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Lendo: Habitantes do Campo Charro defendem as suas terras

Habitantes do Campo Charro defendem as suas terras

Habitantes do Campo Charro defendem as suas terras


A totalidade do oeste de Salamanca está em perigo devido à construção de uma mina de urânio ao ar livre.

A cultura é Charra, charras são as gentes. Assim se chama o conjunto de tradições locais que caracterizam a região rural de Salamanca. Charro é o campo, zona de amendoeiras e azinheiras centenárias, terra de ovelhas e pastores, de gado e fazendeiros.

A oeste da província de Salamanca, em Villavieja de Yeltes, no 28 de Outubro de 2017, cerca de mil pessoas reuniram-se numa manifestação. Vizinhos e vizinhas, activistas ecologistas e representantes de partidos políticos estão em luta contra a abertura de uma mina de urânio ao ar livre. O projecto mineiro, impulsionado pela empresa australiana Berkeley, ficaria localizado a escassos metros deste município, mesmo ao lado do pátio da escola primária.

Fotografia de Sergi Rugrand.

“O risco é altíssimo”, explica Veronica, activista da Plataforma Anti-Nuclear de Salamanca: “os rejeitados, ou seja, os restos da extracção do mineral, nos quais permanecem 80% da radiação, podem ser transportados em pó que viaja pelo ar, através do gás radão, a uma distância que pode ir até mil quilómetros”. A mina, a maior da Europa em relação à extracção de urânio, instalar-se-ia numa zona que já foi protagonista de vários projectos de recuperação ambiental financiados com dinheiro público, como a rede de protecção Natura 2000. O projecto afecta uma zona considerada essencial para os ecossistemas fluviais, que beneficia de um microclima mediterrânico único, e é um lugar de interesse comunitário (LIC) caracterizado pela presença de florestas de azinheiras centenárias, sobreiros e carvalhos, habitat de espécies de fauna protegidas legalmente como a cegonha negra, a sarda de Salamanca, a águia real e o cágado mediterrânico.

“Era uma floresta maravilhosa, cheia de azinheiras centenárias. Atraía sempre grupos de pessoas até aqui porque era muito impressionante”. Mati, apaixonado de botânica e micologia, perito da flora e da fauna da zona, faz anos que acompanha grupos ao monte como guia para mostrar a beleza dos arredores. Explica com tristeza que “já cortaram milhares de azinheiras e pretendem chegar a arrancar quase trinta mil exemplares”.

O que a Berkeley conseguiu até agora é inaudito e ninguém consegue explicá-lo”, afirma com energia Jesus Cruz, habitante de Retrortillo e activista na Plataforma Stop Uranio. Desde o princípio, Jesus posicionou-se contra a mina, informando os vizinhos do perigo que seria abri-la tão perto dos núcleos habitados. Por exprimir as suas opiniões no “El blog de Jesus” e partilhar informações sobre o projecto, foi atacado em justiça pela empresa Berkeley e acusado de injúrias. Na terça-feira, 31 de Outubro de 2017, foi chamado a depor aos tribunais de Ciudad Rodrigo, contando com o apoio dos vizinhos e activistas da Plataforma Anti-Nuclear de Salamanca e da Plataforma Stop Uranio. “Berkeley utiliza todos os recursos que possui para evitar oposições e calar quem se oponha ao projecto”, assinalam os membros da Plataforma. A empresa, que não tem nenhuma experiência mineira, mas sim acções em bolsa, já realizou o desvio de uma estrada, e também o arranque de azinheiras com os seus movimentos de terra consequentes, para abrir uma vala nos terrenos destinados à extracção do mineral radioactivo. “É um projecto que não cumpre com a legalidade e foi denunciado a vários níveis judiciais”, visto que as obras preparatórias terão sido realizadas sem as autorizações necessárias e sem respeitar as normas ambientais da zona.

Fotografia de Sergi Rugrand.

“Tudo aquilo é pura fraude”, afirmam as activistas. Vários vereadores da câmara de Retortillo, outra aldeia afectada pela mina, trabalham para a Berkeley. Um deles encarregou-se de arrancar, cortar e em seguida vender as azinheiras centenárias pelo valor de um milhão de euros. Também denunciou ter recebido uma carta com a imagem de um enforcado e acusou os vizinhos desfavoráveis à mina de ameaças e pressões. Mas é curioso que na carta apareça um autocolante com o símbolo da empresa mineira. Ao ter-lhe sido mostrado esse detalhe, diz-se que não se voltou a falar do tema.

“Estas são acções mesquinhas próprias de gente sem alma, apenas interessada em destruir tudo”, comenta Vitorino Calderon, habitante de Retortillo. São muitas as divisões que se estão criando, sobretudo na sua aldeia, com pelo menos oito famílias divididas irremediavelmente. “O aspecto humano é o mais doloroso”, prossegue com lágrimas nos olhos. “A minha família foi destruída entre quem está a favor da mina e quem se opõe. Como com as azinheiras, isto vai durar gerações”.

Parece que a empresa está a aplicar o famoso preceito “divide e reina”, criando fracturas para destruir o tecido social, jogando com as necessidades económicas das famílias. Numa região pobre, onde se vive sobretudo do sector primário, e quase despovoada, onde a densidade de população é de menos de 10hab./km2, a empresa promete prosperidade e postos de trabalho de dez anos, o tempo estimado de duração do funcionamento da mina até que tenha sido extraída a totalidade do metal.

E depois, o que ficaria? Morte e desolação. Todas as previsões o asseguram. Quem poderia continuar a viver do gado? Quem compraria vitela contaminada? Que futuro teria o famoso spa de Retortillo e as suas empregadas numa zona radioactiva? Que ficaria para mostrar aos turistas rurais?

“Tudo se afundaria e em poucos anos as nossas aldeias desapareceriam”, assegura Jenara Moro Tapia, trabalhadora do spa de Retortillo, localizado a alguns metros do sítio onde se projectam as explosões mineiras. “Estão a empregar os maridos sem emprego de muitas mulheres do spa, e assim toda a família fica amarrada à Berkeley e deixa de se opor à mina”, continua Jenara. “Estão a comprar vontades e a calar oposições”.

Fotografia de Sergi Rugrand.

As pessoas afectadas pelas consequências mortais causadas pela abertura de uma mina de urânio ao ar livre, com uma fábrica de concentrado de minerais e armazenamento de resíduos radioactivos, única na Europa, não seriam só os habitantes dos arredores. Portugal, limítrofe à área projectada pela mina, reclama informações sobre o projecto em relação a danos nas águas do Douro, no qual conflui o rio Yelte. Este país, junto com França, já abandonou este tipo de actividade mineira por causa do seu alto impacte ambiental e da sua baixa rentabilidade actual.

Toda a actividade industrial é por si só agressiva para o meio ambiente. Mas a actividade mineira de urânio é, precisamente, uma das mais contaminantes e controversas. Depois da fase de extracção do material e dependendo da sua concentração, o minério passa pelo processo de lixiviação, que consiste em dissolvê-lo com diferentes compostos ácidos e/ou microorganismos e mantê-lo em repouso. Em ambos os processos se utiliza uma grande quantidade de água que fica gravemente contaminada e que, ou permanece na mina se o processo é feito in situ, ou fica armazenada em “lagos” onde contamina o terreno e o subsolo por gerações. O produto da lixiviação é enviado imediatamente para a lavagem e a polpa restante é pulverizada sobre uma corrente de ar quente, secando-a e arrefecendo-a para obter um pó com uma concentração de urânio altíssima, que é armazenada em barris.

Um dos grandes problemas que resultam desse processo é que a água residual da lixiviação contém compostos radioactivos e muitos metais pesados. Se estas águas não são tratadas adequadamente, ou são armazenadas em sítios onde pouco a pouco se infiltram no subsolo, a longo prazo criam problemas relacionados com a alta toxicidade do urânio na água e há a possibilidade de que se criem alterações cromossómicas fortemente ligadas com a exposição ao radão, que aparece sob forma gasosa.

Fotografia de Sergi Rugrand.

Tirando as da República Checa e da Roménia, todas as minas de urânio foram fechadas na Europa. Apesar de ser um produto anacrónico e de carecer das necessárias autorizações, e apesar das numerosas oposições que encontrou, este projecto continua em curso. Apesar de tudo, o único jornal em papel da zona, a Gazeta de Salamanca, continua a não informar sobre as múltiplas manifestações que houve em Salamanca contra o projecto. Talvez esse silêncio se explique pelas publicidades pagas que de vez em quando a empresa Berkeley faz no dito diário?

“É porque o jornal foi comprado. A Gazeta não informa verdadeiramente sobre o que está a acontecer e se não aparece no jornal as pessoas não acreditam. Não é notícia, logo não é verdade, não existe”, conta uma vizinha de Boada, aldeia cujos habitantes se declararam em maioria contra o projecto mineiro. “Foi dada mais visibilidade ao tema ao nível nacional do que em Castilla y Leon. A Junta está a favorecer a empresa Berkeley em tudo, muito mais que às pessoas que são daqui desde sempre”, prossegue indignada esta vizinha: “para podar um carvalho para um olival ou serrá-lo para fazer lenha, é preciso pedir autorizações que são muito difíceis de obter. Mas os da empresa podem fazer tudo o que querem, como cortar milhares de azinheiras e solicitar a expropriação forçada dos terrenos que entram no seu projecto.”

Uma grande parte da oposição contra a mina vem dos proprietários das terras de que a empresa precisa e que se negaram a vender. “Para que aceites o preço que te impõem, pressionam-te com ameaças de expropriação forçada”, assinalam as activistas. Alguns venderam acima do preço normal, como o antigo presidente da câmara de Retortillo cujas terras são hoje em dia sede dos escritórios da Berkeley, e outros estão a ceder em troca de outras terras. “Quem não quer vender, não vende”, afirma Jenara: “Para quem viveu da zona, da agricultura ou do gado, e tem lembranças dos seus pais trabalhando-a… essa terra já tem sentimentos, tem memórias. Não venderiam só as terras mas também a lembrança da sua família, diz-me onde está a justiça em tudo isso”.

 

Giulia Tarquini

giulitarqui@gmail.com

Fotos: Sergi Rugrand (Krasnyi Collective)

Tradução: Joaquim Santos (artigo de elsaltodiario.com)


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  1. Em uma experiência que fiz em Guatemala há alguns anos em aldeias próximo da fronteira com México me chamou a atenção construção de muitas pontes realizadas através de missionários da Pia Sociedade São Caetano. Muitos abismos que separavam as aldeias. Ouvindo o testemunho do Pe Gerânimo, italiano, ele dizia que essas pontes estava unindo aquelas aldeias e possibilitando uma condição de vida um pouquinho melhor. Essa população estava totalmente isolada de tudo. O trabalho missionário ia muito além de construção de pontes. Mas essa ação ficou como icone do trabalho de evangelização realizado naquela localidade e tinha tudo a ver com carisma daqueles missionários: Unidade na caridade a exemplo de Jesus Sacerdote Servo. Que o Senhor nos ajude a cada dia a superar a tantos abismos que são criados a partir de ideologias, pensamentos religiosos, padrões de vida, e viver mais a unidade na caridade.