
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Um anarquista que faz tremer um Estado
Alfredo Cospito é um preso anarquista italiano de 56 anos que há mais de 4 meses leva a cabo uma greve de fome contra o regime de isolamento máximo 41-bis a que foi submetido desde Maio de 2022. Este é um regime prisional considerado, inclusive pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, como uma violação dos direitos fundamentais do ser humano. À data que escrevemos, foi publicada uma carta, escrita quando ainda se encontrava na prisão de Sassari, na Sardenha, e que fora retida (que aqui publicamos), na qual Cospito declara como ama a vida: «e é porque a amo que não posso aceitar esta não-vida sem esperança».
A sua «luta individual de um anarquista» representa a de quem está «disposto a morrer para fazer o mundo compreender o que é realmente 41-bis». Esta é, pois, uma luta pelos direitos humanos. Mas é igualmente uma luta concreta pelo direito de opinião e de expressão em pleno seio da Europa democrática. Alfredo Cospito fora colocado em 41-bis pelo motivo invocado de impedir que continuasse a escrever cartas e artigos para os seus companheiros no exterior. É por isso mesmo, tratando-se de uma luta pelos valores humanos e de liberdade, que esta é uma luta que reflete a condição mais profunda de um anarquista contra o Estado.
O 41-bis é um regime concebido para isolar completamente as pessoas reclusas. Trata-se de forma clara e directa do exercício de tortura.
Uma vida em luta
Anarquista que luta desde final dos anos oitenta, Cospito esteve preso por insubmissão ao serviço militar obrigatório, que resultou, em 1991, numa greve de fome, em consequência da qual, depois de um mês de abstinência alimentar, veio a ser indultado pela Presidência da República italiana. Mas é já na segunda década deste século que o seu nome surge sob os holofotes de uma ampla atenção mediática, quando é detido em 2012 no âmbito da megaoperação Ardire (ousadia) pelo atentado não letal – três tiros nas pernas – contra Roberto Adinolfi, administrador da Ansaldo Nucleare, uma empresa responsável pela construção de centrais nucleares em todo o mundo. Reivindicado por uma célula da Federação Anarquista Informal, Cospito e o seu companheiro Nicola Gai assumiram o ataque, tendo Cospito sido condenado a 10 anos e oito meses de prisão.
Na prisão desde então, em Setembro de 2016 veio a ser um dos alvos da operação Scripta Manent, acusado de associação subversiva com finalidade de terrorismo e de múltiplos ataques explosivos. Scripta Manent foi o nome dado a um dos mais importantes processos contra o movimento anarquista em Itália. Vinte e três pessoas foram acusadas de terem criado a FAI-FRI (Federação Anarquista Informal/Frente Revolucionária Internacional), sigla com a qual foram reivindicados, entre 2012 e 2016, diversos atentados com pequenos artefactos explosivos contra políticos, esquadras da polícia e jornalistas. O processo culminou com a condenação de 12 pessoas, a absolvição de 11, estando ainda pendentes as condenações de Anna Beniamino e de Alfredo Cospito, que arriscam o ergastolo ostativo, a pena máxima prevista a nível jurídico em Itália. Cospito foi inicialmente condenado a 20 anos de prisão por um ataque com explosivos em 2 de Junho de 2006 contra uma escola de cadetes dos carabinieri, ataque que apenas causou danos materiais. A Procuradoria veio a requalificar a acção como «massacre político», atentado terrorista «dirigido a atacar a segurança do Estado».
Nos últimos anos como preso anarquista, tinha vindo a contribuir com artigos para revistas e jornais, e com propostas para o debate entre anarquistas a nível internacional.
É precisamente por isso que Alfredo Cospito deu início à greve de fome, em 20 de Outubro último, reivindicando o fim desse regime, normalmente aplicado aos chefes da Máfia com o objectivo de cortar qualquer tipo de comunicação com o exterior.
Em resposta ao apelo nacional juntaram-se em Turim, a 4 de Março, mais de mil pessoas numa manifestação de apoio a Alfredo e a todas as pessoas presas em luta.
Tortura
O 41-bis é um regime concebido para isolar completamente as pessoas reclusas. Trata-se de forma clara e directa do exercício de tortura, provocando danos físicos e psicológicos através de técnicas de privação sensorial. Os reclusos apenas têm direito a uma hora de visita por mês, com vigilância electrónica e gravação de áudio e vídeo, ou, em alternativa, a uma chamada de dez minutos por mês de um familiar a partir de uma esquadra policial ou de uma outra prisão. Diariamente só está permitida uma hora de pátio e outra hora de convívio dentro do módulo, que é feita num grupo mínimo de duas pessoas e num máximo de quatro, mas cuja concretização carece de autorização superior de Roma.
Na carta que aqui publicamos de Cospito, o universo de 750 reclusos/as alvo do 41-bis, remete-nos para um contexto que não foi feito simplesmente para encaixar chefes mafiosos. Há mais de 17 anos que a ele foram votados alvos políticos como os membros das Novas Brigadas Vermelhas, como Nadia Lioce, Roberto Morandi e Marco Mezzasalma. Em 2009, Diana Blefari, da mesma organização, suicidou-se, depois de se tornar insuportável a permanência neste duríssimo regime prisional.
Decorridos quatro meses de greve de fome, no dia 24 de Fevereiro de 2023, a justiça italiana rejeitou o recurso interposto pelo advogado de Alfredo Cospito, Rossi Albertini, para que este pudesse sair do regime 41-bis. Desse modo, o governo de extrema-direita, por decisão política do ministro de Justiça Carlo Nordio, com a aprovação dos juízes da Guarda Penitenciária de Roma e dos juízes do Tribunal de Cassação, condenou à morte Alfredo Cospito, indefectível na sua luta. Actualmente encontra-se no Hospital San Paolo, em Milão, para onde foi transferido no dia 11 de Fevereiro devido à sua precária situação de saúde. Nessa data, a médica Andrea Crosignani informava que havia «o risco de edema cerebral e arritmia cardíaca potencialmente fatal. A sua condição é séria. Está lúcido e acordado, caminha sozinho, mas pode não demorar muito para que a situação se precipite». Já no início de Março, Cospito decidiu suspender a ingestão de suplementos de potássio e de açúcar.
…tratando-se de uma luta pelos valores humanos e de liberdade, esta é uma luta que reflete a condição mais profunda de um anarquista contra o Estado.
A sombra fascista da Itália à luz do dia
O que está a acontecer com Alfredo Cospito mistura-se com um clima repressivo galopante em Itália, facilitado com a liderança do governo de Giorgia Meloni, do partido de extrema-direita Fratelli d’Italia. Mais além do movimento anarquista, assistimos a uma repressão cada vez mais opressiva contra trabalhadores, estudantes e movimentos sociais. Em Itália, chegou-se ao ponto de membros da comissão parlamentar da cultura declararem – visando o Arquivo Histórico da Federação Anarquista Italiana – que fosse retirado todo o reconhecimento público (e financiamento) de qualquer arquivo que faça uma «apologia do terrorismo», exigindo mesmo a intervenção do Ministério do Interior para identificar quaisquer documentos «perigosos» nas suas prateleiras de modo a serem censurados.
Em Portugal, alguma comunicação social replicou a campanha do Estado Italiano, que forçado a reagir ao crescimento dos protestos e à solidariedade alargada com Cospito junto da sociedade civil, pretendeu equiparar anarquistas e mafiosos numa mesma retórica criminalizadora. Como declarou o advogado de Alfredo, «houve uma tentativa de explorar e demonizar Cospito. Só os que não conhecem o anarquismo ou as pessoas de má-fé podem afirmá-lo. Cospito não tinha intenção de se vincular à máfia salvo no que respeita à condição em que se encontram sob o 41-bis, ou à privação de direitos». Cospito expressou ainda o absurdo do paralelismo com a máfia: «o maior insulto para um anarquista é o de ser acusado de dar ou receber ordens. Quando estava no regime de alta vigilância [fora do 41-bis], havia censura de todas as maneiras, todavia eu nunca mandei um pizzini [papéis nos quais os chefes mafiosos escreviam suas ordens para seus subordinados], mas artigos para jornais e revistas anarquistas. Sobretudo pelo facto de eu estar livre para receber livros, revistas, livre para escrever livros e ler o que queria, tinha permissão para viver».
Esses avanços repressivos ecoam por toda a parte e no coração de uma Europa, cuja crise social e militar internacional se agrava a cada dia que passa, proporcionando o contexto ideal para as derivas autoritárias dos governos. A solidariedade tem sido expressa ao longo dos últimos meses em várias partes do mundo para salvar a vida de Alfredo Cospito, desde concentrações diante de embaixadas e consulados de Itália em distintos países, atentados incendiários ou outras greves de fome em solidariedade. Em Portugal, em 4 de Janeiro, ocorreu uma concentração de cerca de 30 de pessoas diante da embaixada italiana. Estas movimentações assinalam não apenas o gesto de solidariedade, mas, de igual modo, um sinal de resistência ao ataque em curso à dignidade humana e à liberdade de expressão. Como o próprio Cospito afirma, esta sua luta é também uma luta por todos aqueles que hoje ou amanhã possam cair nas teias de regimes penitenciários semelhantes, privados dos direitos mais básicos que as chamadas sociedades democráticas alegadamente deveriam garantir.
Carta de Alfredo Cospito
A minha luta contra o 41-bis é uma luta individual de um anarquista, eu não faço nem recebo recados. Simplesmente não posso viver num regime desumano como o 41-bis, onde não posso ler livremente o que quero, livros, jornais, revistas anarquistas, de arte e ciência, bem como de literatura e história. A única hipótese que tenho de sair é renunciar à minha anarquia e vender alguém para que ocupe o meu lugar.
Um regime onde não posso ter nenhum contacto humano, onde nem sequer posso ver ou apanhar uma mão-cheia de erva ou abraçar uma pessoa querida. Um regime onde as fotografias dos teus pais são confiscadas. Enterrado vivo numa sepultura num lugar de morte. Continuarei a minha luta até às últimas consequências, não por uma «missão», mas porque isto não é vida.
Se o objectivo do Estado italiano é fazer-me «dissociar» das acções dos anarquistas de fora, que fiquem a saber que, como bom anarquista, não aceito recados. Acredito que cada qual é responsável pelas suas próprias acções, e como membro da corrente auto-organizada não estou «associado» a ninguém e por isso não me posso «dissociar» de ninguém. A afinidade é outra questão. Um anarquista coerente não se afasta de outros anarquistas por oportunismo ou conveniência.
Sempre reivindiquei com orgulho as minhas acções (inclusivamente em tribunal, é por isso que aqui estou) e nunca critiquei os demais companheiros, muito menos quando existe uma situação como esta onde me encontro. O maior insulto para um anarquista é ser acusado de dar ou receber ordens. Quando estava no regime de Alta Segurança, também tive censura e não enviei nenhum pizzini [papelinhos através dos quais os chefes mafiosos supostamente passam as suas ordens], mas sim artigos para jornais e revistas anarquistas. E, acima de tudo, podia receber livros e revistas, e escrever livros, ler o que queria, até me era permitido evoluir, viver.Hoje estou disposto a morrer para fazer o mundo compreender o que é realmente 41-bis; 750 pessoas sofrem-no sem protestar, continuamente transformadas em monstros pelos meios de comunicação social. Agora é a minha vez, vocês transformaram-me num monstro tachando-me de terrorista sanguinário, depois santificaram-me como o mártir anarquista que se sacrifica pelos demais, para depois me voltarem a transformar num monstro, num terrível espectro. Quando tudo tiver terminado, serei sem dúvida elevado aos altares do martírio. Não, obrigado, não estou com disposição, não me presto aos vossos jogos políticos sujos. Na realidade, o verdadeiro problema do Estado italiano é que se cheguem a saber todos os direitos humanos que são violados neste regime 41-bis em nome de uma «segurança» pela qual tudo é sacrificado. Óptimo! Terão de pensar duas vezes antes de pôr aqui um anarquista. Não sei quais são as verdadeiras motivações e manobras políticas que estão por trás disto. E porque é que alguém me usou como uma «maçã envenenada» neste regime. Era muito difícil não prever quais seriam as minhas reacções a esta «não vida». O Estado, o italiano, é um digno representante da hipocrisia de um Ocidente que dá continuamente lições de «moral» ao resto do mundo. O 41-bis deu lições que foram bem aprendidas por Estados «democráticos» como o turco (os colegas curdos sabem algo sobre isto) e o polaco.
Estou convencido de que a minha morte será um obstáculo para este regime e que as 750 pessoas que têm sofrido com ele durante décadas poderão viver uma vida que valha a pena, independentemente do que tenham feito. Amo a vida, sou um homem feliz, não trocaria a minha vida pela vida de outra pessoa. E é porque a amo que não posso aceitar esta não-vida sem esperança.
Obrigado, companheiros, pelo vosso amor. Sempre pela Anarquia. Nunca curvado.
Alfredo Cospito
Artigo publicado no JornalMapa, edição #37, Março|Maio 2023.
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