Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: O quebra-cabeças sírio que rebentou em Alepo
Nota: Este artigo foi originalmente publicado no El Salto em 11 de dezembro. A situação atual na Síria é bastante critica e está em constante mudança. O regime Sírio caiu e o futuro da região é incerto. O projeto político no Nordeste do país está sob ameaça do Estado turco e mais uma vez a lutar ferozmente para defender o seu território e as suas comunidades. A região autogerida de Manbiji foi ocupada nos últimos dias pelas forças jiadistas patrocinadas e apoiadas pelo Estado turco. Cerca de 200 mil pessoas tiveram de fugir das suas casas na região de Shehba a norte de Alepo, onde agora as forças apoiadas pela Turquia levam a cabo uma limpeza étnica. Estas 200 mil pessoas vivem agora em condições precárias e o seu futuro é incerto. Esta situação está a criar uma grave e séria crise humana no Nordeste da Síria que não deve ser ignorada. Os bairros de maioria curda na cidade de Alepo, com cerca de 100 mil pessoas, estão cercados pelas forças do HTS/ENS e vivem sob ameaça diária. A atenção mediática novamnete dada ao conflito da Síria, que nunca terminou ao longo dos últimos treze anos de guerra civil, tem-se focado apenas nos desenvolvimentos e na voz dos chamados «rebeldes». Qualquer solução pacífica e verdadeiramente democrática para o conflito da Síria não pode acontecer sem incluir a Administração Autónoma do Nordeste da Síria e a questão curda. Daí a importância de informar sobre este conflito e os seus últimos desenvolvimentos, e também de tentar entender a proposta que a Administração Autónoma do Nordeste da Síria apresenta para a resolução deste conflito. Para isto, e para aqueles que desejem informar sobre este conflito, aconselhamos o contacto com a Plataforma de Solidariedade com os Povos do Curdistão, que é capaz de criar pontes de contacto com os atores no terreno e as organizações da Administração Autónoma do Nordeste da Síria. Podem contactar a Plataforma através do seu Instagram (@plataformacurdistao) ou e-mail (portugal4rojava@gmail.com).
A vida de Noh Muhammad Rasho brilhou durante apenas quatro meses. A sua morte, depois de a sua família ter viajado três dias do norte de Alepo para Raqqa, transformou-se numa viagem mortal. Na terça-feira, 3 de dezembro, sob um frio intenso, a pequena criança fechou os olhos para sempre, rodeada pela família.
A família Rasho era originária da cidade de Bulbul, na zona rural de Afrin, o cantão curdo no Norte da Síria ilegalmente ocupado desde 2018 pelo ENS, apoiado pela Turquia. Os mercenários e jiadistas do ENS são os mesmos que hoje tentam romper as defesas curdas para chegar à cidade de Manbij ou invadir os bairros curdos de Sheikh Maqsoud e Ashrafiyeh em Alepo.
Noh e a sua família já tinham sido deslocados de Afrin pelos parceiros jiadistas do Estado turco. A agência de notícias North Press resumiu o infortúnio da família Rasho da seguinte forma: «A sua árdua viagem foi feita em condições difíceis, sem refúgio nem recursos adequados.»
Na quarta-feira, 4 de dezembro, a Synergy/Hevdesti Association, um grupo de defesa dos direitos humanos no Nordeste da Síria, documentou a execução de Amina Hanan, uma mulher curda de quarenta anos com necessidades especiais, pelas facções do ENS quando estas tomaram o controlo da cidade de Tel Rifaat, no Norte de Alepo. A associação denunciou igualmente a detenção de muitos civis que optaram por permanecer nas suas casas na região de Shehba, outra zona crítica desde 27 de novembro, quando o Hay’at Tahrir al-Sham (HTS) e o ESN lançaram operações militares contra Alepo e o cantão de Shehba-Afrin.
Por trás das mortes, das detenções e das violações dos direitos humanos cometidas por ambos os grupos está, como um marionetista implacável, Recep Tayyip Erdogan.
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O que está a acontecer atualmente na Síria era de esperar e tem que ver com a forte interferência da Turquia através de grupos jiadistas e mercenários. A situação na província de Idlib, controlada pelo HTS, e em áreas de Rojava — como Afrin, Serekaniye e Al Bab — também ocupadas ilegalmente pelo ENS, foram o terreno fértil para esta nova implosão no país.
Nem as exigências do extinto regime sírio para que a Turquia se retire das regiões que ocupa com grupos proxies, nem as exigências da Administração Democrática Autónoma do Norte e Leste da Síria (ADANLS) — encabeçada pelos curdos, mas na qual participam arménios, assírios, turcomanos e outras nacionalidades — para que o Estado turco devolva as terras ocupadas e pare com os bombardeamentos quase diários da região, foram ouvidas em pormenor pelas potências internacionais ou por organismos como a ONU.
Dar à Turquia carta branca para organizar, financiar e apoiar grupos como o ENS tem consequências muito graves, como estamos a ver agora.
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O Centro de Informação de Rojava (RIC) publicou na semana passada um relatório sobre a situação no Norte da Síria. O RIC, que está sediado na região, apresentou um panorama pormenorizado dos últimos acontecimentos:
— Nas regiões da ADANLS há «uma escassez crítica de bens essenciais, alimentos, água, medicamentos e abrigos para os deslocados».
— Foi confimado que, em apenas alguns dias, o ENS cometeu «ataques, roubos, detenções e extorsões contra civis curdos que ainda se encontravam em Shehba ou que tentavam sair».
— O Crescente Vermelho Curdo apelou a que fossem feitos donativos tendo em conta a grave situação humana.
— O ENS apoderou-se de casas de civis curdos nas aldeias e cidades em que entrou, e revistou e confiscou os pertences dos aldeões curdos que regressavam a Afrin.
— De acordo com o RIC, «prosseguem as negociações das Forças Democráticas Sírias (SDF) e da ADANLS com o HTS. Os representantes das SDF afirmam que os habitantes decidirão se querem sair ou ficar» nas zonas ocupadas ou atacadas.
— Registou-se um ataque de um avião não tripulado turco a um carro perto da estação de autocarros na cidade de Derik que matou dois civis e feriu outros dois. «Este é o segundo ataque turco com aviões não tripulados no Nordeste da Síria na última semana, após o ataque de há três dias em que Aziz Sheikho, de 20 anos, foi morto. Foi atingido quando conduzia na estrada entre Qamishlo e Heseke», informou o RIC.
O governo turco sempre afirmou publicamente que um dos seus principais objetivos na Síria era acabar com a experiência política, social e democrática da ADANLS.
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O governo turco sempre afirmou publicamente que um dos seus principais objetivos na Síria era acabar com a experiência política, social e democrática da ADANL
O avanço do HTS e do ENS sobre Alepo e a sua subsequente conquista de Damasco estão ligados, primeiramente, aos planos turcos de expansão territorial. Também a crescente instabilidade no Médio Oriente, com o genocídio que Israel comete em Gaza e no Líbano. Neste contexto, a Turquia está a tornar-se cada vez mais pragmática e feroz. O governo do presidente Erdogan está a tentar, por todos os meios, posicionar a Turquia como um fator de desestabilização no Médio Oriente.
O governo turco sempre afirmou publicamente que um dos seus principais objetivos na Síria era acabar com a experiência política, social e democrática da ADANLS. Na ideologia de Erdogan e dos seus ministros, é inconcebível que o povo curdo consiga criar regiões autónomas e autogovernadas. Ao mesmo tempo, há pelo menos um mês que o governo turco intervém ilegalmente nos municípios que o partido pró-curdo Igualdade e Democracia (DEM) venceu nas eleições de março passado. O governo interveio em municípios importantes, como a cidade de Dersim, enviando forças de segurança, expulsando os presidentes de câmara e de assembleias municipais e nomeando funcionários estatais, em violação das leis nacionais e internacionais. Face a esta situação, o povo curdo da Turquia mobiliza-se contra estas medidas ditatoriais.
Erdogan tem duas linhas muito claras: crescer como potência e expandir-se territorialmente, e resolver as suas crises internas com mais repressão, muitas vezes desencadeando operações militares contra as regiões curdas.
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O HTS é uma cisão da Al Qaeda, que partilha a ideologia deste grupo terrorista. O ENS é semelhante, com apoio aberto da Turquia, e envolve muitos antigos membros do Estado Islâmico (ISIS ou Daesh). Nos últimos dias, foram vistos vídeos de mercenários do ENS a usar emblemas negros com o símbolo do Daesh nos seus uniformes militares.
Após a tomada de Alepo, o HTS emitiu uma declaração afirmando que respeitaria os direitos do povo curdo e das minorias religiosas da região. Confiar nestas palavras é colocar a vida das comunidades sob a ameaça de um escorpião. Embora a maior parte dos meios de comunicação social os descreva como «rebeldes», os antecedentes do HTS e do ENS mostram-nos como mercenários que cometem crimes impiedosos. Nestes dois grupos existe algo semelhante ao que aconteceu quando os talibãs tomaram o poder no Afeganistão em 2021: uma urgência em «limpar» os registos das forças responsáveis pelas mais diferentes violações dos direitos humanos.
Se os grupos ligados à Turquia consolidarem novos territórios sob o seu controlo, assistiremos ao que se vê nas zonas ilegalmente ocupadas por grupos apoiados por Ancara no Curdistão sírio (Rojava): repressão, raptos de civis, violações dos direitos humanos, retrocesso dos direitos conquistados, pilhagem de casas. Em regiões ocupadas como Afrin, sob controlo do ENS desde 2018, a lira turca foi implementada como a moeda oficial, falar curdo foi proibido, o sistema educativo implementado é em turco e com o seu plano de estudos, e em todo o lado há imagens e cartazes com a figura de Erdogan.
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O governo de Damasco nunca teve a intenção de ouvir os apelos da ADANLS para uma resolução pacífica e democrática da crise síria.
A queda do exilado Bashar al-Assad ocorreu num contexto em que os seus principais aliados, a Rússia e o Irão, estão concentrados noutras guerras, como a da Ucrânia e a invasão de Gaza por Israel. O HTS ou o ENS fomentam o ódio étnico contra os curdos, razão pela qual os apelidam de «porcos de Qandil», em referência às montanhas do Curdistão iraquiano onde as guerrilhas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) têm as suas bases.
Há já algum tempo que existiam diálogos de baixo e médio nível entre a Síria e a Turquia, com o objetivo de restabelecer relações. Bashar al-Assad exigia que a Turquia se retirasse dos territórios que ocupa; Erdogan recusou sempre. O governo de Damasco nunca teve a intenção de ouvir os apelos da ADANLS para uma resolução pacífica e democrática da crise síria. Simultaneamente, o Estado turco demonstrou um pragmatismo grosseiro a nível internacional: ora aliado dos Estados Unidos, ora parceiro «fundamental» da Rússia. No caso da União Europeia (UE), além das intenções turcas de aderir ao bloco, Ancara recebe milhares de milhões de euros para funcionar como barreira para impedir que migrantes cheguem ao continente europeu.
A Turquia também tem poder económico e militar: vende armas a quem as quer, sem grandes considerações. Apesar de ser o segundo maior exército da OTAN, a Turquia de Erdogan quer apresentar-se como apoiante da causa palestiniana ou como um polo anti-imperialista. Isso é, sem dúvida, uma fachada. Apesar das declarações públicas de Erdogan sobre o genocídio na Faixa de Gaza, Ancara mantém relações comerciais estreitas com Israel.
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Um dos principais objectivos do ENS é ocupar os bairros de Sheikh Maqsoud e Ashrafiyeh, em Alepo, onde vive uma maioria curda. Ambos os bairros têm uma população estimada em 100 mil pessoas. Até agora, o que está a acontecer em ambos os locais é contraditório: obter informações actualizadas não é fácil. Algumas fontes indicam que a vida continua numa tensa normalidade; outras dizem que os bairros já estão sob o controlo do HTS e do ENS.
Sheikh Maqsoud e Ashrafiyeh tornaram-se uma ilha depois de 2012, quando a população do Norte da Síria, liderada por organizações político-militares curdas, declarou a autonomia da região. Nestes bairros, existem governos autónomos sob o paradigma do confederalismo democrático, teorizado pelo líder curdo Abdullah Öcalan — preso desde 1999 na ilha-prisão de Imrali, na Turquia — e promovido pelo Movimento pela Libertação do Curdistão.
Em Sheikh Maqsoud e Ashrafiyeh, existem assembleias de bairro, o conceito de libertação das mulheres é aplicado e, com o tempo, tornaram-se locais seguros para os deslocados internos. Nos últimos anos, os dois bairros não têm estado isentos do assédio do HTS e do ENS e do governo de Damasco. O regime de Assad — tal como a Turquia de Erdogan — não concebe a proposta de democratização e autonomia apresentada pelos povos do Nordeste da Síria. Até agora, a convergência entre os dois regimes foi sempre esta: o enfraquecimento da experiência social e política conduzida pela ADANLS. Em Assad e Erdogan, o pensamento do Estado nacional que nega o outro permanece inalterado.
No início desta semana, a Administração Autónoma tinha recebido 100 mil pessoas deslocadas de Alepo e do cantão de Afrin-Shehba.
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As SDF afirmaram que, ao mesmo tempo que defenderão os seus territórios, irão deslocar a maior parte possível da população para zonas seguras. Não há números concretos, mas estima-se que entre 200 mil e 400 mil pessoas possam estar a ir das áreas de Alepo controladas pelas SDF para as regiões da ADANLS. Até ao início da semana, a Administração Autónoma tinha recebido 100 mil pessoas deslocadas de Alepo e do cantão de Afrin-Shehba. A chegada destes refugiados foi tortuosa: o ENS perseguiu-os e atacou-os, cortou as estradas para que não pudessem deslocar-se, ao que se somou um clima extremamente frio. Os refugiados foram colocados em centros de acolhimento nas cidades de Tabqa e Raqqa e em localidades dos cantões do Eufrates e Cizre.
O chefe do Departamento de Migração da ADANLS, Şêxmûs Ehmed, disse à agência de notícias ANHA que é urgente «coordenar com a ONU a criação de campos especiais». Embora tenha afirmado que a situação é «trágica», observou que muitos habitantes da ADANLS abriram as suas casas para acolher os refugiados ou juntaram-se ao trabalho de ajuda humanitária nas escolas criadas para as pessoas deslocadas.
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No domingo passado, o ministro dos Negócios Estrangeiros turco, Hakan Fidan, reconheceu o que o seu chefe, o presidente Erdogan, tinha confirmado alguns dias antes: que a interferência da Turquia na Síria foi fundamental para a queda do regime.
Fidan, um negociador experiente dos bastidores dos serviços secretos turcos, afirmou que os grupos que compõem o HTS e o ENS devem unir-se e «trabalhar de forma ordenada para que haja um bom período de transição, que acabe por incluir todas as partes dentro da Síria».
Embora o ministro dos Negócios Estrangeiros turco tenha assegurado que o seu governo procura preservar a integridade territorial da Síria, a realidade é diferente: as zonas ocupadas por Ancara estão a sofrer um intenso processo de «turquificação» há anos.
Mas o mais importante para o Estado turco é repelir a influência curda, razão pela qual Fidan voltou a comparar o ISIS às SDF, que associou ao PKK. «Estamos atentods para garantir que o Daesh e o PKK não se aproveitem desta situação», alertou.
Numa altura em que o Governo turco afia as presas para devorar uma parte da Síria, na semana passada, o partido DEM, o Partido das Regiões Democráticas (DBP, também pró-curdo), e o Movimento das Mulheres Livres (TJA) encabeçaram uma manifestação na fronteira do distrito de Suruç, em Urfa, que faz fronteira com a cidade histórica de Kobane, em Rojava. A ação teve como objetivo protestar contra o que está a acontecer na região curda da Síria e mostrar solidariedade com a população da ADANLS.
Num discurso proferido no local, a copresidente do partido DEM, Tülay Hatimoğulları, declarou que a luta do povo curdo continuará até que «a paz, a tranquilidade e a fraternidade entre os povos» sejam estabelecidas na região. A dirigente manifestou que «já vimos este filme antes» e recordou que a guerra na Síria começou em 2011, «o ISIS e as suas ramificações, que foram praticamente criadas por potências estrangeiras, foram implantadas na Síria». «As organizações derivadas do ISIS mudaram agora o seu nome para HTS ou Exército Nacional Sírio», denunciou a integrante do partido DEM. «Todas elas provêm da mesma fonte, do mesmo poder.»
Esse poder de que fala Hatimoğulları reside no Palácio Branco, em Ancara, onde o presidente Erdogan sonha constantemente em tornar-se o líder de um império otomano do século xxi.
Legenda da fotografia [em destaque]: Fotografia de arquivo de um jovem a correr nas ruas destruídas de Sheeba. Uma das cidades sob ataque na actual guerra siría. Fotografia de Mauricio Centurión
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