Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Testemunhos do Capitalismo Verde [III]
Entrevista realizada em Junho de 2020.
Alonso Barros é um advogado e antropólogo Chileno. Conheci o Alonso em 2012 no Chile. Colaborámos alguns anos depois na elaboração de um relatório sobre os impactos ambientais da expansão do tanque de rejeitados da mina de cobre Radomiro Tomic, e mais recentemente em dois projetos de investigação, um sobre lítio e outro sobre jurisprudência ambiental e climática, comparando Chile e Austrália. O Alonso tem 25 anos de experiência na representação das comunidades atacameña, aymara, diaguita e quechua do Deserto de Atacama, afetadas pela mineração, tanto do cobre como do lítio. Se as entrevistas anteriores desta série a líderes indígenas do Atacama tratavam de experiências vividas do território, aqui trata-se de uma abordagem mais seca e técnica, onde se notam importantes diferenças tanto de prioridade como de perspetiva. Nas entrelinhas destas diversas contribuições, podemos observar também uma tensão política entre optar pela contestação ou pela negociação. Obviamente, Portugal e Chile constituem contextos históricos e políticos muito diferentes. Por isso, a entrevista debruça-se especificamente sobre as estratégias permitidas pela ratificação da Convenção 169 da OIT – notando os prós e contras de ter-se passado de um paradigma de contestação através da ‘demarcação’ de terras para um paradigma de «consulta».
Godofredo Pereira (GP): Como começaste a trabalhar no Atacama?
Alonso Barros (AB): Um amigo da Faculdade de Direito ajudou-me a encontrar um emprego na Corporação Nacional Chilena para o Desenvolvimento Indígena (CONADI criada em 1993 pela lei 19.253, a “Lei Indígena”). Em 1994 inaugurámos os escritórios em San Pedro de Atacama, e comecei a trabalhar no desenho da estrutura jurídica do CPA [Consejo de Pueblos Atacameños], uma união de presidentes de cada comunidade indígena local formada associativamente, como um grémio.
GP: A água era crucial na altura, certo?
AB: A lei indígena incluía três questões: água, terra, e património cultural (arqueologia). Com a água, era um processo em duas fases. Primeiro, tínhamos de gerar os instrumentos legais para os povos indígenas se organizarem, obter personalidade jurídica como comunidades indígenas e obter um número fiscal, para ser reconhecido pelos serviços governamentais. Isso era necessário para o segundo passo: registar as águas em nome destas comunidades. Também estabelecemos as medidas iniciais para assegurar os direitos de propriedade da terra das comunidades, pelo que fizemos o primeiro registo dos «padrões de ocupação» indígena. De acordo com a Lei 19.253, os atacameños e os aymaras – e todas as comunidades do norte do Chile – têm direitos especiais, particularmente em relação às águas superficiais, pelo que tivemos de os assegurar legalmente. Em seguida, foi necessário um cadastro para registar as terras dos atacameños em nome das «novas» comunidades.
A única coisa que torna as terras e águas indígenas diferentes de outras propriedades é que, por lei, não se pode vendê-las, alugá-las, nem dá-las como garantia; não se pode ter direitos de servidão sobre elas. Portanto, foi uma estratégia sólida recuperar e demarcar todas estas terras disputadas que o Estado reclama como suas, recuperando-as como propriedade indígena protegida para o povo atacameño. Mas também ficou na mente das pessoas a ideia de que somos donos disto agora, pelo que temos de aproveitar ao máximo para beneficiar directamente da sua exploração e, ao mesmo tempo, protegê-la. Agora que as empresas mineiras tentam chegar à nossa propriedade, temos de nos opor a elas para conseguirmos algo com isto. Ou seja, a lei constituiu sujeitos e apanhou-os numa armadilha neoliberal porque os tornou «proprietários». Com estas águas e estas terras, eles entraram neste tipo de ecopolítica da mineração. As pessoas começaram a perceber e a compreender que a extração de água do Salar [salina] de Atacama poderia secar as «margens» ricas em flamingos e fontes de água mais acima e enfurecer a montanha, de maneira que não teriam neve nem água para pastagens e agricultura.
GP: Qual foi o primeiro caso em que trabalhaste independentemente?
AB: Lembro-me que, em 2008, estava a apresentar observações para a comunidade aymara de Quillagua contra a SQM. O processo chamava-se Pampa Hermosa, e está atualmente a ser revisto porque afectou os frágeis puquios (furos de água) no Salar de Llamara. Também representei a comunidade atacameña de Peine na orla do Salar de Atacama, negociando em termos fortes. Foi assim que chegámos a um primeiro acordo de referência com Escondida (uma mina de cobre), por aproximadamente 15.000 dólares por ano. Embora isto pareça muito pouco dinheiro, foi a primeira vez que foram alcançados acordos de «partilha de benefícios». Hoje, penso que subiram o pagamento para 20.000 dólares.
Odiaram-me em Escondida quando, por volta de 2007, parámos o seu projecto de extrair 1.000 litros por segundo de água das lagoas de montanha e transportá-la numa conduta de 100 km até à mina. As autoridades da minha universidade disseram-me: «não publique nada sobre direitos humanos, de povos indígenas, não fale de territórios, cale-se». É claro que não cumpri e deixei a minha posição de investigação. Recentemente, com Camar, opusemo-nos com sucesso aos projectos de extracção de água de Escondida no aquífero vizinho de Monturaqui (com um impacto de 500 anos).
Crucial a tudo isto foi que, em 2009, o Chile aderiu à Convenção 169 da OIT (C169), com a sua consulta obrigatória aos povos indígenas e o dever de consulta do Estado. Qualquer projecto de empresa requer duas licenças para funcionar: a ambiental e a social. Ao lidar com os povos indígenas, é necessário o consentimento mútuo através de um processo de consulta formal dos povos em cujos territórios um determinado projecto está definido para funcionar. Caso contrário, poderão ter problemas. E se uma empresa destas fica com má reputação, isso terá impacto no preço das suas acções. Portanto, há muito em jogo na sua gestão de imagem.
Este tornou-se o cavalo de batalha. Em 2009, apresentámos observações em oposição ao projecto de extracção de lítio de Albemarle, as quais foram finalmente consideradas e aprovadas há alguns anos. Fiz estas observações para Peine e Toconao e também para outras comunidades. As observações conduziram a um acordo de partilha de benefícios com Peine em 2012. A comunidade receberia cerca de 170.000 dólares anuais, indexados à produção – se a produção crescesse, os fundos da comunidade cresceriam na mesma proporção.
O que se seguiu foi que, com Peine, convencemos Albemarle a chegar a um acordo com as outras comunidades de salinas através do CPA. Negociámos com Albemarle de uma forma muito diferente do que antes, porque o presidente da CPA – Rolando Humire [entrevistado na edição de Julho de 2021 do Jornal MAPA] – fazia parte da Comissão Nacional de Lítio do Chile. No início, Albemarle disse que não, argumentando que só precisavam da licença social de Peine. Isto porque estavam no território de Peine e não viram necessidade de um acordo com a CPA, que representa todas as comunidades em redor do Salar. Impusemo-lo. Eles sabiam que se não cedessem às nossas exigências, poderíamos eventualmente derrubar judicialmente todo o projecto devido à falta de consulta, considerando que as águas da bacia do Atacama, quer superficiais quer subterrâneas, formavam um único corpo.
GP: Quais eram as principais estratégias legais que estavam a ser utilizadas?
AB: Foram os termos da consulta C169 da OIT e a licença social porque a Albemarle não poderia funcionar sem ela. A única forma de obter a licença social era chegar a um acordo directo com todas as comunidades e com o CPA de uma só vez.
GP: Como é que existe um dever de consulta com as comunidades sem reivindicação territorial direta sobre o Salar?
AB: Bem, os atacameños tiveram os seus territórios reconhecidos genericamente como ADI, Área de Desarrollo Indígena. Mas a consulta é algo que tem desterritorializado as práticas de titulação. Agora já não se trata de discutir se «esta é a minha terra», se vai ser demarcada, e assim por diante. Este foi o discurso no Chile e nas lutas pela terra na América Latina durante muito tempo, até que com a OIT C169 se diz: «vamos consultar» qualquer medida legal ou administrativa suscetível de ter impacto sobre os povos indígenas. Ou seja as empresas têm de consultar todas as comunidades suscetíveis de ser afetadas, direta ou indiretamente. «Vamos consultar», mas continuará a ser o governo a decidir sobre os recursos naturais. A consulta não permite um veto indígena. Se os atacameños tivessem direitos territoriais de propriedade totalmente registados, não haveria necessidade de consulta porque, como proprietários de pleno direito, poderiam simplesmente dizer não a qualquer projeto dentro das suas terras. Mas não têm nem propriedade plena nem consulta plena.
“Vamos consultar”, mas continuará a ser o governo a decidir sobre os recursos naturais
GP: Então, a mudança mais significativa foi a entrada em vigor da C169 da OIT, na medida em que apresenta a consulta. Mas será que continua a ser um instrumento poderoso apesar de não permitir um veto?
AB: Sim e não. É o que diz o acordo assinado por Peine com Albemarle, que «a comunidade é proprietária da terra em que a empresa opera», ao mesmo tempo que também diz «a empresa reclama os seus próprios direitos de propriedade sobre a água e a terra, não aceitando a opinião da comunidade». Ou seja, concordam em discordar. De acordo com a lei chilena, a maioria das terras indígenas estão no limbo, pelo que as comunidades não podem efetivamente opor-se a projetos prejudiciais baseados apenas no seu título consuetudinário. Contudo, a consulta força algum tipo de reconhecimento mútuo de reivindicações ancestrais para além do que as normas chilenas permitem.
GP: Há muitas situações em que coisas como as lagoas que bordejam o Salar, os flamingos, a quantidade de água bombeada do Salar, ou mesmo o número de árvores nas margens se tornaram um objeto de disputa. Estará isto ainda dentro do paradigma aberto pela questão da consulta? Ou será esta uma via ligeiramente diferente que coexiste com essa estratégia?
AB: A OIT C169 criou um incentivo: as comunidades têm de ser consultadas e de participar directamente nos benefícios das empresas que operam nos seus territórios ou nas suas proximidades. Isto às vezes sobrepõe-se aos princípios ambientais na medida em que se acaba por negociar o ambiente. Mas o que permite é continuar a aumentar a exigência ambiental, para proteger e defender cada vez mais, para pedir mais e mais medidas, utilizando cada pequeno detalhe para transmitir a verdadeira natureza do impacto ambiental.
Por exemplo, no início, ninguém sabia ou se preocupava muito com os microrganismos extremófilos que hoje são fulcrais em múltiplas disputas nas mais diversas salinas do Atacama. Ainda assim, à medida que pressionávamos judicialmente por mais investigação, fomos capazes de criar um argumento, um dispositivo retórico baseado no papel que certos microrganismos presentes nos salares tiveram para a origem da vida na terra. Um ambientalista ou um biólogo preocupar-se-ia com o microorganismo, com a vida destes seres. Como advogado, vejo-os como dispositivos para evidenciar impactos ambientais até à data não mencionados, e que podem gerar o interesse das empresas e do Estado, levando a mudanças mais alargadas. E a mesma coisa com as lagoas, os flamingos, as árvores, etc.
As instituições ambientais do Chile – o Serviço de Avaliação Ambiental (SEA) para a ação preventiva e a Superintendência do Ambiente (SMA) para a supervisão e sanção – garantem a promulgação de todos estes acordos. Assim, há uma negociação antecipada baseada em impactos e medidas ambientais onde todas estes seres e entidades são usados para aumentar a exigência ambiental.
Claro que as comunidades podem até rejeitar um projecto; no entanto, como não têm poder de veto legal, não têm a última palavra – o Estado tem-na. Muitas vezes as comunidades indígenas dizem: «Discordamos do projecto porque pensamos que prejudica o nosso território. Mas como não somos nós que somos chamados a decidir isto, aceitamos o dinheiro para medidas de protecção».
GP: Como foi esse primeiro momento de contestação da extracção de lítio no Salar de Atacama? Porque se tornou o momento inicial de mobilização política e colectiva?
AB: Havia necessidade de renovar um contrato que a SQM tinha com o Estado, que se enredou numa série de arbitragens e julgamentos. Também não houve supervisão direta sobre a produção e venda de lítio e potassa. O organismos do Estado, a CORFO, alugou estas propriedades à SQM até 2030. Mas a CORFO poderia ter recuperado todas as suas propriedades no salar. Até então, a SQM pagava um aluguer ridículo de 15.000 dólares ou algo semelhante (para além de pequenos direitos de exploração e impostos sobre as exportações). O estado e SQM estavam a negociar um novo contrato que poderia beneficiar ambas as partes, com o qual o governo chileno receberia um extra de mil milhões de dólares por ano durante dez anos. Por outras palavras, o dobro do que todo o sector privado da mineração de cobre daria ao Estado no mesmo período.
Através do mediatismo destes processos, os atacameños (e outros habitantes de San Pedro) tornaram-se mais conscientes. E também por causa da poeira industrial no salar, que está a destruir as suas colheitas. Agora, a vasta extensão do Salar está coberta de poeira, e as pessoas aperceberam-se de que já quase não há flamingos. Houve uma consciência política crescente mobilizada por líderes tradicionais como Mirta Solis e muitos outros. Os jovens e os velhos, estavam todos juntos. E quando a SQM foi apresentar o seu projecto na Câmara Municipal, foram expulsos: não lhes foi permitido o diálogo.
A SQM vai reduzir a sua exploração da salmoura em 20%. E vai reduzir para metade até 2030. Mas, antes disso, puseram em linha todos os números, todos os dados, todos os antigos «segredos» da água. Está tudo online. Isto é muito mais do que (os reguladores do estado) poderiam ter forçado a SQM a fazer. Em parte a SQM está a fazer isto devido à pressão dos lobbies alemães, do sector ecologista, das empresas EV, e assim por diante. Alguns acreditam que é apenas devido a este tipo de pressão de mercado e política, mas, é também devido à pressão que os atacameños têm feito e ao desejo da empresa de obter licença social para operar.
O ativismo judicial é uma estrada cheia de perigos e incertezas. Por vezes, atrasa-se, como quando os casos ambientais são mal defendidos, e as decisões judiciais reduzem a amplitude dos litígios indígenas e diminuem os padrões dos direitos humanos – ou mesmo retrocedem. As comunidades indígenas uniram os seus recursos políticos e legais com algum sucesso ao longo dos anos, enquanto negociavam os seus direitos de licença social. Por sua vez, isto permitiu que algumas comunidades passassem para uma oposição mais expressiva e radical aos projectos mineiros. Este processo de aprendizagem não tem sido fácil, nem tem sido isento de turbulência política. Contudo, a tentativa e o erro têm sido professores extremamente produtivos, uma vez que as organizações atacameñas se têm tornado, ao longo das décadas, mais fortes e mais conscientes das suas dificuldades ambientais, de tal forma que, em certa medida e apesar do Estado, ganharam uma espécie de poder de veto social.
Texto de Godofredo Pereira
Ilustraçōes de Ana Farias
Artigo publicado no JornalMapa, edição #33, Fevereiro|Abril 2022.
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