shop-cart

Lendo: «O que nos impelia era a vontade de filmar»

«O que nos impelia era a vontade de filmar»

«O que nos impelia era a vontade de filmar»


Solveig Nordlund, cineasta sueca naturalizada portuguesa, com uma carreira e uma obra que ultrapassam em muito o momento revolucionário, é um nome fundamental da filmografia de Abril. Depois de ser assistente de João César Monteiro, José Fonseca e Costa e Alfredo Tropa, e depois de participar nas montagens em filmes de Manoel de Oliveira, João Botelho, Alberto Seixas Santos e Thomas Harlan, a assinatura de Solveig enquanto realizadora (ou co-realizadora) aparece exactamente na altura das ocupações de terras e da criação de cooperativas que o 25 de Abril despoletara. Solveig Nordlund é uma pessoa de uma enorme simpatia, mas de muito poucas palavras. A 50 anos de distância, sentimos que nos trouxe uma visão sem dramas nem saudosismos do que foi viver o sonho e o seu descalabro. Ela, que acabou por ir embora em 1980 (antes de regressar… e andar «sempre para cá e para lá, entre Portugal e a Suécia»), juntamente com alguns dos seus amigos mais próximos «porque a revolução não tinha correspondido ao que queríamos. Mas eu já nem me lembro do que é que queríamos», deixando-nos a questão: «E, hoje em dia, qual é a revolução desejável, que se aguente no mundo?»


O teu percurso académico tem uma espécie de início relacionado com História da Arte e das Línguas. Como é que, no teu percurso profissional, acabou por se impor o cinema?

Naquela altura, não havia escola de cinema na Suécia. Quase todos os meus amigos queriam ir para cinema. E eu também. Com a minha melhor amiga, lá na Suécia, ia a muitas sessões e depois, no caminho para casa, repetíamos as cenas. É preciso lembrar que aquilo foi a época em que o cinema era a coisa mais popular. A única hipótese de aprender era com a prática. Eu, por exemplo, trabalhei em filmes que outras pessoas fizeram – até havia uma pintora que fez um filme numa floresta e andávamos lá a ajudar. Também havia cineclubes, matinés e coisas assim, mas não havia ensino duma forma organizada.

Por via do casamento com Alberto Seixas Santos, naturalizas-te portuguesa ainda nos anos 1960. Que imagem tinhas desse Portugal fascista?

Conheci o Alberto Seixas Santos quando acabei o liceu. Nessa altura, fui a Paris e conheci lá um grupo de portugueses que estudavam cinema: o António Pedro Vasconcelos, o Alberto e outros. Depois, o Alberto foi visitar-me à Suécia e acabámos por ficar um casal e fomos para Londres estudar cinema. Portanto, eu aproveitei um bocadinho a boleia dos portugueses. Quando conheci o Alberto, na verdade, nem sabia que havia um país chamado Portugal. Entretanto, em 1966, o Bruno [filho] já nasceu cá. Na altura, houve um tratado alfandegário [European Free Trade Association – EFTA] que permitiu às empresas suecas virem cá coser as suas roupas. E eu trabalhei numa das várias fábricas que existiam em Alhos Vedros. Inicialmente como tradutora e, depois, até ia ao norte comprar tecidos e tal. Acho que era chefe de compras.
Quanto ao fascismo, o Alberto queria fazer cinema e o primeiro filme que ele ia fazer era o Brandos Costumes. Começámos a filmar em 1972 e, nesse filme, já havia revolução. E nós não sabíamos que iria haver 25 de Abril. Também na fábrica, eu já tinha percebido que o fascismo estava um bocadinho fraquito. Houve greves e o patrão decidiu chamar a PIDE para vir acabar com a greve, que era o habitual. Mas eles vieram e não acabaram com a greve. As costureiras ganhavam uma miséria e a própria PIDE é que acabou por perguntar se não seria melhor subir-lhes um bocadinho os ordenados. Portanto, já estavam a entrar na negociação.

A seguir ao 25 de Abril, o vazio de poder que se instalou foi ocupado por um movimento popular que tinha tanto de ingénuo como de emancipador, tanto de impreparação como de poder de invenção. Como é que foi esse tempo para uma pessoa nascida (e crescida) fora de Portugal?

O Brandos Costumes já anunciava o que nós sabíamos… Por exemplo, tínhamos amigos que estavam em Angola, na guerra, e, para nós, não havia dúvida de que ia acontecer qualquer coisa. Ironicamente, o Alberto teve de ir fazer uma operação ao coração exactamente no 25 de Abril. Portanto, nós estávamos na Suécia quando aconteceu o 25 de Abril em Portugal e só viemos depois, em Maio. E logo no aeroporto era tudo diferente. Já nem carimbavam os documentos. E, claro, tínhamos tido notícias pelo telefone que eram realmente emocionantes. Mas, na verdade, a vontade e até a prática de transformação já vinham de trás. Nós achávamos que já vinha de trás. E acho mesmo que vinha: as pessoas já sabiam. Não apenas nós. Toda a gente sabia que aquilo ia acabar.

Dina e Django

Dina e Django

Ainda antes do 25 de Abril, participaste na montagem do Brandos Costumes (do Alberto Seixas Santos) – que acabou por estrear após o 25 de Abril, em 1975. Uma espécie de 25 de Abril filmado antes do tempo, mas estreado já em pleno PREC. Partindo do princípio de que tinha passado no crivo da censura – o que é muito dúbio – achas que o timing de exibição foi o melhor? Ou terias preferido que tivesse sido exibido ainda em ditadura?

O Brandos Costumes não acabou antes do 25 de Abril. Acabámos as cenas da família em casa, com a tal revolução lá. Mas, depois, eram precisas outras coisas. Sabíamos que era preciso material de arquivo, tanto do fascismo como da guerra colonial, e até fomos a França comprar. E filmámos também uma cena dum enterro dum soldado português, que está lá no filme. E podíamos ter montado e estreado. Mas sabíamos que, aí sim, haveria problemas, com certeza. Para além disso, o próprio Alberto achava que o filme não estava pronto. Queria fazer umas outras cenas, cenas escritas, um bocadinho poéticas, entre as diferentes pessoas, que ele escreveu já depois do 25 de Abril. Na altura, até cheguei a achar que era uma desculpa para adiar a estreia, mas, se calhar, não era. E, na verdade, eu acho que o filme sem essas cenas também não é bem o filme.

Imediatamente a seguir ao 25 de Abril, és uma das fundadoras do Grupo Zero 1, onde co-realizas os teus primeiros filmes, que são, afinal, documentários engajados, de intervenção política, filmados em pleno período revolucionário. O que te (vos) impelia a fazer isto? A necessidade de documentar? A vontade de partilhar as experiências locais com outras pessoas? Alguma expectativa de serem capazes de influenciar o curso das coisas? Uma espécie de serviço (também ele) de alfabetização prestado à revolução?

Nessa altura, toda a gente formou cooperativas. Havia a Cinequipa, a Cinequanon e o Grupo Zero. Nós até nos atrasámos na formação do Grupo Zero. Era um bocado o Alberto que dizia o que íamos fazer. Ele copiava um bocadinho a revolução russa e então nós íamos para o campo. Eu acho que o Alberto tinha razão. Ele nunca tinha vivido no campo, mas era realmente ali que se via a mudança. E o que nos impelia era a vontade de filmar. Não se pensava nisso do porquê. Uma das ideias que o Alberto tirou dos estudos – e isso eram coisas que nós não sabíamos – foi que se devia mostrar o material às pessoas que foram filmadas antes de se acabar o filme. E isso nós fazíamos.

A Luta do Povo – Alfabetização em Santa Catarina é de 1976, Assim Começa uma Cooperativa é de 1976 e A Lei da Terra é de 1977. Visto de fora, estes três filmes documentais parecem ter um percurso pré-definido: em primeiro lugar, falar da alfabetização como condição essencial para as mudanças sociais que se queriam; depois uma introdução à Reforma Agrária, com o historiar da construção de uma cooperativa em Barcouço, perto de Coimbra; e, finalmente, o A Lei da Terra, onde se parte do particular para o geral, conjugando dados históricos, políticos, sociais e económicos que tentavam enquadrar a Reforma Agrária. Foi assim?

Não, não foi assim. Não há razão para essa ordem. Nem pensamento prévio. Umas coisas encaixam nas outras, mas foi um bocadinho mais a realidade que nos ia chamando. Há, no entanto, uma questão interessante: na RTP, havia uma parte chamada «educação permanente» e as curtas, que são o início do A Lei da Terra, são pagas pela «educação permanente». Ou seja, foi quase feito para a RTP e aquilo passava muitas vezes na televisão.

Nós estávamos na Suécia quando aconteceu o 25 de Abril em Portugal e só viemos depois, em Maio. E logo no aeroporto era tudo diferente.

O Grupo Zero assinava os filmes colectivamente. Era uma opção ideológica ou o resultado natural do processo de realização e filmagem?

Não sei como é que fizeram nas outras cooperativas, mas acho que naquela altura era uma coisa geral. Aliás, está certo, não é? Nem toda a gente tem a mesma importância, claro, mas é sempre colectivo. O filme A Lei da Terra, por exemplo, é um filme colectivo, mas, como disse, aquilo era quase tudo ideia do Alberto. Eu apareço lá como co-realizadora, e, em certa medida, é verdade, mas as ideias iniciais eram do Alberto.

Por muito que a revolução tivesse momentos verdadeiramente entusiasmantes, havia uma parte das relações sociais que mudava mais lentamente do que outras: os papeis de género. Uma espécie de ímpeto de «acabar com a exploração do homem pelo homem» que se detinha quando se tratava de acabar com a exploração (ou menorização) da mulher. Como foi viver isso enquanto mulher? Sentiste que havia diferença por seres ao mesmo tempo mulher e estrangeira? Na sociedade e no cinema?

Pessoalmente, não senti isso. Mas acho que tive algum privilégio por ser estrangeira. Mesmo ao nível dos meus colegas nunca senti isso. Por exemplo, comparando-me com a mulher do Fernando Lopes: tinha três filhos para tomar conta. Ela também queria fazer cinema, mas não tinha hipóteses e o Fernando, com certeza, nem pensava nisso. Ou seja, havia uma diferença. Eu não senti isso e creio que foi pela nacionalidade.

No Dina e Django – para além de colocares, no título, o nome dela antes do nome dele – a condição da mulher é uma questão fundamental em pleno momento revolucionário, com a denúncia da exploração que sofrem, da violência constante que experimentam, dos ciúmes, da agressão sexual que inclui bocas e assédio. No Aparelho Voador a Baixa Altitude transformaste o ponto de vista do texto de J. G. Ballard do homem para a mulher, deste destaque à maternidade enquanto acto de resistência e a personagens femininas – o que contraria um pouco o texto inicial. No A Filha, fala-se sobre misoginia, violência familiar, masculinidade tóxica, assédio, violação. Temas e visões do mundo que fazem parte do que habitualmente se chama o olhar feminino – ou feminista. As questões de género são-te importantes? Foram uma reacção a uma certa cultura machista em Portugal?

No Dina e Django, o nome na mulher vir em primeiro lugar é perfeitamente aleatório. Troquei o foco no texto do Ballard, isso é verdade, mas a maternidade enquanto resistência tem a ver com aquela história em particular. Naquela história, sim, é um acto de resistência. Mas as questões de género não estavam de todo nas minhas preocupações. Muitas vezes até fico irritada… Fui-me embora em 1980 e, quando cheguei à Suécia, havia lá um festival de cinema feminino e estava por lá o Dina e Django, que até ganhou um prémio. Quem organizou isso, ou seja, as mulheres que eram as fundadoras desse festival na Suécia, eram as actrizes do Bergman. Isso já foi há mais de 40 anos. Até havia lá uma filósofa dinamarquesa que tinha umas ideias sobre a criatividade feminina e tal, mas que não tinha nada a ver com o lado social, digamos. Portanto, quando agora aparecem aqui festivais femininos, eu acho que se anda um bocadinho atrasado. É claro que, na Suécia, homens e mulheres recebem o mesmo salário para o mesmo serviço. Aqui, em Portugal, ainda nem isso temos. Portanto, aqui, provavelmente há mais razões para isso dos festivais femininos. Mas o meu cinema não foi nenhuma reacção a qualquer cultura machista portuguesa. O Alberto Seixas Santos, naquela altura, não era nada o género machista. E eu nem sequer achava que havia machismo português.

A ligação do Grupo Zero (e tua, especialmente) à Cornucópia 2 – que é anterior ao Grupo Zero – tem apenas a ver com amizades, com a proximidade geográfica, a partilha da sede, por exemplo, ou terá talvez a ver com essa ideia de «novo» que, para além do Grupo Zero, também inspirava a Cornucópia? Um «cinema novo» que dava o braço a um «teatro novo»?

Era tudo na mesma altura e tudo mais ou menos a mesma gente. O Jorge Silva Melo já era assistente no Brandos Costumes. Nós éramos amigos e, quando eles conseguiram o local para o teatro, nós ficámos com espaço de escritório. E houve uma colaboração intensa até o Luis Miguel Cintra e o Jorge Silva Melo romperem, em 1980. O Jorge foi para Berlim, a Cristina Reis também e eu fui para a Suécia.

Lei da Terra

Lei da Terra

Entretanto, a partir da década de 80, os teus filmes passam a ser assinados individualmente (inicialmente ainda sob bandeira do Grupo Zero) e, apesar de continuar a poder detectar-se a sensibilidade social de quem realiza, os teus filmes vão paulatinamente perdendo foco político clássico, ou seja, carácter de militância. Em Nem Pássaro nem Peixe, surge a desilusão com o rumo dos acontecimentos em Portugal a seguir ao 25 de Novembro de 1975. Em Dina e Django, a revolução já é quase apenas um pano de fundo que aparece quase em antítese com o desenrolar da história pessoal deste casal, como que a antever que, depois da festa, toda a gente voltaria à sua vida e deixaria a construção colectiva para mãos alheias. E, depois, o teu cinema vai-se afastando de ilusões (ou desilusões) revolucionárias com Até Amanhã, Mário, Comédia Infantil, tentando, por outro lado, aprofundar o gosto pelos temas que (ainda) não estão na moda (o filme Até Amanhã, Mário, por exemplo, é anterior ao escândalo da Casa Pia), pela análise social dura, honesta e não simplista, levada até à possibilidade da distopia em Aparelho Voador a Baixa Altitude. Aceitas esta análise de que a tua filmografia é um retrato possível do descalabro do sonho? Ou achas que acerta completamente ao lado?

Não se pode dizer que foi a partir da década de 80 que os filmes passaram a ser assinados individualmente. Nessa altura já tinha acabado o Grupo Zero – que acabou quando eu fui para a Suécia. O Nem Pássaro nem Peixe, sim, é do Grupo Zero e foi assinado individualmente, mas é anterior a isso.
Nós – eu, o Jorge Silva Melo e outros – fomos embora em 1980 porque a revolução não tinha correspondido ao que queríamos. Mas eu já nem me lembro do que é que queríamos. Entretanto, passaram 50 anos, não é? Que sorte que Portugal teve. Foi uma sorte o Salazar ter morrido em 1970. Senão, aquilo podia ter durado mais. E, depois, houve tantas hipóteses de pequeninas reviravoltas, que acabou por ser fantástico as coisas acontecerem como aconteceram. E, hoje em dia, qual é a revolução desejável, que se aguente no mundo?

A questão anterior também poderia ser colocada doutra forma: o 25 de Novembro parece ter feito todo um país deixar de acreditar num sonho de fraternidade e igualdade… ou seja, posto de uma forma simplista, se o 25 de Novembro não tivesse acontecido, terias mantido o foco militante do teu cinema ou achas que o teu percurso não teria mudado assim tanto?

Acho que uma coisa não tem a ver com a outra. Eu nunca fui aquilo a que habitualmente se chama uma pessoa muito politicamente empenhada.
Tive sorte em ter vivido o 25 de Abril e depois também tive sorte em ter-me ido embora de novo, em 1980. Quando cheguei à Suécia, arranjei emprego na televisão. Mas a televisão já tinha empregado demasiadas pessoas. Então, só podia ficar lá quem aceitasse ser despedida ao fim de dois anos. Eu aceitei, claro. A mim até me calhava bem. Depois, criei a minha própria produtora [Torromfilm] e, a partir daí, nunca mais fui dependente de ninguém. Uma produtora em nome individual que a própria televisão sueca me ajudou a criar para podermos continuar a colaborar. Aliás, as Conversas no Cabeleireiro 3 foram feitas com um acordo semelhante ao que eu tinha na Suécia para fazer produção externa através duma outra produtora que criei para Portugal, juntamente com a realizadora Margarida Gil, a Ambar Filmes. E tenho andado sempre para cá e para lá, entre Portugal e a Suécia.

A independência, no cinema, é muito importante para ti…

Tive, talvez, o cuidado de ficar com as minhas coisas nas minhas mãos. Por exemplo, o Aparelho Voador a Baixa Altitude é uma co-produção entre mim e a Maria João Mayer. Como eu era co-produtora, e como tinha angariado bastantes fundos na Suécia, quando ela faliu – ainda antes de terminarmos o filme –, eu pude continuar. E, com essa independência, uma pessoa não tem de se vender directamente. Por falar nesse filme, recebi uma informação da Cinemateca a dizerem que têm uma nova cópia, que foi retocada, e que vai passar num festival em Roterdão. Enfim, desde que consiga, uma pessoa não deve colocar-se em posição de inferioridade. A independência é isso. É como entre homem e mulher, não é?

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #40, Janeiro|Março 2024.

Notas:

  1. Juntamente com nomes ilustres como Acácio de Almeida, Alberto Seixas Santos, Fernando Belo, Joaquim Furtado, Jorge Silva Melo, José Luís Carvalhosa, Leonel Efe, Lia Gama, Paola Porru, Serras Gago, Teresa Caldas ou Ricardo Costa.
  2. O Teatro da Cornucópia partilhava a sede com o Grupo Zero (no Teatro do Bairro Alto) e, da colaboração a que se alude na questão, traduziu-se em quatro filmes realizados por Solveig Nordlund, a partir de encenações de peças teatrais por aquela companhia.
  3. Série documental de 2013 sobre a vida de cinco mulheres: Sofia Areal, Purificação Araújo, Leonor Keil, Isabel do Carmo e Ana Bacalhau. Ainda disponível no RTP Play.

Written by

Teófilo Fagundes

Show Conversation (0)

Bookmark this article

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

0 People Replies to “«O que nos impelia era a vontade de filmar»”