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Lendo: Testemunhos do Capitalismo Verde[II]

Testemunhos do Capitalismo Verde[II]

Testemunhos do Capitalismo Verde[II]


Segunda parte da série Testemunhos do Capitalismo Verde.


No segundo testemunho da serie Testemunhos do Capitalismo Verde – que dá voz aos afetados pela mineração de lítio – mantemo-nos no salar de Atacama, no Chile. Afetadas por diferentes extrativismos, as comunidades indígenas de Tulor e Beter exigem ser consultadas sobre a mineração e o ‘desenvolvimento’ a decorrer nos seus territórios ancestrais.

Vivemos na escuridão
Temos olhos mas não vemos a natureza

Raul Chinchilla é agricultor e Vice-presidente da Comunidade Indígena de Tulor-Beter, em S. Pedro de Atacama, Chile. Conheci o D. Raul em 2018. No ano seguinte fiquei em sua casa durante uma semana, e foi nesse contexto que tive a oportunidade de gravar esta entrevista. Nessa altura passámos vários dias a caminhar pelos vastos territórios de Tulor e Beter, dois ayllus localizados na parte norte do Salar de Atacama. Historicamente, os impactos ambientais da mineração do lítio fizeram-se sentir a sul do salar, em áreas próximas às instalações das empresas Albemarle e SQM. Mas recentemente várias mineiras, tais como a Wealth Minerals e a LiCo Energy Metals, têm-se vindo a interessar pelos depósitos de lítio localizados na parte norte do salar, tendo obtido concessões de exploração nos territórios de Tulor e Beter. Para além dos já conhecidos impactos diretos da extração de lítio sobre o meio ambiente, a indústria mineira acarreta também impactos indiretos, na forma de urbanização de fraca qualidade criada para albergar trabalhadores temporários, o que afeta a qualidade dos solos e a sua capacidade de retenção de humidade, e levando também ao aumento do uso de água para habitação e restauração. A escassez de água é também resultado do crescimento desenfreado do turismo na região, que tem tido impactos muito negativos sobre o meio ambiente local. Mas perante a escolha entre emprego precário numa mina, ou agricultura de subsistência num deserto cada vez mais seco, muitos se viram para o turismo. Assim, afetadas por diferentes extrativismos, as gentes de Tulor e Beter decidiram constituir-se formalmente enquanto comunidades indígenas, não porque precisem de confirmação do Estado Chileno de que são de facto indígenas, mas tão simplesmente para poderem ter direito a serem consultadas sobre os processos de mineração e ‘desenvolvimento’ a decorrer nos seus territórios ancestrais.

GP: Fale-me um pouco sobre si e sobre a sua luta aqui no deserto do Atacama.

RC: O meu nome é Raul Chinchilla, um nativo desta terra do Atacama. Como Atacameños, temos uma cultura muito definida pelo território do deserto do Atacama, uma cultura que tem a sua singularidade. Dançamos a ‘cueca’, que é uma dança carnavalesca, com tambores e acordeões, parte de uma festa familiar, onde se cantam canções, comem-se uvas, onde tudo tem um significado. Talvez não consiga explicar muito bem, mas somos dessa tradição. Parte das nossas festas religiosas são as danças nativas como o El Torito, ou com o ‘grupo del negro’, ou os ‘catimbanos’, e outras, danças que são nativas daqui, não vistas em nenhum outro lugar.

A nossa vida, no deserto, é uma vida de grande sacrifício. Sou agricultor, os meus pais eram agricultores, e somos nativos de Tulor e Beter. Vim viver para a cidade de San Pedro de Atacama em 1993. Mas mantenho, como sempre mantive, os nossos terrenos de cultivo em Beter, vou lá todos os dias. Para poder sobreviver com a família, abri um negócio aqui na cidade. Mas a minha essência é a minha vida no campo, não a minha vida de comércio. E a minha essência vem dos meus avós: eles eram muito protetores da natureza. A natureza, para nós, nativos, é também uma pessoa. A natureza cuida de nós, e nós cuidamos dela, falamos por ela, e ela alimenta-nos. Dá-nos vida. A natureza são os nossos antepassados.

Os meus avós já estão mortos. Hoje em dia restam apenas alguns nativos, e isso traz-nos muita dor, muita tristeza. Os meus avós cuidaram dessa riqueza, que é a natureza, com as suas colheitas de milho, trigo, alfafa, gado, e foram muito cuidadosos. Nós, os desta geração, já não somos tão cuidadosos: destruímos aquilo que os nossos avós cuidaram durante gerações.

Raul_Chinchilla

Raul Chinchilla junto à sua plantação de milho, indicando como antigamente os cultivos cresciam mais. 2019.

GP: Pode descrever um pouco de que se trata essa destruição do ambiente da qual fala?

RC: Hoje, o impacto ambiental e a destruição são causados pela extração de lítio e pelo turismo. A cada passo destruímo-nos a nós próprios. Isto acontece porque vivemos na escuridão, temos olhos mas não vemos a natureza. E à natureza devemos muito, porque nos dá vida, alimenta-nos, é um todo. Não somos nada comparados com a natureza. E essa é a nossa realidade. Hoje em dia, aqui em San Pedro estamos a destruir cada vez mais, e não temos conseguido ter uma boa visão de como cuidar da nossa terra.

É por isso que nós, as gentes dos ayllus de Tulor e Beter, estamos muito preocupados. Estamos ameaçados pelo motivo do lucro, que destrói estes dois ayllus históricos. Dois ayllus que têm uma história muito antiga que deve ser respeitada, tanto por nós, como povo, como principalmente pelo Estado. Encontramo-nos em extinção, e vemos os nossos ayllus com problemas territoriais. Grande parte do nosso território está em concessão de empresas privadas, terras que são as nossas terras ancestrais. Queremos recuperar o nosso território, mas para isso precisamos de estudos para compreender e evidenciar o impacto das atividades que têm vindo a acontecer nas nossas terras.

GP: Foi por isso que iniciaram o processo para serem reconhecidos enquanto comunidade indígena?

RC: Decidimos constituir-nos enquanto comunidade indígena em 2018, por forma a poder compreender o que está a acontecer nos nossos territórios ancestrais e lutar por alterações. Somos pequenos e poucos no nosso ayllus. Mas queremos preservar o que os nossos avós preservaram. Queremos conservar todos os lugares de agricultura, lugares de pastagem, lagoas, pequenos vales, ruínas, vestígios arqueológicos, tudo o que faz parte do nosso território. Queremos conservar as nossas lagoas, a lagoa Tebinquiche, na parte norte do salar propriamente dito, que é um lugar protegido pela natureza; mas também as lagoas Mosquito, Baltinache e outras, que desde sempre serviram de pastagem para os animais. Eu em criança levava para lá os burros a pastar: são oásis.

Como todos os que cuidam do que é seu, nós o que queremos é conservar e preservar: é isso que nos interessa. Para nós, o lucro não é muito importante quando se trata da natureza. O lucro, o que faz é gerar destruição. Mas quando falamos de natureza, é a conservação e preservação da natureza. É por isso que para nós, como comunidade, é muito importante ter um modelo de dimensão territorial. É muito importante poder ter um modelo de desenvolvimento que seja sociocultural e histórico. Os avanços tecnológicos são importantes, mas têm de ser complementados com a vida cultural de um povo.

Hoje o lucro vem em primeiro lugar, e em segundo lugar há a natureza, e isso gera muita destruição,muita desordem. Esta terra converteu-se numa terra de ninguém. Todos querem ganhar dinheiro e explorar a natureza. Mas assim, provavelmente não vamos viver outros 100 anos. A natureza, como tudo o resto, está a esgotar-se. Hoje em dia, o Atacama é cada vez mais um deserto. A natureza está a morrer, os cultivos estão a secar, e este é o produto da falta de prevenção e de não termos tido cuidado com a exploração mineira, com a sobre-exploração do turismo, pois todos eles exploram a água em demasia, todos fazem o que querem.

No meu ayllu, em Beter, existe uma grande empresa chamada Falabella. Esta pertence a uma das famílias mais ricas do Chile que se estabeleceu lá, comprando-nos muitas terras. Eles fingem que são protetores da natureza, apresentam-se com um nome tradicional, Fundación Tata Mallku, para confundir os nativos, dizendo que estão a resgatar culturas. Mas na verdade não é assim. Como podem vir para este deserto, onde há pouca água, pouca natureza, pouca vida, vir com as suas enormes instalações, e achar que não vêm perturbar os balanços frágeis que aqui existem? Querem destruir tudo. Isto faz parte da realidade da nossa comunidade, onde existem ameaças de todos os lados.

Dry_Lagoons_Beter

Fotografia aérea das Lagoas de Baltinache, em Beter, que hoje em dia se encontram secas durante quase todo o ano. No horizonte, as instalações de processamento de lítio da companhia SQM. 2019.

GP: O que é que vocês acham que conseguem fazer?

RC: Eu, especialmente, como os meus companheiros, cuidamos da natureza, amamo-la muito, é uma vida, é parte… como eu dizia, a natureza é como um ser humano. E todos os dias a minha razão de viver é cuidar dela. Não se pode fazer negócios com a natureza. A natureza é vida. Nunca nos tirarão a natureza… quem nos alimentará depois? Para nós, nativos, o ser humanoé algo muito insignificante. Se amanhã a natureza se enfurecer, está tudo acabado. Nesta vida somos ambiciosos, lutamos, destruímos, mas falta-nos muita consciência, muito amor, por nós próprios, pela terra. Se nos amássemos mais, este seria um mundo muito melhor.

GP: Como funciona a comunidade indígena?

RC: Constituímo-nos enquanto comunidade indígena porque precisávamos de criar uma entidade que fosse reconhecida pela lei para poder contestar o que está a acontecer no nosso território. Mas sabemos que esta não é uma comunidade a sério. Antigamente, sim, vivíamos em comunidade. Tudo era partilhado: quando semeávamos todos os membros da comunidade iam juntos, semeávamos em comunidade, fazíamos a minga, para ajudar. Um dia para nós, outro dia era para os vizinhos, para ajudar. Um dia semeava e era ajudado, e no dia seguinte faria eu o mesmo por outra pessoa. Era a torna, sempre à vez. Era assim para semear e para qualquer outro trabalho. Quando semeávamos, quando a fruta era colhida, era também partilhada com os vizinhos. Isso era uma parte da gratidão pelos frutos que tínhamos. Eu colhia milho, trigo, e tudo era partilhado. Até os animais, galinhas, etc. Antigamente vivíamos numa comunidade muito organizada.

Ora esse sistema de vida já não existe hoje em dia. Hoje em dia, o que existe é uma comunidade, mas, claro, no papel, confirmada e instituída pelo Estado. E para quê? De certa forma, pode-se dizer que é para que as comunidades lutem, por lucro, por território. Ou seja, há comunidades, não há modelo de comunidade. Hoje tudo é comunidade, mas na sua maioria, comunidades de destruição. Mas o facto é que somos forçados a formalizar esta comunidade para poder sobreviver. Aqui em San Pedro, como já não temos avós sábios, a vida está a tornar-se cada vez mais complicada, para podermos manter as plantas, a sementeira… Não somos muito cuidadosos. Dizemos muitas vezes que queremos [cuidar da natureza], mas não queremos. Temos de querer, de ter respeito. É preciso querer, é preciso ter respeito. Isso acontece aqui e em todo o lado. Há muitas pessoas que falam muito bem, mas que destroem tudo, fazendo negócios com as empresas de extração de lítio, etc.

Por isso é que nós nos estabelecemos enquanto comunidade formal. Vimos que o nosso território estava a ser destruído, o que os meus avós tinham deixado, tudo estava a ser destruído. Por isso reunimo-nos, num grupo de pessoas, e dissemos, porque não nos organizamos como uma comunidade para defender o território? Foi por isso que nos conseguimos coordenar: pois era urgente. E iniciámos um processo para demonstrar o que estava a acontecer e os impactos ambientais neste território. Estes dois ayllus eram lugares onde havia muita sementeira, muito trigo. Nós estamos a tentar, com a nossa maneira de pensar, fazer as coisas de forma diferente. Mas construir ou proteger qualquer pequeno espaço verde requer muita perseverança, muito amor e muito afeto. Porque não há muita água, a água é escassa, por isso temos de ser engenhosos. As plantas são as pessoas que tenho de alimentar todos os dias. Quando não se tem os meios, tem-se de ter muito amor.


Raul Chinchilla entrevistado por  Godofredo Pereira


Artigo publicado no JornalMapa, edição #32, Outubro|Dezembro 2021.


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Jornal Mapa

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