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Lendo: Águas Revoltosas da Ilha da Madeira

Águas Revoltosas da Ilha da Madeira

Águas Revoltosas da Ilha da Madeira


Para compreendermos o verdadeiro significado das levadas para as gentes da Madeira é necessário conhecer o processo de colonização que se operou neste território.
Assume especial relevância a História da Levada do Moinho. A «Revolta das Águas», como ficou conhecida, é o retrato de uma vivência de união e solidariedade entre um povo que nunca desistiu de «guardar a sua água», enfrentando corajosamente o Estado numa luta que levou até à detenção de dezenas de pessoas e ao assassinato de uma jovem às mãos da polícia que nunca foi condenada.
Apesar das várias tentativas de usurpação deste bem comum, atualmente, a água da Levada do Moinho permanece em regime de gestão comunitária, num funcionamento mais flexível do sistema de irrigação das terras e numa proximidade entre os habitantes já pouco vivida nos dias que correm.

Todos os anos as levadas da Madeira são percorridas por milhares de turistas em busca de aventura, de paisagens bucólicas, de uma efémera fuga à selva urbana. Apoiando-se no argumento de que não é justo os contribuintes pagarem para a manutenção de tais percursos, o presidente da região autónoma decide proceder à cobrança de entradas 1. Numa notícia sobre a primeira mercantilização de um percurso pedestre na Madeira, Miguel Albuquerque é citado a dizer que «se entendermos a ilha como um corpo, as levadas, desde a colonização da Madeira, no século XV, são no fundo as veias desse corpo» 2. Nisso o discípulo de Alberto João Jardim (presidente da Madeira durante 37 anos) terá razão: estes canais construídos ao longo de toda a ilha com suor e sangue dos seus habitantes menos abastados constituem veias abertas do nosso passado colonial 3. Em consonância com esta perspectiva está Gabriela Relva, presidente da Associação de Regantes da Levada do Moinho da Lombada e Lugar de Baixo, afirmando que para compreendermos o significado das levadas para o povo madeirense é imperativo conhecer o processo de colonização deste arquipélago. E no que respeita à Levada do Moinho, que a nossa interlocutora representa e que desencadeou uma célebre revolta popular em pleno Estado Novo, essa história é marcada com «lágrimas de sangue».

Aquando da colonização da ilha da Madeira, iniciada por volta de 1425, o território terá sido dividido entre a capitania de Machico, que incluiria todo o norte da ilha e seria concedida a Tristão Vaz Teixeira, e a capitania do Funchal, que se estenderia até ao extremo sul da ilha, sob o comando de João Gonçalves Zarco. Os terrenos correspondentes ao Sítio da Lombada, onde se localiza a Levada do Moinho, terão sido doados a Rui Gonçalves da Câmara, segundo filho varão do capitão-donatário do Funchal. Prova inequívoca de uma linhagem fértil em talento governativo, Rui Gonçalves da Câmara seria, por sua vez, nomeado (terceiro) capitão-donatário da ilha de São Miguel, em 1474. Razão pela qual a imensa propriedade que incluía tais terrenos terá sido concedida, em regime de sesmaria 4, ao flamengo Jeanin Esmeraut – re-batizado pelos habitantes locais como «João Esmeraldo» – para a produção de cana-de-açúcar, a principal cultura da Madeira antes de se ter tornado mais barato importar açúcar do outro lado do Atlântico do que produzi-lo localmente. O título de «Morgado» terá sido atribuído a Esmeraut, em 1522, por D. Manuel I, e terá sido na condição de Morgadio que a Levada do Moinho fora construída. Esta propriedade ter-se-á mantido sob regime de morgadio até ao século XIX, com a falência do seu último herdeiro, conhecido localmente como Conde Carvalhal, que, de tanto ostentar o seu nobre título em luxuosas festas e banquetes, ter-se-á visto obrigado a vender as suas terras em hasta pública para cobrir as aristocráticas dívidas por si contraídas.

A nova detentora das terras da Lombada seria, então, a empresa britânica Giorgi & C.ª, dedicada à produção vinícola. Mudavam-se as nacionalidades, mas a relação laboral entre agricultores sem-terra (os «colonos») e proprietários mantinha-se muito próxima de um regime de escravatura. Os colonos, desprovidos de meios de produção (e de habitação) próprios, não tinham outra opção além de submeter-se a trabalhar (e a pernoitar) nas terras dos senhorios, a quem era normalmente concedido o direito a metade da produção. E ainda que fossem os agricultores a entregar a cana-de-açúcar nos engenhos de refinação, o pagamento era exclusivamente reservado aos senhorios.

Os colonos… não tinham outra opção além de submeter-se a trabalhar (e a pernoitar) nas terras dos senhorios, a quem era normalmente concedido o direito a metade da produção.

Nos inícios do século XX, a Giorgi & C.ª decide propor a venda de parcelas de terreno aos colonos que as quisessem/pudessem comprar. A aspiração de adquirir a sua própria propriedade terá impulsionado um crescente fluxo de emigração que tivera como principal alvo a ilha de Curaçau, nas Antilhas (ainda hoje colónia do Reino dos Países Baixos), onde imperava um cultivo de cana-de-açúcar semelhante ao da ilha da Madeira. Segundo Gabriela Relva que, ao longo dos anos como presidente da associação de regantes, tem estudado em detalhe a história da Levada do Moinho, o dinheiro pago pelos colonos à Giorgi & C.ª seria encaminhado para os Estados Unidos da América. Portanto, motivada pelo advento da Grande Depressão, a empresa terá decidido desistir da venda dos terrenos, deixando os colonos sem direito de posse, visto que as escrituras ainda não tinham sido efectuadas. Para evitar o agravamento do conflito entre habitantes locais e uma poderosa empresa do Reino Unido – esse histórico «aliado» de Portugal -, Salazar, então Ministro das Finanças, terá proposto a compra dessas terras. Passará então a ser o Estado Novo quem, em 1936-37, desenvolve um processo de venda das respectivas parcelas de terreno aos populares, que, durante um período de 20 anos, passam a pagar prestações anuais ao Estado. Segundo Gabriela Relva, algumas dessas prestações ultrapassariam os 1000 escudos, o que nesse tempo corresponderia a um valor exorbitante, sobretudo tendo em conta as condições económicas dos habitantes. Para os acontecimentos que se seguem é essencial destacar que, juntamente com o terreno, os ex-colonos compravam o direito a água de rega, neste caso à água que corria pela Levada do Moinho, na freguesia da Ponta do Sol.

Maseira

Rocheiros, os construtores de lavadas (Facebook Madeira Quase Esquecida)

Em meados do século XX, o Estado Novo desenvolve um grande projecto hidroeléctrico na ilha da Madeira, período esse que coincidiria com o final das últimas prestações que os habitantes da Lombada teriam de pagar pelas suas terras. É nesse contexto que é iniciada a construção da central hidroeléctrica da Serra de Água, para a qual o governo tencionava desviar a água que corria pela Levada do Moinho e irrigava as terras da Lombada. Para esse fim, o Estado inicia em 1958 a construção da chamada «Levada Nova» da Lombada. Como é natural, os regantes rapidamente terão receado ficar desprovidos de água para irrigar as suas terras: água pela qual tinham pago tão caro! No dia 6 de Maio de 1962, após a conclusão da Levada Nova, o então presidente da Câmara terá convocada uma reunião no adro da Igreja da Lombada, em que apelava aos munícipes para não se oporem ao projecto, sob o risco de serem derramadas «lágrimas de sangue». Rejeitando o conselho do autarca, várias pessoas dirigem-se ao «Cabo da Levada», onde uma porção da água da Ribeira da Ponta do Sol era desviada para a Levada do Moinho, de forma a impedir que os levadeiros do Estado a canalizassem para a Levada Nova. A partir desse dia, os populares terão marcado presença constante no local para «guardar a sua água», num episódio que ficou conhecido como «A Revolta das Águas». Durante os três meses que se seguiram, os revoltosos terão resistido a repetidas intimidações e ataques policiais, o que terá inclusive resultado em penas de prisão.

Gabriela Relva destaca a união e a solidariedade que se fariam sentir entre os habitantes e as estratégias de comunicação desenvolvidas: quando se apercebiam da chegada de jipes do Estado, enviavam informantes para o Cabo da Levada ou tocavam búzios a partir das zonas mais altas para alertar os seus conterrâneos. Terá sido justamente isso que terão feito no dia 21 de Agosto, por volta das cinco da manhã, ao aperceberem-se da chegada de vários autocarros repletos de homens fardados, acompanhados de jipes do Estado. A polícia terá bloqueado as vias de acesso e cercado o local, atacando e prendendo quem apanhasse pelo caminho. Nesse dia terão sido detidas cerca de 70 pessoas, permanecendo na prisão de Agosto a Novembro sem direito a julgamento. No Cabo da Levada, segundo nos conta Gabriela, após os polícias cercarem os revoltosos, o comandante terá disparado para o ar e dito através de um megafone: «Têm cinco minutos para se retirarem!». Como táctica defensiva, as mulheres e crianças terão formado uma barreira frontal, partindo do princípio que as autoridades não as atacariam. Porém, perante a insubordinação dos presentes, a polícia terá começado a disparar em todas as direções e a espancar quem conseguisse capturar. Sãozinha, irmã de Gabriela, que teria 17 anos na altura e terá sido das últimas pessoas a chegar ao local, ofegante de tanto correr, terá levado a mão ao ombro de uma vizinha dizendo: «perdi um sapato, mas graças a deus cheguei» e, sofrendo um tiro na fronte, cai morta no colo da vizinha. O assassinato da Sãozinha nunca teve direito a julgamento, tendo o caso sido encerrado num despacho do Ministério do Interior que atribuía razão à polícia.

O sangue que derramaste
nas águas livres correu.
Ó Sãozinha, tu tombaste
mas o teu povo venceu.

Quadra popular em memória da menina assassinada pelo Estado Novo
durante a Revolta das Águas (1962)

Depois desse evento, o Estado terá colocado os seus próprios levadeiros a gerir as levadas e imposto novas normas de utilização, que incluíam a rega nocturna e um limite de tempo para cada turno. Alguns utilizadores rejeitariam as novas regras, recusando-se a regar durante a noite e continuando a fazê-lo de dia em coordenação com os vizinhos. Gabriela evoca uma senhora que, após ter sido presa três vezes, terá levado a luta pela auto-gestão da Levada do Moinho para julgamento. O juiz (que curiosamente poucos meses depois de ditar a sentença terá sido mobilizado para Angola) terá atribuído razão aos regantes da Lombada, concedendo-lhes o direito a manter os seus usos e costumes a respeito da gestão da sua água. Após este julgamento, ter-se-á criado uma comissão de regantes que, além de nomear advogados que a representassem judicialmente, contrataria os seus próprios levadeiros.

O assassinato da Sãozinha nunca teve direito a julgamento, tendo o caso sido encerrado com um despacho do Ministério do Interior que atribuía razão à polícia.

Na sequência do 25 de Abril, a comissão de regantes passaria a exigir que a água fosse gerida pelos próprios – ao contrário do que sucede com a maioria das levadas madeirenses, que são controladas pelo Estado – segundo os antigos usos e costumes, sem rega nocturna nem limite de tempo, e que apenas o excedente da Levada do Moinho corresse na Levada Nova. Em 2006, a comissão de regantes foi registada legalmente como Associação de Regantes da Levada do Moinho da Lombada e Lugar de Baixo, com estatutos e órgãos sociais próprios, procurando na lei uma protecção às tentativas de usurpação pelo Governo Regional. Cada membro da associação paga uma quota cujo valor depende do tamanho da área irrigada; este é calculado em «canas», uma medida antiga que equivale sensivelmente a 30 metros quadrados. Esta quota permite garantir salário e seguro de trabalho ao levadeiro, assim como a manutenção e melhoramento da levada. O regime de gestão comunitária da levada possibilita um funcionamento mais flexível do sistema de irrigação, além de promover a proximidade entre regantes, que têm de organizar entre si os turnos de rega.

Gabriela observa que actualmente os regantes utilizam água das levadas durante quase todo o ano, visto que a chuva tem sido cada vez mais escassa – embora noutras levadas esta seja normalmente distribuída apenas entre Maio e Outubro -, o que torna cada vez mais necessária a retenção da água em poços e tanques. Também me é explicado que a recolha de água da chuva não é desejável para fins de irrigação por não ser tão fértil como a água que corre pela levada, recolhendo imensos minerais e nutrientes ao longo do seu percurso desde a nascente até aos terrenos agrícolas.

Não obstante a importância da vitória histórica dos regantes da Lombada, este bem comum nunca está isento de ameaças de usurpação. Exemplo disso é o Governo Regional ter entretanto construído a Levada das Rabaças a montante em relação à Levada do Moinho, que, segundo Gabriela, transporta cada vez mais água comum directamente para a central hidroeléctrica da Serra de Água, fazendo diminuir o caudal da Levada do Moinho, o que representa uma ameaça para os regantes, sobretudo perante as mudanças climáticas e a previsão de um futuro cada vez menos chuvoso.

 


Fotografias de  Madeira Quase Esquecida no Facebook.
Legenda da fotografia [em destaque]: Os maqueiros transportando os mais ricos pelas levadas.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #40, Janeiro|Março 2024.

Notas:

  1. «Cobrança de acessos a espaços turísticos da Madeira deve avançar já este ano», Diário de Notícias, 5 de Maio de 2022.
  2. «Percurso da Ponta de São Lourenço será pago», Diário de Notícias, 1 de Março de 2023.
  3. Alusão ao livro Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, que aborda a história colonial dessa imensa região.
  4. Sistema de concessão de terras sob a obrigatoriedade de cultivá-las.

Written by

Filipe Olival

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