Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Uma crónica de proprietários ausentes e de ocupantes que cuidam
A ocupação «selvagem» que trouxe vida ao bairro
No dia 25 de abril de 2024, 50 anos após a revolução de 1974, no n.º 2 da Rua Bartolomeu da Costa, em Lisboa, aconteceu o impensável: ao arrepio do princípio da propriedade privada, consagrado na Constituição, centenas de pessoas ocuparam um enorme edifício emparedado há quinze anos. Durante uma semana, desenvolveram ali intensa atividade de limpeza e construção e deram uma resposta autoorganizada a necessidades básicas — também elas consagradas na Constituição —, como a habitação, a alimentação e o acesso à cultura. Vasco Canto Moniz, há 35 anos presidente da Fundação D. Pedro IV, proprietária do imóvel, assumiu ao Público ter sido o responsável por apresentara queixa que viria a precipitar o despejo no dia 2 de maio, finda a semana que liga o 25 de abril ao Dia do Trabalhador. As autoridades policiais aproveitaram o descanso dos ocupantes para expulsá-los do edifício, arrombando a porta centenária depois de os informar, sem dar espaço a resposta, que «ou saíam a bem, ou saíam a mal».
Moniz é peremptório ao caracterizar a ocupação — na qual participou um grande número de pessoas, algumas das quais habitantes do Bairro de Santa Engrácia e antigas utentes daquele espaço — como «selvagem», em declarações prestadas ao Expresso 1. Apresentando-se como cidadão respeitador da lei, prontificou-se a justificar o prolongado abandono do edifício, que facilmente poderia levar a acusações de incumprimento dos fins sociais da Fundação, uma IPSS que tem como objetivo primário a ação social no apoio à infância e à velhice. O abandono prolongado, segundo Moniz, deve-se à morosidade da CML no desbloqueamento dos projetos de construção de apartamentos que a Fundação tem submetido desde 2010, e que permitirão «valorizar o património», objetivo secundário expresso nos seus estatutos, empregando o dinheiro realizado com a venda do imóvel em ações de cariz social. Note-se que a Fundação afirma ser cronicamente subfinanciada pelo Estado, argumento com que foram justificadas as más condições oferecidas em alguns dos seus equipamentos sociais, como o Lar de Marvila, que acabou por fechar em 2020 2.
Segundo o que Canto Moniz disse ao Expresso, os apartamentos projetados para o edifício da Rua Bartolomeu da Costa serão de «habitação comum», destinados à classe média. Situado no Bairro de Santa Engrácia, historicamente de habitação operária, mas pertencente à freguesia de São Vicente, onde se tem verificado uma vertiginosa subida do preço das casas 3, o complexo de habitação comum (i. e., não «social») será colocado à venda no mercado livre, alcançando, certamente, preços incomportáveis pela classe média, e ainda menos pela população que habita e mantém laços históricos com o bairro. Na prática, a habitação é encarada como um «investimento», no contexto da especulação que grassa no mercado imobiliário, para gerar fundos a serem investidos em ação social. Mas será que é mesmo assim?
Sob o olhar da Segurança Social
Vasco Canto Moniz é presidente da Fundação D. Pedro IV desde 1989 4, tendo iniciado funções três anos antes da formalização da IPSS com o seu atual estatuto legal de fundação. Fundada em 1834 pelo rei D. Pedro IV enquanto Sociedade Promotora das Escolas Gratuitas da Primeira Infância, foi ainda conhecida como Sociedade das Casas de Asilo da Infância Desvalida e, mais tarde, como Sociedade das Casas de Apoio à Infância de Lisboa, designação adotada em 1982. Desde a sua criação, teve como objetivo promover o apoio a crianças de contextos sociais de baixos rendimentos, através de asilos, escolas primárias ou creches, tendo mais tarde alargado o seu campo de ação ao trabalho com idosos e pessoas com deficiência, e à gestão de habitação social. No que toca a Canto Moniz, quando iniciou o seu percurso na Fundação era ainda diretor regional de Lisboa do Instituto de Gestão e Alienação do Património Habitacional do Estado (IGAPHE), tendo cessado funções em 1990. Nessa altura, um relatório interno dava conta de «atropelos à legalidade» e «suspeitas de corrupção» no IGAPHE, recomendando a instauração de um processo disciplinar contra Canto Moniz 5.
Foi Pedro Seixas Antão, um outro membro fundador da Fundação D. Pedro IV na sua atual forma, que em 1996 fez chegar uma denúncia ao então ministro da Solidariedade e Segurança Social, Ferro Rodrigues, na qual afirmava que Vasco Canto Moniz geria a Fundação tendo em vista o interesse pessoal, incumprindo gravemente a missão consagrada nos seus estatutos. A denúncia deu origem a uma investigação por parte da Inspeção Geral da Segurança Social, cujo relatório final, de 2000, corroborou em grande medida as acusações feitas por Seixas Antão, recomendando a destituição dos corpos dirigentes, ou mesmo a extinção da Fundação, cujos bens deveriam ser integrados noutro organismo que pudesse geri-los de forma adequada. Entre os factos apurados, contava-se a construção na Rua D. Carlos I de um projeto imobiliário legalmente autorizado para fins sociais, mas que na prática incluía 46 apartamentos de luxo, escritórios e lojas; a autojustificação de despesas pessoais avultadas; e o incumprimento da missão de apoio a crianças de meios sociais de baixo rendimento, ao «privilegiar a admissão de crianças oriundas da classe média e média alta», assim como ao atribuir bolsas de estudo a familiares de membros da Fundação, apesar destes não sofrerem de carência económica 6.
Surpreendentemente, este relatório só veio a ser conhecido anos mais tarde, uma vez que foi arquivado sem ter sido submetido a apreciação ministerial aquando da sua elaboração. Simões de Almeida, então inspetor geral da Segurança Social, afirmou não saber justificar o porquê deste arquivamento. Com tudo, sob a sua tutela, foi homologado em 2002 um outro relatório, desta feita com conteúdo favorável à Fundação 7. O relatório de 2000 viria finalmente a tornar-se público no âmbito de um processo por difamação movido por Vasco Canto Moniz e pela Fundação D. Pedro IV contra Seixas Antão, no qual lhe exigiam uma indemnização de 75 mil euros. A queixa acabou por ser retirada, sendo que Seixas Antão aceitou um acordo, justificando-se com o cansaço e os custos decorrentes de um longo processo judicial — sem, contudo, deixar de reiterar à imprensa as suas afirmações sobre a má gestão da fundação, aliás sustentadas pelo relatório de 2000 8.
O caso dos Bairro dos Lóios e das Amendoeiras
Mas esta não é a única instância em que a Fundação D. Pedro IV sob a direção de Canto Moniz se viu envolvida em polémicas. Em 2004, durante o governo de Durão Barroso, a Fundação recebeu gratuitamente do Estado cerca de 1.400 fogos de habitação social bastante degradados, no Bairro dos Lóios e no Bairro das Amendoeiras, em Chelas, como parte do processo de extinção do IGAPHE, que por todo o país facilitou a cedência gratuita de património habitacional do Estado a câmaras municipais e a IPSS. Neste com texto, a Fundação D. Pedro IV foi a única IPSS a aplicar a cláusula que permitia a atualização das rendas de habitação social, ao abrigo do regime legal da renda apoiada 9. Os moradores viram, assim, as rendas sociais de 20 a 30€ serem aumentadas para 200 a 300€, tendo a Fundação alegado que as casas, comprovadamente degradadas e há muito carentes de intervenção, estavam em bom estado de conservação. Canto Moniz reconheceu posteriormente a necessidade de realizar uma nova avaliação, e justificou o aumento das rendas, em muitos casos pelo coeficiente máximo, com o facto de alguns moradores não terem entregado declarações de rendimentos. Tal não mitigou a sensação de injustiça sentida pelos moradores, cujas ações interpostas contra a Fundação — que chegaram a acusar de «terrorismo social» — acabaram por ser coroadas de sucesso. Em 2007, foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República uma recomendação do PCP para que os fogos revertessem para o Estado, com salvaguarda da possibilidade de compra por parte dos moradores, o que acabou por concretizar-se. Foi também em 2007 que um grupo de pais de crianças que frequentavam os equipamentos da Fundação se organizou para expor a falta de condições sentida em algumas unidades, apesar dos esforços das funcionárias e funcionários neles empregados. Nesse ano, a RTP exibiu uma Grande Reportagem que expunha estas e outras práticas questionáveis daquela a que apelidou de «fundação intocável», aludindo às diversas suspeitas cuja investigação nunca foi levada até às últimas consequências. Dez anos mais tarde, a CGTP noticiou a existência de casos de assédio moral por parte da Fundação a trabalhadores sindicalizados no Lar de Marvila, engrossando uma já extensa lista de notícias de alegadas más práticas 10.
A afirmação do «poder popular» no 25 de abril de 2024
Se a reconversão de um grande imóvel destinado a fins sociais num complexo habitacional sujeito aos valores especulativos do mercado pode suscitar desde logo objeções, são igualmente visíveis as outras potencialidades de uso do espaço em questão. As enormes dimensões do edifício e o facto de ter um jardim amplo e agradável — por diversas vezes referido pela vizinhança como o único espaço verde do bairro — tornam-no no espaço ideal para a criação de um centro social e cultural que possa servir o bairro, onde os moradores se queixam da falta de espaços de convívio, onde gostariam de ver acontecer atividades para todas as idades, contrariando assim o isolamento, e a insegurança dele decorrente, que atualmente sentem. A par desta questão, é também conhecida a grande dificuldade vivida por inúmeras associações culturais em encontrar ou manter espaços em Lisboa, devido às rendas proibitivas que lhes são exigidas e aos cada vez mais frequentes processos de despejo. Recorde-se que associações como a Sirigaita ou a Zona Franca dos Anjos, entre outras, enfrentam atualmente esta ameaça, procurando alternativas que lhes permitam continuar a resistir. Estas são apenas duas das necessidades dialogantes a que o edifício no n.º 2 da Rua Bartolomeu da Costa pode dar resposta.
Durante os sete dias da ocupação, moradores, membros de associações culturais em luta e muitas outras pessoas tomaram nas suas mãos a construção do Centro Social de Santa Engrácia, que respondeu a pelo menos quatro dos principais objetivos referidos nos estatutos da fundação que detém legalmente a propriedade do espaço: (a) o apoio a crianças e jovens, mediante várias atividades artísticas, como oficinas de banda desenhada, cerâmica, pintura e narrativas sonoras, assim como a criação de uma sala para crianças com biblioteca; (b) o apoio à integração social e comunitária e a (c) proteção dos cidadãos na velhice e invalidez, com uma cantina social diária, espaços de convívio e assembleia de vizinhança; e (g) a promoção de iniciativas de caráter cultural, com concertos, leituras de poesia, conversas, oficinas e projeção de filmes. Acrescenta-se que estas atividades não foram decididas nem implementadas de forma unilateral e hierárquica, mas antes cocriadas e geridas horizontalmente, sendo as vontades, capacidades e propostas de diferentes participantes discutidas em assembleias gerais diárias, assim como em assembleias pontuais focadas em questões específicas, como a assembleia dos cuidados, a assembleia da vizinhança ou a assembleia de resistência, na qual participaram associações sem espaço, ou em risco de o perder.
A ocupação do Centro Social de Santa Engrácia contrariou, assim, e no período de uma semana, o imobilismo e a ausência de soluções sentida por quem quer construir a vida cultural e social da cidade fora dos modelos especulativos do mercado, experimentando soluções concretas e amplificando a vontade popular — a qual, nos 50 anos do 25 de abril, se pretendeu recordar estar na base da legitimidade da democracia. O desrespeito pela propriedade privada é prontamente condenado por quem adere a uma conceção de democracia estritamente legalista, que, no limite, conduz a uma burocracia instalada, sem empatia e desligada da realidade vivida, ou mesmo favorece interesses pessoais ao invés de «fins sociais», a promover em comunidade. Inversamente, a ocupação do n.º 2 da Rua Bartolomeu da Costa convocou a memória do PREC para voltar a afirmar o «poder popular», assumindo a responsabilidade de dar resposta às questões urgentes de todos os dias, e rompendo com a sensação de impotência através da participação e da construção coletiva.
Texto de Filipa Cordeiro
Fotografias de Outros Angulos Garras
Notas:
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