
Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Startups: não é um ecossistema, é uma plantação
A Lisboa de Carlos Moedas, que no ano passado lançou a Fábrica de Unicórnios e o Hub Criativo do Beato, vai acumular o título europeu de Innovation Capital em 2024. Finalmente, a campanha de marketing da cidade, comparável à de Rui Rio na cidade do Porto (com a campanha porto., ou morto., como preferem os habitantes), chegou a um veredicto final: Lisboa vai chamar-se «Unicorn Capital. (ponto)». À cidade já moldada pelo turismo e pela especulação imobiliária junta-se agora um fluxo migratório de especialistas tecnológicos para secretariar a transição digital.
Se quisermos comparar uma economia a um ecossistema, teremos de a imaginar sem adubos artificiais nem rega intensiva, e o resultado não terá monopólios, seguros ou benefícios fiscais. O sector da inovação digital é, por isso, melhor retratado como uma plantação intensiva, como já foi sugerido 1. Com isso em mente, estas são algumas notas sobre a plantação digital.
O negócio da residência e cidadania
Comecemos pela venda de autorizações de residência para atrair capital, de que é exemplo o visto gold. Na sua primeira fase, de 2012 a 2021, o investimento estrangeiro não-europeu transfigurou Lisboa em troca da livre circulação no espaço Schengen. Em 2021, o governo alterou o regime e empurrou os investimentos elegíveis para vistos gold para zonas de baixa densidade populacional, o que fez disparar a especulação na costa atlântica, de Tróia a Melides, e na Madeira. Mas continuou a ser elegível o investimento imobiliário em Lisboa, desde que realizado em imóveis comerciais. No novo regime, o visto gold ficou também acessível a quem ponha o seu capital em fundos de investimento destinados à inovação, onde o retorno pode ser bastante mais elevado, e os impostos muito mais baixos, do que no sector imobiliário. Em 2022, aparece também o visto para nómadas digitais, acessível a pessoas não-europeias com um rendimento mensal equivalente a quatro salários mínimos.
Esta é uma tendência que se está a tornar comum na Europa: a venda de autorizações de residência, com possibilidade futura de adquirir cidadania, que usa como critério o poder de compra ou de investimento do migrante. É um negócio que está à disposição exclusiva dos Estados e que é usado como forma de engrossar os indicadores económicos domésticos. Mas é também um negócio que coloca os Estados numa competição internacional pela atracção de capital estrangeiro, oferecendo em troca uma autorização de residência e, mais valioso ainda, um livre passe de circulação na «Europa fortaleza». No contexto mais alargado da política migratória, estes vistos financeirizam os fluxos migratórios – uns declarados como receita, outros como custo. O que é de assinalar é a submissão progressiva da política migratória europeia a esta lógica, restringindo a solidariedade àqueles que consigam pagar os custos do seu acolhimento. Em países como a Holanda, a Noruega ou o Reino Unido, as políticas de migração destinadas à reunião de familiares já dependem da comprovação de rendimentos dos requerentes, e na Alemanha o asilo político depende do cumprimento de critérios de auto-suficiência financeira 2 .
A Câmara Municipal de Lisboa iniciou o desenho de um novo mapa para a cidade, onde aparecem agora «distritos de inovação
O planeamento urbano
Com as alterações feitas em 2021 aos vistos gold, disparou o número de novos escritórios e sedes comerciais, pólos tecnológicos, coworks e hubs em Lisboa. Simultaneamente, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) iniciou o desenho de um novo mapa para a cidade, onde aparecem agora «distritos de inovação». Seguindo a tradição dos distritos financeiros que marcaram as grandes cidades mundiais nas últimas décadas, o planeamento urbano municipal elegeu Alvalade como distrito da Web3 e da Inteligência Artificial, e Saldanha como distrito da Indústria dos Jogos. A acompanhar o investimento camarário estão empresas norte-americanas, como a Microsoft e a Fortis Games. Ainda na calha está o distrito da XR (realidade aumentada), com investimento da NOS mas ainda sem localização anunciada.
Os «distritos de inovação» são anunciados como uma estratégia encabeçada pela Fábrica de Unicórnios, um projecto da própria CML, lançado no Beato. O Beato era, até há pouco tempo, a única zona ribeirinha, de Belém ao Parque das Nações, que faltava «qualificar». Fica entre Santa Apolónia e o Parque das Nações – construído a propósito da Expo 98 e que se mantém como um enclave das classes altas –, e ocupa precisamente o trajecto que liga o centro da cidade à Web Summit. Esta zona foi ocupada a partir do século XII por conventos e palácios onde a aristocracia passava as férias de Verão. Foi nestas propriedades que nasceram as primeiras indústrias e, no século XIX, a industrialização da zona do Beato atingiu o seu auge – ali funcionaram empresas de vinhos, fábricas de sabões, borracha e fósforos, e importantes complexos bélicos como a Fábrica de Manutenção Militar (Beato), a Fábrica da Pólvora (Chelas) e a Fábrica de Material de Guerra (Braço de Prata). Com a desindustrialização da zona, o abandono das fábricas e a desvalorização das propriedades, a zona oriental de Lisboa ficou pronta a gentrificar.
Foi a própria CML que comprou ao governo uma cedência de utilização da antiga Fábrica de Manutenção Militar do Beato para a transformar no Hub Criativo do Beato (HCB). Os vários edifícios do HCB serão recuperados através de parcerias público-privadas. Aí já está em funcionamento a Fábrica de Unicórnios, um projecto de apoio a empresas já estabelecidas (scaleups, ao contrário das startups) que possam vir a tornar-se bilionárias (unicórnios). Com o HCB, a Câmara quer copiar a receita de outros pólos tecnológicos europeus, que tendem a concentrar no mesmo espaço escritórios para empresas de diferentes dimensões, alojamento, restaurantes e eventos culturais. Esta receita reflecte a progressiva sobreposição entre vida profissional e pessoal, de que dependem novas formas de extracção de valor. Mas reflecte também uma sobreposição entre negócios e informalidade, criando espaços de intimidade entre empresas que, até aqui, eram geralmente censurados pela opinião pública e que, por isso, estavam reservados a escritórios à porta fechada, campos de golfe e clubes privados.
Com as alterações feitas em 2021 aos vistos gold, disparou o número de novos escritórios e sedes comerciais, pólos tecnológicos, coworks e hubs em Lisboa.
O capital de risco
A grande transformação que parece caracterizar o sector da inovação é o lugar central assumido pelo capital de risco – capital dedicado a investimentos mais arriscados, como é o caso da inovação. Os Estados e os bancos também têm os seus próprios fundos de capital de risco, mas sem comparação com o capital disponível na «banca-sombra» – instituições financeiras e fundos de investimento que trabalham com capital privado, com menor supervisão regulatória e uma cultura de risco mais exótica. É por isso que a recente política europeia decreta o capital privado como única solução para a transição verde e para a transição digital. Para domesticar o capital privado, a Europa e os seus Estados-membros têm criado incentivos ao investimento em inovação, que o torna mais lucrativo do que o investimento noutros sectores. Em poucos anos, as startups tornaram-se um activo financeiro favorito nos portfolios privados. Mas, tal como acontece com os activos imobiliários, a substância é irrelevante; o que interessa é a janela de valorização que pode acontecer entre a compra e a venda. Em Portugal, os benefícios fiscais ao investimento privado em Investigação e Desenvolvimento (I&D) são dos mais atractivos na Europa. Entre 2017 e 2021, o capital privado metido em fundos de investimento portugueses dedicados a I&D ultrapassou um bilião de euros e beneficiou de um desconto fiscal de 82,5%. Isto significa que quem investiu 100 mil euros num fundo, conseguiu, no ano seguinte, beneficiar de uma isenção fiscal equivalente a 82,5 mil euros. Significa também que o «risco» foi efectivamente transferido para o cofre nacional.
Os clientes
O que acontece aos produtos ou serviços que saem das startups? A maior parte são vendidos a empresas «maduras», ou convencionais. Estas gastariam mais dinheiro a desenvolver novos produtos in-house do que gastam a comprá-los já feitos. São elas as grandes beneficiárias de um sistema de inovação que se financia publicamente a montante para ser depois absorvido pelo sector empresarial, a jusante. A esmagadora maioria será vendida no estrangeiro, sobretudo no mercado americano. No mercado português, os clientes são os gigantes empresariais do costume. Se olharmos para os parceiros oficiais das incubadoras em Lisboa, encontraremos a Fidelidade, a Galp, a Repsol, o BPI, a SONAE ou a Mota-Engil. É aí que iremos encontrar, finalmente, a inovação – chatbots de atendimento ao cliente, ferramentas de análise e tratamento de dados, automatização de procedimentos, sistemas de pagamento digital e sistemas de autenticação de identidade. Ao mesmo tempo, a participação destas empresas em fundos de investimento em inovação permite-lhes ser, duplamente, investidoras e clientes. A SONAE, por exemplo, tem o seu próprio fundo de capital de risco, a Bright Pixel Capital, com 57 startups em portfolio 3.
Em poucos anos, as startups tornaram-se um activo financeiro favorito nos portfolios privados.
Quem faz a contabilidade?
Associados a estas incubadoras estão também especialistas legais com perfil internacional – a Morais Leitão, a CCA, a KPMG, a Deloitte ou a PwC. Ao contrário do contabilista de bairro, os advogados e consultores financeiros sabem mover-se entre diferentes jurisdições e o serviço que prestam é o de reduzir os custos ao seu cliente, o que compreensivelmente equivale a alguma forma, mais ou menos soft, de evasão fiscal. Os mercados internacionais não diminuem a importância dos Estados: pelo contrário, eles interagem mais, e não menos, com diferentes sistemas legais através de arbitragem regulatória: sede fiscal na Irlanda, sede de operações comerciais na Suíça ou no Luxemburgo, e um rol de outras subsidiárias em diferentes países, incluindo territórios offshore. Através de estruturas complexas, as empresas podem transferir activos líquidos e ilíquidos entre diferentes subsidiárias para os proteger do fisco e de credores. Estas práticas são a espinha dorsal da vida internacional das empresas e, conforme foi revelado pelos Panamá ou Pandora Papers, a burocracia está a cargo de advogados e consultores da Deloitte, PwC, Ernst & Young e KPMG, conhecidas como the big four, e responsáveis pela maior fatia de capital metido até hoje em territórios offshore 4.
Quais ecossistemas?
A metáfora da plantação capta o fenómeno de economias mantidas a esteróides. Mas capta também a lógica da exploração do trabalho. As grandes plataformas digitais, tal como a agricultura intensiva, dependem de um contingente de trabalhadores pobres, muitos deles migrantes desprotegidos, de que são exemplo imediato os piquetes da Glovo ou da Uber. Fosse este um ecossistema e o grande unicórnio em esteróides, como uma orquídea de interior, já teria sido tomado pelas silvas.
Texto de L. Silva
Ilustração [em destaque] de António Catarino
Artigo publicado no JornalMapa, edição #41, Abril|Junho 2024.
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