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Lendo: Reclamar o verde, entrevista com Vandana Shiva

Reclamar o verde, entrevista com Vandana Shiva

Reclamar o verde, entrevista com Vandana Shiva


A guardiã de sementes e activista ecofeminista aponta a exploração de lítio como potenciadora de novos desastres ambientais que estão a ser cometidos em nome da economia verde.


Sentada à tarde na cabana, encontrei Vandana Shiva na sua quinta Navdanya, enquanto o sol envolvia as árvores em Uttarakhand, no Norte da Índia. Nesta quinta à porta dos Himalaias, participávamos em atividades agrícolas diárias, cavando, semeando e cozinhando em sintonia com os ciclos de mudança da estação. Navdanya – nove sementes – é «um movimento centrado na Terra e nas mulheres, liderado por agricultores para a proteção da diversidade biológica e cultural.» Juntos conservam o património de sementes de alimentos nutritivos e resistentes ao clima, em mais de 150 bancos de sementes comunitários, guardando, partilhando e cultivando livremente variedades de sementes nativas. Fundado há mais de trinta e cinco anos, o movimento que se espalha agora por 22 estados da Índia, tem na sua origem valores anti-globalização, e práticas como a agroecologia e a agricultura orgânica regenerativa. Celebrando a diversidade da vida e as múltiplas formas de intervenção na biosfera como um ato político de regeneração da Terra, Navdanya é também um importante centro internacional para a reflexão crítica nos moldes do Ecofeminismo e das Ecofilosofias mais amplas, acolhendo cursos regulares.

Foi neste local de encontro restaurativo que conheci Vandana Shiva e tive a oportunidade de conversar com ela sobre como o seu trabalho como ativista cresceu ao longo das décadas. Mas também como a região da sua quinta enfrentou desafios semelhantes aos da Península Ibérica, e se transformou ao longo dos tempos pelas mãos de comunidades activas que continuam a reclamar a vida.

Margarida Mendes (MM): Como mudou o papel das mulheres na soberania alimentar e ecológica desde que escreveu o seu livro Staying Alive: Women, Ecology, and Development em 1988? Como viu essa transformação?

Vandana Shiva (VS): Quando escrevi Staying Alive a grande ameaça era a desflorestação. Desde então, é claro que a alimentação e a agricultura são o ataque central ao planeta, às pessoas, às comunidades e às mulheres. Deste modo, o papel das mulheres na defesa da soberania alimentar está muito mais articulado agora, sim. Isto é o que sabemos em Navdanya. Não havia Navdanya quando escrevi Staying Alive e, com o tempo, a evolução de Navdanya concluiu que são as mulheres que realmente se preocupam com as sementes e que realmente conhecem a Agricultura e por isso estão na liderança.

Vandana

MM: E sente uma grande transformação nos últimos trinta anos?

VS: Porque o mundo se transformou. Não acho que as mulheres fizeram isso, acho que as mulheres continuam a fazer o que estavam a fazer. Só que há mais espaço para elas serem ouvidas. A transformação está no sistema dominante e, portanto, na relevância do conhecimento e das competências das mulheres.

MM: Estou interessada na sua perspectiva sobre equidade e abundância. Quais foram as principais ações e passos que testemunhou, ou tomou, para a recuperação dos bens comuns?

VS: Sementes. Começando pelas sementes, é claro que a razão pela qual formei a Navdanya foi porque as corporações queriam possuir a semente, e patentea- -la, privatiza-la, e torná-la num monopólio. Eu sabia não só que a semente é um bem comum, mas que defender este bem comum requer novas formas criativas, coisas que não tinham sido antes feitas. As pessoas estavam a guardar as suas sementes ao nível doméstico, mas agora tínhamos que criar bancos comunitários de sementes para defender os bens comuns. Tivemos que nos começar a organizar a um nível diferente, tanto em termos da própria comunidade, como em termos de lidar com o poder corporativo, a ganância e o cerco às sementes. Esse tem sido o trabalho de
Navdanya nos últimos 35 anos.

São as mulheres que realmente se preocupam com as sementes e que realmente conhecem a Agricultura.

MM: Também fez algum ativismo contra a mineração na região do Doon Valley, certo?

VS: Aqui mesmo. Nós salvamos estas montanhas. Na verdade, fui solicitada a fazer um estudo pelo Ministério do Meio Ambiente. Naquela época éramos muito poucos os que falávamos e escrevíamos sobre ecologia. E porque tinha trabalhado com Chipko (movimento ambiental), o Ministério encontrou-me e pediu-me para fazer o estudo. O nosso estudo levou ao encerramento da mina, o que foi uma decisão muito importante do Supremo Tribunal em 1983. Demonstrámos que o calcário deixado nas montanhas é água que sustenta toda a economia do vale. O calcário retirado da montanha é matéria-prima e sustenta as grandes indústrias de cimento. Conseguimos demonstrar que o impacto da economia extractiva estava a gerar lucros para alguns, mas a deixar todo o vale vulnerável. Aldeias estavam a ser destruídas, os rios estavam a desaparecer, literalmente. E tudo isto documentamos de uma forma científica muito profunda. Foi isso que levou o Supremo Tribunal a dizer que, porque a água é vida e a vida deve continuar, a mineração deve parar porque está a minar a vida. Esse foi um caso muito importante.

 

Vandana

MM: Identifico-me com isso, porque neste momento em Portugal, onde não ocorreram incêndios florestais, há mineração de lítio em planeamento. Existem inúmeras concessões em disputa e também existem debates prementes em torno da mineração no mar profundo. Conseguimos travar os progressos em torno da mineração no mar profundo e impor uma moratória, mas tem havido uma enorme batalha entre os pequenos agricultores, as pessoas das montanhas e o governo sobre o lítio, governo que acaba de cair por corrupção neste preciso momento. Na verdade, corrupção ambiental.

VS: Infelizmente o lítio é um caso claro pelo qual estes novos desastres ambientais estão a ser cometidos em nome da economia verde. É por isso uma dupla tragédia. Toda a gente sabe que se se convertessem todos os carros que hoje funcionam com diesel e gasolina em veículos elétricos a lítio, não haveria lítio suficiente no planeta. Mesmo se destruirmos o planeta, não conseguiremos realizar este projeto. Portanto, não se precipite. Esta é basicamente uma forma de, não apenas continuar as actividades extractivas que são agora trabalho verde, mas pior, criar um novo sistema de exclusão total das pessoas das decisões sobre os seus recursos e os ecossistemas. Isso é o que chamo de «Democracia da Terra», quando as pessoas, como parte da terra, tendo a Terra em conta e defendendo os seus direitos, também defendem os seus direitos. Esta é a ditadura definitiva sobre o planeta, com uma garra verde: a apropriação das terras.

MM: O que vivemos é uma apropriação de terras a um nível sem precedentes. Em Portugal estão a expropriar enormes quantidades de terra e a derrubar árvores para construirem parques solares, ao mesmo tempo que se dividem ecossistemas.

VS: O verde tornou-se o novo chapéu. Infelizmente, quando fiz o estudo da «Revolução Verde», mesmo nessa altura o verde tinha sido mal utilizado. Porque era o nome da agricultura industrial com produtos químicos e chamavam-lhe «A Revolução Verde». Portanto, a própria integridade do verde está em risco.

MM: Como podemos lutar contra os dragões do greenwashing?

VS: Continuando as lutas que vimos a travar e construindo alianças mais amplas. Reclamando o verde. Não deixando que os nossos oponentes afirmem ser verdes, chamemos-lhe antes indústrias extractivas em aceleração.

Vandana

MM: já agora que fala destas montanhas…As bacias hidrográficas da Índia, mas também de outras partes do mundo, têm mudado exponencialmente. Quais poderiam ser os passos presentes e futuros para a recuperação dos recursos hídricos?

VS: Aqui mesmo nesta quinta, esta era uma quinta desertificada, uma plantação de eucaliptos. Estive recentemente em Portugal e, sabe, lutei contra o eucalipto em 1981 no estado de Karnataka, no sul do país. Fiz um estudo de auditoria ecológica do cultivo de eucalipto em áreas secas, que estão a ser levadas à desertificação. Mas mesmo em zonas húmidas, não é uma árvore boa para os ecossistemas. Porque, introduzida pelo homem, tem uma absorção de água muito elevada e não cria solo. Esta era uma terra desertificada, uma plantação de eucaliptos. Se pegasse o solo, ele simplesmente escorregava das mãos. Quando irrigávamos, tínhamos que irrigar a cada segundo ou terceiro dia. E desde que começámos a trabalhar na quinta e iniciamos a produção orgânica e a biodiversidade, os níveis de água aumentaram 21 metros. Porque a infiltração está a aumentar e o escoamento de águas é menor. Estamos a utilizar 70% menos irrigação do que quando começámos porque agora o solo está a reter humidade. De modo que, para qualquer bacia hidrográfica, os três passos necessários para regenerar o sistema hídrico são: em primeiro lugar, parar de tratar o rio como um depósito de poluição e como um receptor de descargas dos sistemas industriais. É aí que a água está a morrer. Portanto, o nosso slogan para o Ganges é «deixem-no fluir
ininterruptamente». Parem com as barragens que estão a causar enormes desastres, e deixem-no fluir puramente, pois afinal ele é a nossa mãe sagrada. A segunda coisa que precisamos de fazer é acabar com as práticas da Revolução Verde. Essa é a razão do excesso e do dumping excesivo de tóxicos. Pesticidas e fertilizantes estão a destruir os corpos d’água. E a terceira coisa que temos de fazer é investir na agricultura orgânica regenerativa, que traz água de volta aos ecossistemas. Porque a agricultura biológica regenerativa é a regeneração da água.

Apesar de todo o poder do agronegócio, os pequenos esforços das comunidades não só salvaram as sementes, para que haja milho para crescer, mas também lhe trouxeram respeito.

MM : Pode falar sobre os projetos de Navdanya, aqui no Vale Doon e nas montanhas em seu redor? Eu sei que a algumas horas de distância vocês têm vários projetos comunitários em curso nos Himalaias.

VS: Nasci nesta região e trabalho aqui desde os tempos do Chipko. Cresci aqui, a partir dos anos 70 entrei em comunidades e quando comecei a guardar sementes, claro que comecei aqui. Fui às comunidades que conheço e incentivei-as a guardar sementes. E à medida que Navdanya assumiu formas mais organizadas nos quatro vales — porque nos sistemas montanhosos pensamos sempre em vales — basicamente encorajámos os agricultores a conservar e guardar as suas sementes e a criar bancos comunitários de sementes. Nós treinamo-los em agricultura biológica, pois tinham-se esquecido, visto que a formação da Revolução Verde chegou até à última aldeia. Então tivemos que desviá-los disso e ajudá-los a lembrarem- -se dos seus sistemas agrícolas. E terceiro, porque me disseram: «agora que conservamos toda esta diversidade, tem que nos ajudar, porque a nossa diversidade de mercados acaba de ser destruída». Foi então que ajudei a criar sistemas de distribuição para eles. Porque crescem as montanhas, crescem as raias, e os alimentos esquecidos, o milhete ou milho-miúdo, etc…Nós ajudamo-los, e dissemos que esse alimento esquecido deveria ser o alimento do futuro. E estou muito feliz porque, quando fiz o estudo da Revolução Verde, o milho–miúdo estava a ser chamado de cultura primitiva, que deveria ser eliminado da agricultura, mas este ano é o ano do milho- -miúdo! Apesar de todo o poder do agronegócio, os pequenos esforços das comunidades não só salvaram as sementes, para que haja milho para crescer, mas também lhe trouxeram respeito.

Vandana

MM: Qual é a mensagem que gostaria de deixar aos jovens activistas que estão agora a surgir e às gerações futuras?

VS: A primeira coisa que lhes diria é que a colonização da natureza, a colonização das mulheres, e a colonização do futuro, que são as gerações futuras, é uma só colonização. E a descolonização nos nossos tempos precisa de uma aliança entre os “três”. Entre os direitos da natureza, os direitos das mulheres, os direitos da juventude. Há uma tentativa de colocar os humanos contra a Terra, de colocar constantemente os idosos contra os jovens, mas vocês sabem que diferentes fases da vida são diferentes fases da vida. E eu diria aos jovens: bem, juntem-se a nós, aqui! Aqui fora, faço nesta cabana a Universidade dos avós, para aprender com os mais velhos. No próximo ano vou fazer muitas Universidades de avós, para que os jovens não se esqueçam da cultura. Porque as mulheres ainda conhecem as suas canções, mas os jovens ouvem Bollywood. Portanto, transferir as artes, transferir a cultura é muito importante.

A última coisa que gostaria de dizer aos jovens é: sim, estamos numa situação terrível e o colapso não é apenas algo que está a ser testemunhado, mas sobre o qual se fala constantemente. Por essa razão, muitos jovens pensam que não há nada que possamos fazer. Mas acho que esse é o último passo que devemos dar, porque pode fazer-se tudo. Como membros da comunidade terrestre, trabalhando com a Terra, podemos regenerar-nos. Vejo isso através da humilde experiência aqui em Navdanya, vi milagres nesta quinta! Bem, se isso estivesse a acontecer em todos os lugares! Então, como disse à Greta quando ela me encontrou em Paris, ótimo, protesta às sextas- feiras, faz greve às sextas-feiras, mas os restantes seis dias regenera a Terra. Faz algo para trazer de volta o seu solo, para trazer de volta a sua água, para trazer de volta a sua biodiversidade, para trazer de volta os seus insectos. E há tantas maneiras de fazer isso! Considera isso como a tua atividade a 90% e isso te trará esperança. Isso te dará a tua identidade e será a resposta para o teu futuro e para o futuro da Terra.


Texto e fotografias de  Margarida Mendes


Artigo publicado no JornalMapa, edição #41, Abril|Junho 2024.


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