
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Beyond Molotovs
«O autoritarismo pode ser desafiado e derrotado: esta é a lição mais importante deste livro. Em todo o mundo, inúmeras pessoas, coletivos e movimentos desenvolvem estratégias poderosas e criativas para se oporem às forças nacionalistas, racistas, classistas e anti-feministas. Grande parte destas estratégias vão muito para além de uma definição restrita de “defesa da democracia” ou de “resistência”. Não defendem o status quo catastrófico contra a extrema-direita, mas propõem formas diferentes, mais justas e mais democráticas de estarmos juntos. Estas estratégias e lutas transportam ideias, emoções e práticas que são as sementes de um outro mundo.» – escrevem Aurel Eschmann e Börries Nehe na introdução do manual que reúne mais de 50 relatos em primeira mão de movimentos antiautoritários, ativistas, artistas e académicos de todo o mundo, centrando-se na dimensão sensorial e emocional das suas estratégias. Os/as editores/as por detrás do International Research Group on Authoritarianism and Counter-Strategies e o kollektiv orangotango são: Aurel Eschmann, Börries Nehe, Nico Baumgarten, Paul Schweizer, Severin Halder, Ailynn Torres Santana, Inés Duràn Matute e Julieta Mira.
A criação de coleções globais de práticas de ativismo já não é uma novidade na história do orangotango – coletivo de educação popular e protesto criativo. O livro This is not an Atlas, publicado em 2018, recolheu contra-cartografias de muitos lugares do mundo. Será por isso que o livro Beyond Molotovs começa com uma contra-cartografia que mostra as localizações dos contributos. Mas para que servem as coleções globais de estratégias? No meu entender oferecem um espaço para contar outras narrativas e arquivar as práticas, não necessariamente para escrever história, mas com uma lente mais focada no presente, para inspirar a ação coletiva “aqui e agora”, onde quer que seja. O índice do livro está organizado não só por ordem das entradas, mas também por categorias que representam diferentes estratégias: expor-acusar-recordar / subverter-desviar-atrapalhar / disruptar-retomar – transfigurar / explorar-transcender-desejar / sentir-transmitir-agregar / ligar-tecer-nutrir. Verbos que descrevem diferentes maneiras, às vezes pouco visíveis ou reconhecidas, de desafiar o poder.
Um manual como este serve também como ponto de encontro: as revisões, apresentações e oficinas que nascem a propósito do livro podem criar espaços de convergência, partilha de ferramentas, reflexão conjunta, e fomentar novas alianças. Beyond Molotovs não é um livro para ler de uma vez; é mais um lugar de inspirações para visitar quando nos falta fôlego. O livro defende a importância do sensorial e emocional e isso reflete-se no seu formato: está cheio de imagens, com descrições simples que nos transportam a contextos desconhecidos ou a mundos imaginados. Apesar disso, não lhe falta análise, integrando textos que incitam à reflexão e demonstrando sempre a preocupação estética de os destacar entre capítulos.
Seria um exercício bastante ingrato qualquer tentativa de resumir o conteúdo deste livro ou retirar grandes conclusões sobre as práticas que descreve. Beyond Molotovs é como se colocássemos óculos coloridos que afinam o nosso olhar para ver e celebrar a resistência em todos os lados. Algumas das estratégias que aparecem no livro são bem conhecidas em Portugal, como, por exemplo, a iniciativa Rua Marielle Franco. O livro Beyond Molotovs ensina-nos que tudo pode ser estratégia antiautoriária, se assim quisermos: o mapeamento descolonial da história de um país, desenhar e imaginar a resistência, uma banda sonora da revolta, uma bandeira de melancia, um jogo de tabuleiro antiautoritário ou apoiar os movimentos sociais através da produção de cerveja. Aprendemos, assim, que nada disto é banal, mas sim oportunidades para nos organizarmos e reconhecermos: somos muitas, somos criativas.
Exemplo disso, é o partido «Cão de Duas Caudas» (MKKP), na Hungria, que sendo eu húngara não posso deixar de mencionar. É composto por um grupo de ativistas que ao longo do tempo se transformou num verdadeiro partido, conhecido por fazer intervenções satíricas nas ruas e nas redes sociais, sobretudo mediante memes cómicos, expondo dessa forma a sua visão para um mundo melhor, um mundo que abre espaço para a subversão e questionamento do poder político. Zombando do poder, conseguem expor as suas falhas e também rir de si próprios. As gargalhadas coletivas criam aliança e pertença. Prova disso é o partido MKKP, que se refere a si mesmo como «o único partido que faz sentido», já ter 4 vereadores em Budapeste.
Além da inspiração que podem trazer, algumas práticas descritas neste livro, mais ou menos relevantes ou adaptáveis ao contexto português, podem inspirar-nos de outra maneira. Ajudam-nos a perceber que somos muitas e somos diversas, mas nessa diversidade antiessencialista podemos reconhecer-nos e unirmo-nos para nos convertermos na maioria. Em Lisboa com certeza não faltam lutas importantes contra o autoritarismo e o capitalismo que parecem devorar a nossa cidade. Talvez ainda nos seja difícil ver e reconhecer a capacidade de criar outros mundos possíveis aqui e agora e de aprender de formas criativas e afetivas. Em Lisboa e Portugal convivem muitos mundos, de onde surge uma pluralidade de estratégias de resistência. Será que podemos colocar os nossos óculos para vê-las melhor? Gostaria de pensar que o Jornal MAPA também é um manual de estratégias antiautoritárias e, portanto, um ponto de encontro e valorização dessas práticas.
Mas daqui emerge um desafio: sem retirar importância aos espaços que conferem a sensação de aliança a quem luta por uma mudança, pergunto-me como é que alguém que nunca viveu algo parecido poderá aprender essas estratégias? Espero que o livro e as páginas deste jornal possam ser o começo de muitas conversas e fazeres coletivos em busca de tais respostas.
Beyond Molotovs – A visual handbook of anti-authoritarian strategies
International Research Group on Authoritarianism and Counter-Strategies / kollektiv orangotango (org.) Editora: transcript, 2024 | Livro disponível em: https://bit.ly/4di1OwX
Texto de Kitti Baracsi
Ilustração [em destaque] de Moses März
Artigo publicado no JornalMapa, edição #43, Outubro|Dezembro 2024.
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