamente se estendeu a gente anónima e a outras associações e colectivos, como a Associação Passa Sabi, Mira Ativa, o Moinho da Juventude, a SOS Racismo, a Campanha Anti Racista de Apoio Imediato Lisboa, a Djass Afrodescendentes e a Nasce Renasce.

Na Boba, o ponto solidário auto-organizado, «é dirigida mesmo a quem não tem os alimentos básicos para ter numa casa. A essa pessoa é necessário logo o apoio. Temos famílias numerosas, com o problema agora do lay off muitos estão em casa, pois tivemos que sinalizar pessoas que até tinham trabalho, mas agora não têm. Começámos a campanha no dia 21 (de Abril) e até agora tivemos que acompanhar muitas famílias que até têm pessoas a trabalhar, mas com o lay off, as restrições e o confinamento, tivemos que apoiar várias famílias que não estávamos habituados a apoiar, porque não estavam sinalizadas». Essa procura aumentou e extravasou a comunidade do bairro. «Houve bastante procura de várias famílias e nós também estendemos a rede a outras comunidades, pois começamos já a ver que o problema não é só dentro da comunidade, também fora da comunidade. Nos arredores de São Brás, Casal da Mira, Casal da Serra da Mina, Casal de Cambra, Reboleira… E começamos a criar redes de contactos entre amigos de várias comunidades que sinalizam as próprias famílias de cada comunidade, e tem sido fácil. Tem tido muita procura, mas nós também só conseguimos dar aquilo que temos, portanto vamos fazendo aquilo que a gente pode».

A iniciativa foi voluntária, uma resposta natural posta em marcha e que nos bairros periféricos de Lisboa se soma ao trabalho desenvolvido por associações que são verdadeiros faróis das comunidades, como é, também na Amadora, o caso da Associação do Moinho da Juventude, na Cova da Moura. Esta associação é hoje uma reconhecida instituição de solidariedade social, que nasceu nesse bairro há 30 anos e que, inserida na rede de emergência alimentar da Segurança Social, é responsável por uma cantina social, que fornece refeições gratuitas, e que agora se viu a braços com escassos recursos e apoios para a tamanha e elevada procura como a que situação do Covid-19 despoletou.

No ponto solidário que nasceu por mão dos moradores da Boba, como nos relata Sinho, «a organização é voluntária, cada um faz o que pode, onde pode: divulgação, partilhas nas redes sociais e temos um espaço físico onde podem lá levar os alimentos não perecíveis, para separarmos e fazermos o cabaz. Temos grupos voluntários que se oferecem para levar os cabazes às famílias que nos vão pedindo de fora da comunidade, por exemplo Odivelas, Agualva-Cacém, Queluz, Reboleira».

Ao mesmo tempo, a par do aumento de procura da ajuda, a vivência em tempos de pandemia nestes bairros tem acentuado ainda a posição de exclusão e conflito a que estes territórios e comunidades já se viam confinados. Quando perguntámos, então, em estado de emergência, que problemas estavam a vivenciar por causa das restrições impostas, Sinho reiterou a realidade que vem sempre ao de cima nestas comunidades: «o que eu tenho sentido é que há maior repressão policial; há pouca informação por parte do Estado sobre prevenção, cuidados; e quando a polícia chega é mesmo para repreender: com cassetete na mão, a instigar problemas, mais entre a classe juvenil, que se encontra na rua de vez em quando a algumas horas da tarde. E a polícia, de vez em quando, vem  com algumas atitudes que para mim não é de sensibilização. É mais a repressão, o que não fazem em outros sítios em que tem havido vários delitos de comportamento da quarentena, e onde, na comunidade, eles têm outra abordagem para com o cidadão. Tenho visto aqui alguns vídeos a passar na comunidade da Cova da Moura, de Vale de Cambra, e vê-se que a atitude é de repressão, e com alguma violência gratuita.»

Nu Sta Djunto Li Kê Terra, 2017

Uma tomada de posição

Garras, com quem, junto com Susana, falámos acerca da história do Nu Sta Djunto, um colectivo de entreajuda que não precisou de uma pandemia para nascer, sentiu-se pessoalmente recompensado quando falou com Sinho: percebeu que as coisas já estavam todas em andamento. A organização de eventos, e falamos de concertos de Hip-Hop, tem sido a face mais visível deste colectivo, que nesses momentos angaria comida e outros bens para os bairros por onde vão passando. Para Garras, «sempre que fazemos coisas estamos a criar sementes também. E quando as pessoas experimentam qualquer coisa e vêem que resulta, depois aplicam-na em vários momentos da sua vida. Sinto que, às tantas, temos estado estes oito anos a fazer determinadas coisas que possam ter surgido também como sementes que germinam facilmente numa fase destas», como ali na Boba e em muitos bairros à volta da Amadora. «Ao termos experimentado, antes e em determinados locais, essa confiança, de que é possível e de que somos capazes de o fazer, enquanto moradores do bairro e enquanto pessoas sensíveis ao assunto, acaba por ainda surgir mais facilmente».

A história do NSD «surge num cruzamento entre anarquistas e rappers, eles também anarquistas mas de descendência cabo-verdiana e que vivem na periferia de Lisboa, pegando um bocado na ferramenta do rap como forma de ser solidário e de conseguir criar uma estrutura de entreajuda em determinados bairros, e que depois se foi alargando a mais e mais bairros. Esta estrutura seria sempre de apoio mútuo, com a participação de todas as pessoas: as pessoas que poderiam receber ajuda também participavam de alguma forma, nos eventos, nas distribuições ou nas recolhas. A ideia era ser todo um processo horizontal.» Tudo começa «entre pessoas que estão de uma maneira ou outra dentro dos bairros, dentro das periferias, e surge naturalmente por haver o contacto direto com estas necessidades, mas também com estas dependências das estruturas institucionais.»

Para Susana, o NSD é uma tomada de posição «partindo de uma análise em que sentimos que há um diálogo entre as estruturas sociais do Estado, que é hierárquico e que pressupõe a manutenção da dependência. É um diálogo que pede sempre algo em troca, de quem usufrui de determinado serviço. E querendo aqui dar resposta a necessidades muito básicas – e esse é o ponto de partida – aquilo que faz é uma tomada de posição, encontrando na autonomia e na horizontalidade uma resposta criativa e directa: a estarmos organizados entre nós e autonomamente. Reconhecendo também que as políticas sociais e do estado continuam sempre a deixar muitas pessoas à margem, porque de uma forma ou outra não se enquadram naquilo que são os pressupostos e aquilo que o sistema impõe».

Foi, pois, refere Garras, «dentro desse espaço de análise dessa dinâmica institucional e dessa dependência, e na capacidade de a questionar e de criar alternativas, que surge o NSD. Esta questão do rap crioulo é uma fórmula de luta, uma expressão artística que surge como forma de criar eventos em que se mistura a cultura com a luta e com a solidariedade. E isto é aqui uma base, uma base que é bastante ideológica, que toca a vários pontos-base também, a várias necessidades básicas, mas é bastante ideológico na forma de organização e naquilo que são os valores que para nós são anarquistas». O que, como prossegue Susana, «são assentes na horizontalidade, na autogestão». Uma tomada de posição ideológica, mas na verdade «bastante espontânea, sempre assente numa comunicação, nas relações entre diferentes bairros e das pessoas que lá eram, os rappers sobretudo». A «coisa foi crescendo a partir daí, a partir do contacto directo com as pessoas e estando nos bairros numa relação direta e horizontal, em que as relações se iam estabelecendo, as necessidades iam-se conhecendo e as respostas também iam surgindo de uma forma espontânea, criativa, autónoma e horizontal. E, sim, é sobretudo uma tomada de posição, uma resposta para a vida, porque estávamos a actuar sobre o quotidiano.» Para o NSD «é nos buracos que o sistema deixava que nós nos posicionávamos e nos fortalecíamos, era na resposta a essas coisas que organizávamos a nossa ação»

E uma vez imersos no tempo da pandemia, Susana salienta-nos que «a partir daí foi ter a certeza de que isto é só uma situação em que a necessidade se acentua, porque os buracos do sistema, o sistema vive deles, e numa situação destas só crescem, ou o buraco fica maior. Então, é ter a certeza de que os valores e as práticas do apoio mútuo, da horizontalidade e da autonomia têm de ser uma resposta quotidiana nossa, enquanto anarquistas, que nos posicionamos contra determinado modelo, contra este sistema que teima.» Esta perceção vai por sua vez ao encontro da dinâmica dos bairros, quando em «contactos com malta ativa nos bairros se percebeu que as coisas lá já estavam a acontecer». «Quando a necessidade é grande, e nos bairros isso acontece muito, estas respostas fora do sistema, criativas, e estas tomadas de posição são coisas que fazem parte do ADN dos bairros. E é isso que o próprio sistema ensaia de querer aniquilar, são todas essas respostas que metem medo ao Estado, e é isso que pode criar laços importantes entre nós e estes territórios.»

 

Nu Sta Djunto

Estamos todos juntos

Nos últimos meses repetido até à exaustão, o lema do Nu Sta Djunto – Estamos Juntos –, tem perdido o verdadeiro sentido, quando ecoado por políticos e pivots de telejornais. Essa perda deliberada de sentido tem guiado o Jornal MAPA a perguntar, às várias iniciativas que abordamos na série #PandemiaSolidária, o significado de «solidariedade», tantas vezes confundida com «caridade» e «assistencialismo».

Para Garras «na verdade todas as estruturas de ajuda que vem por parte do Estado e das instituições acabam por ser uma relação de poder e unilateral, e aí sim, de caridade. É para mim aí a grande diferença entre caridade e solidariedade. A solidariedade surge de igual para igual, entre mim e ti, e de ti para mim, e colada necessariamente com estes valores de entreajuda e apoio mútuo; enquanto a caridade é uma relação de poder, que vem das instituições, que é unilateral e que perpetua uma relação de dependência. Nesse sentido, NSD surge como uma forma de contrariar essa dinâmica e de propor uma outra forma de organização, e uma forma de organização que não depende de estados, de poderes institucionais ou de qualquer tipo de poder, e que surge de uma forma horizontal, de uma forma de nos entreajudarmos nas nossas necessidades mais básicas e não só, de criarmos rede, de criarmos comunidade, de criarmos uma forma de vida mais conjunta, mais colectiva».

Como acentua Susana «não há aqui esta relação entre quem é privilegiado e quem não é, quem está em necessidade e quem não está: existem pessoas que reconhecem os problemas e decidem posicionar-se perante eles. Não há aqui uma relação hierárquica: há uma horizontalidade nas decisões e nas acções. Não há um perpetuar de um diálogo hierárquico: para teres determinada ajuda tens de te enquadrar naquilo que o Estado define enquanto percurso de um bom ou de uma boa cidadã. Não se trata desse diálogo, frequente, das estruturas sociais para com as pessoas: trata-se sim de uma resposta autónoma que pretende também, mais do que uma cena pontual, que possa ter uma resposta contínua para suprir determinadas necessidades. Ou seja, não pressupõe aqui o assistencialismo directo. Não, tem um valor e uma ação muito maior, e o nome vai ao encontro disso: é o Estarmos Juntos para nos entreajudarmos e para nos posicionarmos. Não é essa questão de estarmos passivos e à espera de ajuda de quem está por cima. Não, damos a mão e seguimos em frente, no nosso caminho, autonomamente.»

Uma outra dimensão de solidariedade, afasta-a, segundo Garras, da caridade: «Para mim a solidariedade está muito ligada com processos de luta. A vida de uma mãe solteira afro-descendente que vive na Europa, que tem trabalhos precários, que vive num bairro social, esta mulher, esta pessoa está em luta. Na nossa vida, esta organização por classes, a relação centro da cidade, periferia da cidade, isto é uma luta, isto cria desigualdade, cria barreiras; a violência policial nos bairros, a violência policial contra movimentos que se oponham ao estabelecido, isto é tudo uma luta. E, como nós nos entreajudamos, nós estamos a ser solidários nesta luta, a esta vida que nos impõem, a esta forma de organização que nos impõem. Estarmos juntos uns com outros e entreajudarmo-nos nas bases, isso para mim é solidariedade com quem está em luta. Por outro lado, assistencialismo é um conceito que está ligado aos assistentes sociais, a esta resposta do Estado, a essa relação de dependência perpetuada que tem o interesse que seja assim. É por isso também que os bairros de auto-construção são comunidades completamente paralelas ao que está estabelecido e que acabam por ter estruturas realmente de entreajuda, que acabam por ter estruturas  que substituem e opõem-se aquilo que é imposto, seja a rede de alimentação, à rede de luz, à rede de saneamento e higiene, à rede de saúde. Às pessoas estarem umas para as outras, em vez de comprarem ou prestarem serviços. Tudo isto, aos olhos do Estado, tem de ser destruído, e por isso é que estes bairros de auto-construção estão todos a ser dizimados e as pessoas são colocadas em bairros sociais onde as pessoas são muito mais facilmente isoladas e controladas, um bocado nesta perspectiva de dividir para conquistar. O assistencialismo surge nessa tentativa de destruição destas estruturas. A solidariedade surge para fortalecer e para tornar possível estas bases destas comunidades; e surge como necessidade óbvia para que estas comunidades funcionem.»

Por isso, Sinho espera «que essa iniciativa, todos os movimentos do Casal da Boba e não só, todos os movimentos que têm participado nessas iniciativas em rede, o Moinho da Juventude, Associação Passa Sabi, a Djass Afrodescendentes, todos esses movimentos  que ajudam no silêncio, que  continuemos com essa rede de partilha e de solidariedade, que acompanhem essa situação, não só alimentar: há vários outros problemas – medicamentos, habitação, educação – que vamos ter de acompanhar. Em rede acredito que podemos colmatar alguns problemas. Nós não queremos fazer o papel de Estado, nos não somos o Estado, mas não podemos virar a cara a esse problema que é real, que está à nossa frente, e não podemos ficar indiferentes a essa situação.»

 


Ponto Solidário da Associação dos Cavaleiros de São Brás

Podes entregar bens alimentares perecíveis na Associação Cavaleiros de São Brás – Rua Jacinto Baptista, n.º 4 A; Casal da Boba Amadora – ou fazendo um donativo para a Associação Desportiva da Amadora: IBAN PT50 0033 0000 45512980934 05.

Estamos juntos, estamos fortes.  Nu sta djunto, Nu sta forti.

 


Este artigo faz parte da série #PandemiaSolidária.

 

 

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Written by

Filipe Nunes

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