Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Contra a floresta arregimentada, pelos terrenos comunitários
Nos finais dos anos 1930, ainda no rescaldo da Guerra Civil Espanhola e já em tempos de Segunda Guerra Mundial, em Talhadas e um pouco por toda a realidade circundante, não havia estradas, nem luz eléctrica ou telefone. Os pobres da zona viviam sob um regime que se poderia dizer feudal: meros escravos do sector rico. Tempos de seca, também, com a consequente subida de preços trazida pela aliança entre a escassez e a ganância. Um ambiente fértil para negociatas e enriquecimento rápido de alguns, que acabariam por determinar quem seria a classe dominante dos anos seguintes.
É por esta altura que o Estado cria uma nova realidade, com a imposição da reflorestação da Serra e dos Serviços Florestais, os encarregados de a levar a cabo. Pretendia o Estado Novo extinguir o controlo colectivo e tradicional do território e substituí-lo por um regime florestal centralizado, decidido pelo centro de poder estatal, condenando as serras e os montes à subserviência perante a economia de larga escala.
Houve terrenos que transitaram directamente para o nome desses serviços. Acima de tudo, houve terrenos «livres», que na realidade eram baldios ou pastagens, que foram tomados ou vendidos, num processo que permitiu o avanço da área florestal até limites inconcebíveis (junto de casas agrícolas, aldeias, templos,…) colocando as populações, como se viria em breve a confirmar, sob risco mortal em caso de incêndio.
Houve, durante muitos anos, perseguição a quem entrasse nas matas para arranjar lenha. O dinheiro, pouco utilizado até então, passou a ser fundamental.
A vida e as possibilidades de subsistência tradicionais foram desaparecendo: os rebanhos foram abandonados por falta de baldios e pela proibição de entrada de animais e gente na floresta. O leite, a carne e o vestuário acabaram por se tornar produtos difíceis de produzir. Houve, durante muitos anos, perseguição a quem entrasse nas matas para arranjar lenha. O dinheiro, pouco utilizado até então, passou a ser fundamental. Restava a opção de sair dali. Para a indústria, por exemplo, em Águeda, ou para o estrangeiro. Os que ficavam apenas podiam, em troca de salários de miséria, participar nas limpezas das matas ou na sementeira dos Serviços Florestais, sob o olhar atento de capatazes, armados em senhores absolutos, que não tardaram a humilhá-los e a invadir terrenos particulares, usurpando-os assim como aos seus bons recursos aquíferos.
Basta!
No final dos anos 1960, a «pacatez» do meio rural foi interrompida, quando as populações, fartas dos abusos das autoridades e da opressão que sobre elas se abatia, decidiram tomar os seus destinos nas suas próprias mãos e afirmar que «nada se faz sem a vontade do povo». 1 Os acontecimentos iniciaram-se precisamente em Talhadas, em 1970, e foram cobertos jornalisticamente por Armando Pereira da Silva, que, com as recolhas e informações que obteve, escreveu um pequeno livro, Ocupação sem Limites, editado em 1973, que relata a luta contra a ocupação dos Serviços Florestais e pela restituição dos terrenos ocupados.
Na freguesia de Talhadas, em 3 de Novembro de 1970, todos os habitantes com mais de 14 anos assinaram por si ou a rogo uma exposição ao governo, na altura encabeçado por Marcelo Caetano, onde se podia ler: «Não contestamos a utilidade ou validade dos Serviços Florestais a nível nacional, porque infelizmente não tivemos possibilidade de adquirir conhecimentos suficientes para isso. Mas sabemos que para esta freguesia são maus. Nada fizeram que nós próprios não tivéssemos feito melhor. E impediram que 300 famílias continuassem a beneficiar dos rendimentos dos seus rebanhos, impedindo-as ao mesmo tempo de os substituir pelos das matas que já estavam a semear e a plantar nos baldios». As exigências eram a restituição «aos seus legítimos donos dos bens particulares usurpados pelos Serviços Florestais» e a restituição ao povo da freguesia, por parte dos Serviços Florestais, de «todo o baldio que ocupam, ou pelo menos todo o baldio que excede a zona amarela assinalada na carta, que é a única a que se refere o acordo que foi feito entre os mesmos serviços e a Junta de Freguesia de Talhadas».
A exposição incluía ainda uma espécie de estalada de luva branca, ou talvez uma forma de dizerem «desapareçam e não se fala mais nisso», quando propunha «que, embora sejam apuradas as responsabilidades dos funcionários dos Serviços Florestais nas injustiças sofridas pelo povo desta freguesia, não sejam estes em nenhum caso perseguidos criminalmente ou disciplinarmente, por julgarmos as suas atitudes mais fruto de deformada preparação para o exercício do ofício de que foram incumbidos, do que resultante de personalidade antissocial».
Coube ao povo de Talhadas a iniciativa de despoletar esta luta, que rapidamente ganhou amplitude e se alastrou a outras aldeias, outras geografias, sempre com esse carácter de exigência de participação na gestão das suas próprias vidas, das suas próprias actividades, das suas próprias serras e sempre com um carácter de reivindicação dos baldios enquanto terrenos comunitários dos povos que sempre os usaram colectivamente.
Um combate que se prolongou até à revolução e que abalou as freguesias de Talhadas (Município de Sever do Vouga), Préstimo (antiga freguesia do Município de Águeda agregada a Macieira de Alcoba em 2013), Albergaria das Cabras (actualmente Albergaria da Serra) e Cabreiros (ambas em Arouca), entre muitas outras situadas no Vale do Vouga.
Deixar arder
Quando, em Julho de 1972, um incêndio brutal deflagrou na Serra, os Serviços Florestais comportaram-se como senhores feudais e, se bem que houvesse povoados que enfrentavam ameaça de destruição completa, preferiram mobilizar quatro auto-tanques para uma casa de guarda. As populações ajudaram os bombeiros e soldados, lutaram bravamente e foram os seus contra-fogos, que sabiam utilizar com mestria, o que acabou, em vários casos, por deter as chamas no limiar da tragédia. No entanto, recusaram-se a combater o fogo dentro dos perímetros de florestação oficial. Aí, deixavam arder.
E a luta foi endurecendo. Quando os Serviços Florestais avançavam com novo abuso, por exemplo, com a venda de um lote de pinheiros que a Junta de Freguesia e a população consideravam seus, as pessoas organizavam-se para ocupar as matas administradas pelos Serviços até que essa venda fosse anulada. «De qualquer modo, o nosso objectivo é a transferência total da administração florestal para as mãos do povo», dizia o presidente da Junta. Que concluía: «Os interesses do povo – e do país, portanto – serão muito melhor defendidos pelo povo. Desde que o interessemos e o façamos participar honestamente na administração daquilo que lhe pertence». A devolução dos baldios era a primeira exigência, a mais audível, digamos assim. No pós-incêndio, uma outra reivindicação era a da construção de um sistema de segurança eficaz contra incêndios, que passava pelo abate de partes da floresta demasiado próximas de aldeias que por ela tinham sido envolvidas. Exigiam-se, ainda, indemnizações.
«De qualquer modo, o nosso objectivo é a transferência total da administração florestal para as mãos do povo».
Mas havia muitas outras lutas, algumas pequenas, com objectivos aparentemente limitados e pouco ambiciosos, alguns até possivelmente corporativos, mas sem as quais o conjunto não teria sido tão impactante. Os tempos eram ainda de domínio fascista e, à sua maneira, cada uma dessas lutas teve por trás muita coragem, muita determinação, alguma dose de repressão e vários sucessos e desilusões. Mas foram, no fim de contas, a chama vitoriosa que ficou até culminar numa outra exposição ao governo, esta já de 1974, posterior ao 25 de Abril, em consequência da qual, no dia 19 Janeiro de 1976, foi publicada a legislação de restituição dos baldios aos povos com direito a eles.
Artigo publicado no JornalMapa, edição #39, Outubro|Dezembro 2023.
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