Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Novos Contos das Montanhas Barrosãs: usurpações, intimidações, e resistências
A luz do sol despede-se dos montes. As nuvens suspendem-se num céu tingido de tons rosa e púrpura. Os pássaros voam em bando, retornando às suas árvores. Também nós regressamos a casa, após mais uma tarde passada nas serras baldias. Desde meados de novembro que estas terras são vigiadas quase em permanência pelas populações, face às tentativas da empresa Savannah Resources de avançar com os trabalhos de prospeção mineira. Este plano de trabalhos vem no seguimento da obtenção de uma Declaração de Impacte Ambiental (DIA) Favorável Condicionada, a 31 de maio de 2023. Desde então, a empresa tem demonstrado uma atitude mais agressiva e uma presença mais assídua nas terras barrosãs.
APRESENTAÇÃO
A(s) reentrada(s) em cena
Com uma DIA condicionada em mãos, a empresa tem agora um ano para apresentar o Relatório de Conformidade Ambiental do Projeto de Execução (RECAPE), um documento elaborado pela própria, no qual tem de demonstrar o cumprimento das condições impostas pela DIA. No início de outubro, as máquinas começaram a laborar todos os dias, incluindo aos fins-de-semana, dentro da área de concessão da Mina do Barroso 1. Ao mesmo tempo, uma patrulha da GNR foi destacada para vigiar Covas do Barroso, agora considerada uma «zona de conflito». Paralelamente, entra em cena uma equipa de psicólogos sociais da Community Insights Group, contratada pela Savannah para realizar um Estudo de Avaliação e Impacto Social.
Assim, às máquinas que continuamente abrem feridas nas entranhas da terra somam-se agora as estruturas de policiamento de um Estado conivente com o avançar da tentativa de destruição socioecológica e ainda os mecanismos privados de engenharia social. Acelerando este processo gradual de transformação profunda do território, nos primeiros dias da grande reentrada, trabalhadores subcontratados pela Savannah são informados pela população local de que estavam a cortar árvores numa área que não pertence à empresa. Ignorando a situação legal e os avisos da população, a empresa, passadas umas semanas, avança com uma máquina para esse mesmo terreno.
Com este cenário montado, entrarão em cena vários atores, que, ao longo de diferentes atos, compõem aquilo a que chamamos os «Novos Contos das Montanhas Barrosãs». «Novos» porque representam um novo capítulo na vida destas gentes que, há já mais de cinco anos, resistem arduamente aos planos de expansão mineira projetados para esta região. «Contos», que não o são verdadeiramente, pois aqui se narra a realidade (ou a perspetiva da realidade compartilhada por um conjunto de pessoas). «Montanhas Barrosãs» pois são elas as verdadeiras protagonistas destas histórias. «Novos Contos das Montanhas Barrosãs» porque quisemos, sem pretensões algumas de semelhança literária, relembrar o legado do poeta e escritor transmontano Miguel Torga e a beleza da sua escrita sobre a Terra.
ATO I
Cena I. A queda
A manhã ia já tardia e, apesar do frio, o sol de Outono raiava e iluminava os carvalhais, onde tranquilamente enchíamos a cesta com cogumelos silvestres. Foi-nos, contudo, impossível ignorar os incessantes toques telefónicos que nos obrigaram a interromper a nossa caminhada matinal e nos retiraram momentaneamente da vida do bosque. No ecrã, um rol de mensagens eufóricas anunciava que um escândalo de corrupção tinha eclodido e abalado o governo: a PSP tinha nessa manhã efetuado buscas no gabinete do primeiro-ministro, no âmbito de um processo que procurava desvendar a alegada teia de negócios que liga o lítio ao hidrogénio e a um centro de dados.
Uma patrulha da GNR foi destacada para vigiar Covas do Barroso, agora considerada uma «zona de conflito».
«Obviamente, apresentei a minha demissão», declarou António Costa, poucas horas depois da chamada Operação Influencer eclodir. A queda do governo foi recebida em Covas do Barroso com grande alvoroço: «Já viste? Uma aldeia tão pequenina como a nossa fez tombar o governo!». No dia seguinte, realizou-se uma conferência de imprensa na Casa do Povo, à qual dezenas de pessoas se juntaram num ambiente de entusiasmo. À televisão, as populações declararam que o sucedido vinha confirmar aquilo que há muito criticavam nestes projetos — o conluio entre interesses estatais e privados, a falta de transparência no desenrolar destes processos, e o desprezo dirigido às vozes e vontades das populações. As associações e movimentos anti-mineração aproveitaram igualmente este momentum para exigir o cancelamento imediato de todos os projetos de mineração de lítio em Portugal.
Contudo, e como também o relembraram as populações, importa não ficar refém de espetáculos mediáticos, pois o grave problema socioecológico que estas minas representam é o principal motivo da oposição a estes projetos. A defesa da vida, a proteção de um ecossistema saudável e a preservação de culturas humanas em harmonia com o seu entorno são os principais impulsos desta luta, que tem vindo a contrariar a narrativa hegemónica da transição energética e da descarbonização. Paralelamente à transição energética, a União Europeia (UE) tem vindo igualmente a desenvolver a sua «transição digital». As duas transições — energética e digital — estão intimamente ligadas e, por isso, não é de surpreender que se juntem no escândalo da Operação Influencer. A transição energética é, em si mesma, uma transição digital, e vice-versa: a UE e os governos dos seus Estados-membros projetam a criação de um «mercado de energia europeu digitalizado», por um lado, e toda a digitalização da economia e da sociedade requer uma quantidade massiva de produção e consumo energéticos, por outro. Ora, tanto a descarbonização como a digitalização são políticas centralizadas, que não tomam em consideração as realidades e vontades locais. São políticas extrativistas, que necessitam da contínua expansão de recursos minerais e da destruição de ecossistemas, e são políticas redutoras, pois justificam-se com análises reducionistas dos problemas ecológicos e das necessidades sociais. Com efeito, a ideia de uma sociedade descarbonizada e digitalizada é alimentada pelo mito do progresso tecnológico, pelo dogma do crescimento económico infinito e pela crença na superioridade humana de controlar o mundo mais-que-humano. Estes mitos têm-nos deixados desprovido/as da capacidade de «sentir» os danos que causamos: como se os sentidos já nada nos dissessem, deixámo-nos coletivamente enfeitiçar por ecrãs, dominar por máquinas e ignorar as feridas que vamos criando no corpo da Terra.
Cena II. A máquina
Tínhamos mesmo acabado de almoçar, quando ouvimos alguém bater à porta. Abrimos, e, do outro lado, ouvimos uma voz firme:
— «A máquina mexeu-se.»
O momento chegou, por fim: os avisos da população foram mesmo ignorados, e a empresa avançou com uma máquina para uma parcela de terreno que os locais afirmam ser baldia. Vestimos os casacos, metemos o café num frasco e subimos à pick-up de um vizinho. Chegados ao monte, este estava já populado por dezenas de populares que rapidamente impediram a máquina de continuar a laborar. Esta tinha já cortado várias árvores e terraplanado o solo, abrindo caminho para o que seria uma «plataforma de prospeção».
— «Com estas máquinas pensam que podem tudo, não pensam?»
— «Quem é que pensa que pode tudo?»
— «A máquina, a engenheira, a empresa.»
Com apenas uma máquina, e em muito pouco tempo, destroem-se anos de interações complexas num ecossistema: uma quantidade incrível de vegetação que demorou anos a crescer e a florescer desaparece, quilómetros de redes de micélio dos fungos são destruídos, e o solo pisado e pressionado pelas lagartas da máquina fica severamente compactado. A máquina assim utilizada é ao mesmo tempo uma ferramenta e um símbolo da omnipotência e da prepotência humana sobre a natureza. A máquina, com as suas lagartas que tudo esmagam, é um símbolo desta vontade de tudo controlar e dizimar em nome de um progresso, que vem agora pintado de verde.
APARTE: — «Mas, espera aí! Não entendo: o governo cai por causa do lítio, mas a pressão no terreno aumenta, alguém pode explicar isto?!»
— «Espera, espera, a história ainda nem começou…!»
Desde então, as populações organizam-se por turnos, garantindo que há sempre pessoas de manhã e de tarde, todos os dias, dispostas a não deixar a máquina da empresa trabalhar.
Cena III. A vigia
O dia em que a máquina se mexeu — 16 de novembro de 2023 — marcou o início de um processo de vigia quasi-permanente do território: desde então, as populações organizam-se por turnos, garantindo que há sempre pessoas de manhã e de tarde, todos os dias, dispostas a não deixar a máquina da empresa trabalhar.
A parcela de terreno que tem vindo a ser defendida quotidianamente corresponde a uma área que já se encontra em tribunal: o processo de litígio visa decidir a quem pertence a propriedade — se aos baldios se à empresa. A empresa alega que o terreno é dela, pois comprou-o a um particular. Os compartes e o Conselho Diretivo dos Baldios, por seu turno, argumentam que, muito embora a empresa tenha adquirido algumas propriedades a particulares, esta tem feito um uso abusivo do BUPi. «BUPi» significa «Balcão Único do Prédio» e é uma ferramenta digital recente, dirigida a proprietários de prédios rústicos e mistos, na qual estes podem mapear as suas propriedades de forma simplificada. «Simplificada» porque a georeferenciação das propriedades pode ser efetuada pelos interessados, online. No caso de Covas do Barroso, a empresa tem comprado terrenos a particulares e, depois, ao fazer a georeferenciação online dos mesmos, aumenta-lhes a área: 3 hectares transformam-se, num clique, em 6, e por aí em diante. Por fim, vem a última jogada: a empresa, ao invés de usar a área marcada na certidão/registo predial, alega ter direito a usar a área marcada no BUPi para o propósito da realização dos trabalhos de prospecção.
— «Vocês têm de perceber: nós só estamos a seguir o nosso plano de trabalhos», afirma tranquilamente um dos geólogos responsáveis.
— «Muito bem, e nós estamos a seguir o nosso plano de defesa!», responde, sem pestanejar, um local.
A defesa desta pequena parcela de terreno tornou-se, assim, um símbolo desta luta para os populares. Este plano de defesa tem contado com o apoio de muitas outras pessoas solidárias com o território barrosão: logo nos primeiros dias, fez-se um apelo à mobilização a Covas, que foi recebido entusiasticamente; realizou-se uma caravana anti-mineração, que passou pelas diferentes aldeias barrosãs ameaçadas pela mineração, culminando em Covas, que juntou duas centenas de carros e pessoas. A forte solidariedade entre todos os montes e além-montes tem ajudado a consolidar o processo de vigia, não deixando que as populações se sintam sozinhas e isoladas, como a empresa e o Estado pretendem pintar.
INDICAÇÃO DE CENA: A vigia tem-se tornado rotineira: todos os dias, às 7h30 da manhã, uma pessoa sobe ao monte; o maquinista entretanto chega e a senhora engenheira chama a polícia; os populares vão-se multiplicando; quando a polícia chega, toma conta da ocorrência; após a pausa para almoço, a cena repete-se, até que, ao fim do dia de trabalho, todos regressamos a casa. Criou-se, de facto, uma movimentação quase teatral no ato de defender os montes.
ATO II
Cena I. A patrulha
— «Agora temos uma patrulha da GNR destacada 24h para Covas. Ordens vindas de cima.»
Na primeira semana de outubro, correu a notícia de que uma patrulha da GNR tinha sido destacada para Covas do Barroso. Desde então, não se passou um dia sem que os jeeps da GNR tenham sido avistados por algum aldeão ou aldeã. Localmente, estas ordens foram recebidas e interpretadas como uma ofensa: «Uma patrulha destacada para nós?! Então mas somos nós os criminosos agora? Nós, que nunca fizemos nada?!». Numa aldeia historicamente isolada, onde vivem menos de 200 pessoas, a larga maioria das quais numa idade acima dos 60 anos, a presença permanente da GNR é, de facto, insultuosa.
A presença inicial da GNR, embora assídua e constante, em nada se assemelhou à atitude que adotaram uma vez começada a «vigia». Com efeito, face à persistência das pessoas em defender aquela simbólica parcela de terra, a GNR começou a revelar-se igualmente persistente e mais agressiva. Nos primeiros dias da vigia, o assédio foi constante: qualquer justificação servia para multar, ameaçar ou intimidar quem se deslocava para defender os montes. Uma pessoa idosa teve o seu carro revistado, quase ao anoitecer; outras receberam multas pela falta de utilização do cinto de segurança em estradões de montanha; foi pedida a documentação de cães que passeavam livremente no monte. A estratégia de intimidação policial era clara. Passados uns dias, quando a vigia virou rotina, a agressividade desapareceu momentaneamente. O que não desapareceu foi a firmeza da população, que em momento algum cedeu a estes amedrontamentos intimatórios nem largou a defesa do seu território.
Cena II. A empresa
A empresa é a Savannah Resources, da qual, por esta altura, já quase toda a gente ouviu falar. É uma empresa de mineração sem experiência em mineração e tem sede em Londres, capital do «antigo» Império Britânico. A empresa tem dois centros de «informação», um em Boticas e outro em Covas do Barroso. Dizem que em ambos nem as moscas entram.
Não há dúvidas que a empresa, ou pelo menos algumas pessoas da empresa, até tinham boas intenções: minerar e extrair para ajudar na transição energética, transitar o complexo industrial e tecnológico para as chamadas energias verdes, e ainda lucrar com isso.
— «Tinham, mas já não têm?»
Talvez alguns dos funcionários da empresa ainda tenham a ilusão de estar a projetar algo com um impacto positivo mas, depois de largos anos de elucidação por diferentes pessoas e entidades sobre o dano e a destruição que o seu projeto acarreta e depois de anos a ignorarem as expressões de rejeição claras e contundentes vindas das populações diretamente afetadas pelo projeto, torna-se evidente que só com um enorme custo de integridade pessoal essas ilusões podem ser mantidas. O cultivar de uma certa capacidade de não querer ver, não querer ouvir, não querer saber. O cultivar de uma negligência propositada.
— «Não querer ver? Então e as câmaras de vigilância no centro de “informação”?! As únicas câmaras da aldeia?»
A Savannah muda os corpos diretivos como quem troca de roupa: procura incessantemente quem terá a melhor técnica de manipulação para poder convencer a população. A Savannah parece não ter lido bem os manuais. Tanto oferece um bolo rei como faz uma ameaça, ou isto vem nos manuais?
Em 2022, antes das suas últimas mudanças de imagem e de corpo diretivo, na sua magazine de «informação» — ou revista de propaganda, dependendo da perspetiva — chamada Lítio do Barroso, a empresa brindou-nos com um artigo intitulado “Portugal — Reino Unido: uma aliança com 650 anos”. Neste conteúdo informativo, a empresa caracteriza as relações políticas e económicas entre Portugal e o Reino Unido como «políticas de amizade», afirmando que o projeto mineiro que pretende desenvolver em Portugal é «assente no conjunto de valores que se foram construindo ao longo de vários séculos» e «será uma manifestação tangível da profundidade da relação e dos benefícios que traz para a população de Portugal e do Reino Unido». Ou seja, leia-se: o projeto reproduzirá as relações de dependência e de subalternidade, e trará benefícios para as grandes potências, deixando o país periférico esburacado e sacrificado, agora em nome de uma transição dita «verde». Este é apenas um dos exemplos das tentativas desesperadas de conquistar as pessoas através de uma propaganda pouco rebuscada, quase patética.
«Eu na verdade só estou a cumprir ordens, sabe?». Covas do Barroso poderia ser o novo palco da Experiência Milgram.
A Savannah muda a sua estratégia de comunicação: se a propaganda bacoca não funciona, troca-se para a propaganda tecnicamente ilegível. Alguém ficará impressionado. A Savannah tem altos cargos que declaram diretamente às populações que nada será feito contra a vontade das mesmas, como teve outros altos cargos a declarar que não terão pudor em expropriar os locais para levar o projeto avante. Tem geólogos a falar dos problemas ambientais que admitem que, de florestas, nada percebem. A Savannah também tem espontaneidade, a Savannah gosta da contradição.
A Savannah é devota, fala com o padre. Será para se confessar? [Sim, leram bem: a Savannah recorre a estratégias da Idade Média para conquistar os corações e as mentes das pessoas, que categoricamente rejeitam o projeto há 6 anos. Foi- -se encontrar com os padres da região, pedindo-lhes para rezarem a favor do seu projeto durante as missas]. A Savannah já não vai usar diretamente a água do rio. A Savannah passará a captar água da chuva; caso não chova, fará a Savannah chover?
A Savannah amua quando as suas tentativas de usurpação são chamadas de… tentativas de usurpação! A Savannah tenta derrubar os líderes e representantes locais. Tudo serve para abater estes alvos — desde chantagem e manipulação a ameaças e intimidações. A Savannah quer ser aceite: sorri forçosamente para que gostem dela, mas zanga-se porque não o é, e ameaça quem não se verga. A Savannah quer ter uma imagem que não corresponde à sua interação com o mundo real: online, retrata-se como uma empresa com ótimas relações de vizinhança; online, a Savannah não amua nem ameaça nem se contradiz; online, a Savannah sorri. A Savannah e os seus funcionários são produto e agentes numa mega-estrutura que se move para alimentar e reproduzir os mitos do crescimento económico, do desenvolvimento, do progresso tecnológico e da separação. A Savannah não é inerentemente boa nem má, a Savannah é mais uma das faces de uma ontologia que destrói e que convence cada vez menos gente. A Savannah pode, assim, ser mais um dos pontos de partida e de «abertura» para outros mitos, outras perspetivas, outras ontologias.
APARTE: A sueca
— «A Senhora Engenheira está baralhada… eu baralho, o maquinista parte e tu dás, mais uma e fazemos um pente!»
«Dedicação. Fernando Queiroga», lê-se nas gordas letras laranja das cartas que vão sendo distribuídas, rapidamente, sob uma mesa baixinha de plástico, à beira de um fogo, aceso num barril improvisado. Assim começa mais uma partida do tradicional jogo da sueca no monte. A sueca, esse grande desporto nacional, tornou-se já parte da rotina daqueles que ao monte sobem todos os dias. Nos dias de chuva, joga-se debaixo de uma tenda. Nos dias de sol, joga-se onde calha: numa mesa de campismo, no chão, nas lagartas da máquina.
ATO III
Cena I. A empresa
e a patrulha intensificam-se
— «São ordens vindas de cima.»
Ouvimos esta frase até à exaustão. É a famosa máxima: obedecer à autoridade. «Eu na verdade só estou a cumprir ordens, sabe?». Covas do Barroso poderia ser o novo palco da Experiência Milgram: até onde estão as pessoas dispostas a obedecer a ordens vindas de cima, mesmo que estas lhes pareçam ridículas? A partir de meados de dezembro, o cerco começou a endurecer: a empresa alargou a sua área de operações, movimentando agora várias máquinas, simultaneamente, em diferentes pontos das montanhas; o aparato policial começou a orquestrar manobras de «dividir para reinar», tentando separar «os locais» dos «não locais»; os cargos dirigentes da empresa começaram a ter uma presença cada vez mais assídua na região, tentando encontrar-se com influentes pessoas locais.
Cena II. A montanha defende-se e reinventa-se
— «Nós precisamos do baldio porque vivemos da agricultura. É um bem essencial para quem é pobre na área de montanha. E não dá para ter baldios e mina ao mesmo tempo», afirma, categoricamente, uma pessoa local.
A grande maioria do projeto de exploração mineira seria localizado em terrenos baldios. Estas terras comunitárias são, assim, um dos principais patrimónios a defender. Para além do simbólico terreno que tem vindo a ser defendido desde meados de novembro, há vários outros terrenos baldios que se encontram em litígio. Estes processos litigiosos podem, contudo, demorar anos a serem resolvidos. É por isso que a empresa tem tentado avançar, alegando que, caso o tribunal dê razão aos compartes, esta pagar-lhes-á uma indemnização a posteriori e reporá a paisagem destruída. Ora, as populações contestam vivamente a forma como a empresa entende o território, de forma quantificável e substituível, transformando organismos vivos em números inertes. Para as populações, não faz «sentido» atribuir um valor económico ao baldio nem falar da reposição de árvores: o baldio representa uma riqueza e um património que vão muito além da sua quantificação monetária, e as árvores, uma vez cortadas, não podem simplesmente ser «repostas» por novas:
— «Isto pode repor-se como?! Isto nunca mais vai ser o mesmo!», barafusta uma local.
Nos últimos tempos, tem-se tornado cada vez mais visível a forma como o território barrosão é feito, desfeito e refeito por múltiplos atores que o conceptualizam e experienciam de forma radicalmente diferente. A riqueza, para os povos serranos, é preservar a sua floresta, da qual retiram mato para a cama dos animais e lenha para se aquecerem nos longos meses frios do inverno. Do outro lado, para a empresa e a sua máquina, símbolo da capacidade de dominação humana sobre a natureza, riqueza será extrair das entranhas da terra este «novo ouro branco».
— «Todo o dia sem trabalhar é prejuízo», atira o geólogo.
— «E a destruição à terra e à cultura que estão a fazer, não é prejuízo?», pergunta-lhe um local.
— «Mas que terra é que aqui se perdeu?», retorque ele, com desdém.
— «O pinhal, que é uma riqueza!», responde rapidamente outro serrano.
— «O que é que dá o oxigénio?», aponta outro conterrâneo.
— «Quero ver que batatas vais comer desta terra!», acrescenta o primeiro.
Estas montanhas, sagradas e preciosas para muitos, defendem-se e amam-se, reinventando-se. Para elas se imaginam projetos experimentais e criativos, como projetos de agrofloresta, agricultura regenerativa, nidificação, educação ambiental e outros. Nelas, se criam pontes, tecem laços e abrem-se portas a forasteiros.
Quando há abertura para estar verdadeiramente presente na montanha, com todos os sentidos imersos nela, a ouvir os seus sons e os seus silêncios, a ver os seus tons, as suas formas, as suas espécies; quando nos permitimos sentir os seus solos; quando saciamos a sede nas suas águas ou comemos dos seus frutos; quando sentimos na nossa pele o calor da sua lenha ou a brisa dos seus sopros; quando nos faz sentir medo ou alegria; voltamos a entender que a montanha está viva, que a montanha faz parte de nós e nós fazemos parte da montanha.
«… Renascer ao pé de cada rebento, correr a par de cada ribeiro, voar ao lado de cada ave»,
Miguel Torga, Criação do Mundo (1937).
Quando amamos a montanha jamais a deixaremos destruir.
Texto de Mariana Riquito e João da Montanha
Artigo publicado no JornalMapa, edição #40, Janeiro|Março 2024.
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