Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Todos perdemos quando deixamos que o debate seja sobre “os bairros” e não sobre a polícia.
Já passou uma semana sobre o brutal assassinato de Odair Moniz. E durante esta semana pouco se discutiu sobre os métodos da PSP. Pelo contrário, muitos foram os debates sobre os “bairros”, com o centro da discussão posta nas condições indignas de muitas dessas zonas periféricas da grande Lisboa, as questões socioeconómicas, os fenómenos de “marginalidade” ou a suposta apetência dos moradores dessas zonas para o crime. Esse debate, baseado sobretudo nos preconceitos de quem olha para estas zonas como eternos “bairros problemáticos” é importante se for feito exatamente para desmentir a ideia de que a criminalidade é um exclusivo das zonas desfavorecidas, ou para destacar os reais problemas inerentes às populações proletarizadas e excluídas dos direitos de “cidadania democrática”. Mas porquê agora? Foi “o bairro” que matou Odair? Não foi.
O que aconteceu agora, pela enésima vez, foi o total desrespeito pela vida humana de uma instituição que usa e abusa da autoridade conferida pelo estado (todos nós, em teoria) e que não é nem nunca foi uma instituição que promovesse “cidadania” democrática ou outra qualquer.
Essa instituição é a Polícia.
Carregamos em Portugal o peso de uma polícia que nunca deixou para trás os fundamentos teóricos e práticas diárias que adquiriu durante os períodos republicanos e salazaristas, carregamos uma visão de autoridade que só sobrevive enquanto o medo for a sua principal arma, e a mentira e impunidade o seu escudo.
E nem é preciso partir de análises fundamentadas em princípios libertários e antiautoritários para o demonstrar. Basta a denúncia sistemática e organizada das práticas quotidianas, daquilo que acontece quando “ninguém está a ver”, e mesmo do que acontece à frente de toda a gente.
O que aconteceu com Odair não foi a exceção, mas sim a regra. Não só o que aconteceu diretamente com ele ao tornar-se a enésima pessoa a ser morta, desarmada, pela polícia; mas também é regra especialmente o guião que todos testemunhámos nos dias seguintes e que se aplica nestas e noutras situações sem o fim trágico que esta teve:
– Inventar uma mentira na hora, antes de qualquer investigação ou apuramento de fatos,
– Responsabilizar a vítima por “agressões e ameaças à polícia”
– Inventar uma arma que justifique as alegações de “autodefesa” (neste caso a faca que nunca existiu)
– Campanha para manchar a reputação da vítima por questões individuais (“suspeito”, “com cadastro”, “àquela hora em local referenciado”), ou questões coletivas (“habitante de um bairro problemático”)
O guião é, com uma outra nuance, basicamente o mesmo, previsível, eficaz, mas falível. E desta vez as falhas voltaram a ser muito visíveis, demasiado até para se manter a mentira inquestionável, como tantas outras vezes. Perante as mentiras e trapalhadas da Direção Nacional da PSP, entraram em ação todas as vozes que defendem uma polícia acima de tudo, até da própria lei.
Foi então que se perdeu a oportunidade de obrigar a que o debate público se centrasse na real questão subjacente a este assassinato, quando as vozes que não defendem a impunidade policial foram desviadas uma e outra vez para a análise dos elementos laterais a esta revoltante história.
Temos de ser capazes de uma vez por todas de pôr o dedo na ferida, e não deixar que depois de terem roubado a vida do Odair, roubem agora o centro do debate. Não se pode calar mais a realidade da atuação de grupos legalmente armados, que ao abrigo do monopólio da violência que lhes é entregue, se façam juízes, júris e carrascos de qualquer pessoa. Acima de tudo, importa referir que o problema não é a polícia ser mais ou menos diversa na sua composição, não é estar “infiltrada” pela extrema-direita, ser mais ou menos democrata, mais ou menos racista. Devemos levantar o problema essencial de que a nossa segurança esteja entregue a uma instituição tão problemática como o é a Corporação Policial, questionar as suas bases e fundamentos, e ser capazes de dizer que o racismo, o machismo e a permeabilidade da polícia às ideologias mais autoritárias agravam de fato o problema, mas não são a sua génese.
Este tem de ser o foco da discussão, e a maior justiça que se pode fazer a Odair e a tantos outros é a de abolirmos de uma vez por todas a possibilidade que forças armadas com autoridade matem qualquer um impunemente, e não a de mandar este polícia para a prisão mantendo o resto da estrutura intocável.
A autoridade que todos testemunham que Odair Moniz tinha naquele e noutros bairros da periferia lisboeta era uma autoridade que se confere quando pessoas são amadas, estimadas, e respeitadas pelas capacidades de entrega, de mediação, e de solidariedade. Essa autoridade que todos reconhecemos e que tem impactos positivos em qualquer comunidade, em qualquer bairro, em qualquer casa.
A autoridade de quem se sente maior do que a lei, da imposição pela violência, pelo medo ou pela barbárie nunca será respeitada. Nem pode. Tem de ser combatida, e algum dia teremos mesmo de a substituir.
Texto de Nuno Pereira
Fotografias de Outros Angulos Garras
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