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Lendo: Felizmente continua a haver luar (Abril/Junho 2024)

Felizmente continua a haver luar (Abril/Junho 2024)

Felizmente continua a haver luar (Abril/Junho 2024)


Álbum Americano.

Acerca do sindicalismo em tempos soturnos

Andamos às voltas em Somerville, um subúrbio de Boston, à procura da rua onde há um restaurante português que nos haviam recomendado. Chove a cântaros. Num terminal de autocarros, abordo um motorista, um jovem afro-americano com um sorriso simpático. ‒ «Mano, não faço a mínima ideia. Nem sequer sei onde estamos! Vou começar o meu turno, mas deixámos de estar fixos numa carreira. Estamos entregues ao acaso. De manhã, não sei onde me põem e, à noite, quando acabo o meu turno, não sei onde estou. É tudo uma questão de flexibilidade, pá! Já não sabemos os nossos percursos, já não vemos os clientes habituais desta ou daquela linha. É muito cansativo, dia após dia, uma tensão constante. Não vou aguentar muito tempo. Já estou farto. Destruíram o serviço. E depois põem um cartaz a dizer: Help wanted (Estamos a contratar).» Um discurso bem conhecido, que reflecte a generalização das formas de exploração no capitalismo global.

Sim, o Help wanted está visível em todo o lado. Mas nunca se fala dos salários ou das condições de trabalho. Ao mesmo tempo, vêem-se pessoas a vaguear pela rua, a mendigar, pessoas que não trabalham, que nunca vão trabalhar, dessocializadas, perdidas. Visto de fora, o mundo do trabalho surpreende pela sua despreocupação, com uma abundância de empregados nos estaleiros, nos serviços, nas lojas e na rede de transportes. Salários baixos, claro! Depois da «Grande Demissão», veio a grande desilusão. Em Nova Iorque, os controlos no metro são mais do que raros; em Boston, também no metro, os trabalhadores precários vagueiam sem entusiasmo nas plataformas, com coletes vermelhos onde se lê: «Embaixadores do serviço de transportes ao vosso serviço». Ainda em Boston, quando nos preparávamos, já atrasados, para apanhar o comboio para um encontro em Salem com uma bruxa conhecida, foi o próprio controlador de bilhetes que nos abriu as portas da plataforma ‒ que se lixe o bilhete, pagam da próxima vez. Num restaurante em Greenfield Massachussets, algumas palavras em espanhol e o rapaz da Guatemala muda a sua atitude distante: «Este é um país de loucos e eles querem tornar-nos a todos loucos. Por isso, amigo, tranquilo, tranquilo». Alguns dias depois, em Manhattan, ao balcão de um bar em frente ao Hudson, em Battery Park, onde nos refugiámos para encontrar um café barato por 5 dólares (!), o empregado argentino fala-nos da batalha perdida pela reforma aos 62 anos (!): «Que pena, teria sido um bom exemplo para nós. Aqui, vou ter de trabalhar até morrer!» Um cliente sentado ao nosso lado interpela-nos: «Somos o país mais rico do mundo, devíamos deixar de trabalhar aos 40 anos e é exactamente o contrário». E oferece-nos o café.

Não vamos generalizar, mas o facto é que, cinco anos após a nossa última visita, sentimos uma falta de motivação entre as pessoas que trabalham, não respeitam as regras, adaptam-se sem acreditar nelas. Assistimos ao fim de uma era, está tudo a ir por água abaixo, é um salve-se quem puder. As violentas disparidades de rendimentos e a coexistência da pobreza e da riqueza parecem ser o único horizonte prometido. E a questão social está de novo na ordem do dia.

Existe um fosso entre a força colectiva e a capacidade de auto-organização.

Um amigo meu observou que, nos últimos anos, voltámos a utilizar a linguagem de classe. Falar de capitalismo, exploração e classe já não choca muita gente. Agora, os trabalhadores do sector automóvel entraram no debate. A sua greve está nas primeiras páginas do Wall Street Journal e do New York Times. E a fotografia de Shawn Fain, o novo presidente do sindicato, com uma t-shirt com o slogan de Occupy, «Comam os ricos», chocou as pessoas respeitáveis. Depois da greve de Hollywood, num contexto de sucessivos conflitos muito duros ‒ como, em Outubro, a greve de 75 000 trabalhadores do grupo privado de saúde Kayser ‒ a greve do sector automóvel adquiriu uma importância considerável. Reflecte, sobretudo, a radicalização da atitude de alguns trabalhadores face às forças capitalistas, num contexto de empobrecimento generalizado e de aumento violento das desigualdades sociais.

Como em toda a parte nas sociedades do velho capitalismo, o sindicalismo está em crise na América do Norte. Após anos de concessões e de sacrifícios à custa de promessas nunca cumpridas pelos capitalistas, as forças sindicais enfraqueceram. O espaço de negociação diminuiu: negociar o quê? O empobrecimento? Burocracias gigantescas revelaram-se máquinas de corrupção, cada vez mais separadas da base sindical. Actualmente, a taxa média de sindicalização é de cerca de 10%, dos quais 6% no sector privado. A indústria automóvel é um bom exemplo. Apesar da tendência permanente para a desindustrialização, este sector tinha mantido uma mão-de-obra estável em relação ao conjunto dos operários da indústria, tendo mesmo o número de empregos no sector automóvel aumentado 40%. A taxa de sindicalização, por sua vez, registou uma queda vertiginosa, passando de 59% em 1983 para 16% em 2022. Tudo isto reflecte a reestruturação da indústria e a deslocalização de novas fábricas (com capitais alemães, chineses e coreanos) de produção de automóveis eléctricos para os Estados do Sul, onde os salários são baixos e a mão-de-obra menos combativa. Os sindicatos são raros e as convenções colectivas não se aplicam. Actualmente, apenas 50% dos automóveis produzidos nos Estados Unidos são fabricados por trabalhadores abrangidos pelo acordo colectivo do UAW (United Auto Workers). Os salários baixaram 20% nas últimas duas décadas e as condições de trabalho estão a piorar, com uma percentagem significativa da mão-de-obra em empregos precários, recebendo salários 50% inferiores aos dos trabalhadores sindicalizados. A longo prazo, esta é uma evolução mortal para o sindicato. A corrupção, alimentada pela cultura da negociação, corroeu a máquina. Em 2021, o governo federal foi obrigado a intervir juridicamente para limitar a corrupção. A facção da oposição dentro do sindicato, o UAWD (D de democrático), ganhou o direito a uma votação directa para eleger a nova liderança. Até então, a nova direcção tinha sido eleita dentro da própria máquina, por delegados e funcionários apoiantes da direcção. Foi assim que Shawn Fain, o homem que nos encoraja a comer os ricos, foi eleito presidente do UAW em Março de 2023. Antigo electricista da Chrysler (hoje Stellantis) e opositor ferrenho da política de concessões, Fain tornou-se uma figura nacional popular. Oriundo de um meio protestante de esquerda, utilizou um discurso de classe combativo, de influência bíblica, centrado no igualitarismo e na crítica aos ricos e poderosos. Os patrões, preocupados com esta mudança de atitude, estão a tentar reposicionar-se e contra-atacar. Os patrões das três grandes empresas (Ford, GM e Stellantis) recorreram à chantagem, acusando os grevistas de estarem a fazer o jogo dos seus concorrentes, Toyota e Tesla, ao mesmo tempo que minimizavam o carácter radical da retórica de Fain. Para o patrão, William Clay Ford Jr., «uma parte desta retórica é teatro, ou seja, uma forma de a nova direcção manter uma base descontente». E acrescentou: «Fazemos todos parte da mesma equipa. Conheço pessoalmente alguns dos negociadores do sindicato. Jogamos hóquei juntos e considero-os amigos chegados» (New York Times, 22/10/23). Basicamente, o que é importante e novo, de contornos incertos, é o estado de espírito sobreexcitado da base da classe trabalhadora. O próprio Trump, durante uma rápida visita eleitoral a uma pequena fábrica ‒ não sindicalizada, claro ‒sentiu-se obrigado a elogiar Fain de forma paternalista: «O vosso novo chefe é um bom tipo.» E acrescentou: «Tudo o que os vossos líderes sindicais têm de fazer é apoiar-me e, assim que for eleito, tratarei do resto!» (NYT, 29/09/23). Ao mesmo tempo, voltou a bater na tecla absurda de que os carros eléctricos (e, portanto, os defensores do clima…) são responsáveis pela crise da indústria automóvel americana e pelo desemprego dos trabalhadores. Biden e os democratas, por outro lado, apresentaram o argumento oposto para justificar políticas proteccionistas.

Andre Lémos

Esta greve, que durou mais de um mês, pode ser vista como um sinal forte da renovação do sindicalismo americano (Entrevista com Clément Petitjean, por Romaric Godin, no Mediapart, 30/09/23). Mais do que uma renovação, trata-se de uma primeira consolidação face a um declínio contínuo. No final da greve, no início de Novembro, temos de reconhecer que os ganhos obtidos foram substanciais e raros, tendo em conta as relações de classe em geral. Incluíam um aumento salarial de 25% em 4 anos, o regresso à indexação dos salários à inflação, a conversão de contratos a prazo em contratos por tempo indeterminado, com aumentos salariais substanciais no espaço de alguns anos, e o controlo sindical sobre o encerramento de fábricas e os investimentos futuros. Este é o preço que os empregadores, sob pressão da concorrência, estão dispostos a pagar para travar o movimento. Para o sindicato, a vitória tem de ser consolidada. Para que a situação penda a favor dos trabalhadores, a adesão ao sindicato deve aumentar e, sobretudo, estender-se às outras empresas que dominam o mercado dos novos automóveis eléctricos, da Mercedes à Tesla. Os trabalhadores dos Estados do Sul devem aceitar a presença sindical do UAW. Isto está longe de ser um dado adquirido. É claro que a vitória desta greve é estimulante, mostra que a luta colectiva pode dar frutos. Alguns construtores já estão a aumentar os salários para minar o apelo da sindicalização. Coisa que não desagrada aos três grandes.

Nos Estados Unidos, na indústria automóvel como noutros sectores, as greves são hoje mais duras e a determinação é mais forte, face ao empobrecimento geral, à violência das condições de vida das classes trabalhadoras e à arrogância indecente da riqueza que cresce a olhos vistos. A inflação galopante está constantemente a corroer o nível de vida. Os dirigentes sindicais corruptos estão a dar lugar a outros mais empenhados, e as tendências de esquerda nos sindicatos estão muito presentes e são ouvidas.

Nos Estados Unidos, na indústria automóvel como noutros sectores, as greves são hoje mais duras e a determinação é mais forte, face ao empobrecimento geral, à violência das condições de vida das classes trabalhadoras e à arrogância indecente da riqueza que cresce a olhos vistos.

Do ponto de vista da força colectiva dos trabalhadores, da sua capacidade de autonomia, o quadro é mais obscuro. Nos Estados Unidos, o empenhamento dos trabalhadores nas lutas, a sua participação nos piquetes de greve e, inversamente, o seu respeito pelos piquetes de greve dos outros trabalhadores, são evidentes. Em contrapartida, esta energia quase nunca se encontra nas formas de auto-organização, continuando a ser regra o respeito pelo modo de funcionamento do sindicato. Existe um fosso entre a força colectiva e a capacidade de auto-organização. Ocasionalmente, a actividade autónoma ou independente pode ser vista nas redes de apoio logístico aos grevistas. Foi o que aconteceu durante as greves dos professores, em que se assistiu muitas vezes à solidariedade dos colectivos de pais. A submissão aos aparelhos e aos seus funcionários, os «organizers», como são chamados, continua a ser um facto marcante. Por altura desta greve no sector automóvel, falou-se nas grandes greves de 1936-37 em Flint, no Michigan, que se caracterizaram pela ocupação (Sit-Down Strikes) das fábricas da General Motors. Este movimento tinha permitido que o UAW conseguisse uma implantação forte no sector. No espaço de um ano, o número de membros do UAW passou de 30 000 para meio milhão. Desta vez, a greve não apelou à auto-organização, nem sequer à acção dos grevistas, para além da formação dos piquetes. O modo de acção manteve-se burocrático. As decisões de fazer greve de surpresa, nesta ou naquela fábrica ‒ inegavelmente muito eficazes ‒ foram tomadas pelo aparelho sindical sem consultar os trabalhadores. Estes eram informados (por SMS), por vezes apenas algumas horas antes da greve. O sindicato continua a ser o horizonte último, e as lutas permanecem dentro dos limites do mundo tal como ele é e tal como se reproduz. A ausência de actividade colectiva de base não permite o desenvolvimento de novas relações sociais. A esquerda sindical, a esquerda socialista ‒ que está a fazer «entrismo» na velha máquina do Partido Democrata, com Bernie Sanders à cabeça ‒ estão a colocar todo o seu empenho no reforço das tendências reformistas dos sindicatos. Dão mais vida à actividade sindical de base, mas continuam a funcionar de acordo com princípios políticos hierárquicos, com a energia da comunidade em luta canalizada para o aparecimento de novos líderes. É este, de momento, o estado de consciência dos trabalhadores, tal como está expresso na vaga de greves nos EUA.

***

Num restaurante tibetano em Courtelyou Rd, em Brooklyn, uma jovem está a conversar com uma amiga. Tem vestida uma T-shirt que diz «No more Police». Olhares cúmplices. Poderíamos levar uma mensagem como esta para as ruas e restaurantes de uma cidade francesa ou europeia? A afirmação de ideias no espaço público é comum. Não são raros os cartazes «Black Lives Matter». Por vezes também «Support the Police»… Estes estão certamente mais difundidos no Sul e no Centro-Oeste conservadores do que nas ruas das cidades da Costa Leste. Mais arrepiante é o cartaz afixado à entrada de uma quinta no norte rural do Vermont: «A melhor maneira de encontrar Deus é através da oração, a maneira mais rápida é tentar invadir a nossa propriedade!» Para bom entendedor… Um amigo que nos acompanha assinala um segundo cartaz que exalta a qualidade biológica da carne produzida. Nobody is perfect!

Apesar de tudo, são tempos difíceis para a polícia! Vejam-se as perigosas condições de trabalho dos agentes dos serviços secretos que protegem o Presidente da maior democracia do mundo. Mordidos gravemente, em duas ocasiões, por um cão descontrolado, o cão do Sr. Biden! Perante o perigo, a administração afastou o animal da Casa Branca. A polícia de Nova Iorque, um dos maiores exércitos do mundo, pensa ter encontrado uma solução. Eis o K5, um robô policial «totalmente autónomo» que em breve estará de serviço na estação de Times Square. Dotado de quatro câmaras e repleto de dispositivos de segurança de alta tecnologia, o robô, já em serviço em hospitais e casinos, é o queridinho de Adams, o presidente democrata da Câmara Municipal, ele próprio um antigo polícia. Este elogia o desempenho e o baixo custo do espécime: «O K5 custa-nos 9 dólares por hora. É menos do que o salário mínimo, não vai à casa de banho, não faz pausas para comer» (NYT, 23 de Setembro). Mas nem todos partilham do seu entusiasmo. Há quem se preocupe em saber se o K5 tem bons travões, se pode impedir ser empurrado para os carris.

Estamos a viver uma época «fantástica», mas, nestes tempos sombrios, o futuro não está garantido.

 


Ilustraçōes de  André Lemos


Artigo publicado no JornalMapa, edição #41, Abril|Junho 2024.


Written by

Jorge Valadas

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