
Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Férteis Periferias
O Periferias – Festival Internacional de Cinema de Marvão e Valência de Alcântara chega este ano, em Agosto, à sua 10ª edição. Produção colectiva dum evento cinematográfico ao ar livre, em aldeias e lugares históricos da fronteira luso-espanhola, tem por base um projecto de descentralização cultural dirigido prioritariamente às comunidades rurais. De natureza itinerante, o Periferias dá vida ao espaço público, escolhendo cenários inesperados como uma desactivada estação da CP, uma antiga alfândega, um lagar de azeite ou as ruínas duma cidade romana. A sua aposta centra-se no cinema documental e de autor, abrangendo direitos humanos, arte e meio ambiente.
Festival organizado de forma participativa e inclusiva, tendo em conta o carácter social, histórico e ambiental do seu contexto, constitui um elemento dinamizador das economias locais e um excelente embaixador da identidade sociocultural dum território transfronteiriço. Associa o cinema e as artes à participação cidadã e ao desenvolvimento rural, representando um novo canal de difusão da cultura em áreas rurais menos expostas aos circuitos formais de produção, exibição e distribuição de filmes. Falámos, em Marvão, com a sua criadora e directora, Paula Andrea Duque Giraldo, cidadã colombiana e do mundo que há mais de uma década, por amor, se fixou nesta região.
Como começou o Periferias? Foi um desejo pessoal?
Começou num almoço em Sevilha, em conversa com Mane Cisneros, directora do Festival de Cinema Africano de Tarifa-Tânger (FCATT), que admiro profundamente e que acompanha a minha vida pessoal e profissional há mais de vinte anos.
Estávamos em 2011 e eu preparava-me para uma grande mudança: sair de Sevilha, onde morava, para viver em Marvão e empreender uma nova existência criando uma família. Nunca tinha estado em Marvão, nem decidi mudar de vida por querer morar no campo ou desligar-me do mundo urbano. Aconteceu, a vida trouxe-me para aqui por amor, e amor foi o que recebi.
A falta de estruturas culturais no mundo rural e de acesso a programações independentes de qualidade levou-me a criar este festival, não só por desejo, mas também por necessidade. Oriunda do estudo das Humanidades e sendo a cultura uma construção social, comecei a geri-la identificando os problemas e necessidades da comunidade e do território onde passei a viver. Mas não tinha pensado que isto se iria converter numa das minhas grandes paixões.
Nunca fui cinéfila, mas aprendi a ser amante do cinema africano, graças ao meu vínculo com o FCATT durante mais de quinze anos. Gosto do bom cinema, mas sobretudo aprecio o cinema combativo, que informe e transforme a sociedade.
Quando lançaste o festival, que objectivo tinhas em mente? A temática central foi desde o início os direitos humanos?
Em 2013, quando lançámos a primeira edição, eu e o José Conde, o meu companheiro [admirável músico, natural de Portalegre], não pensámos que íamos fazer um festival de cinema que perdurasse. Não partimos dum projecto previamente modelado, mas da nossa situação, procurando identificar o potencial do que estávamos a fazer e como desenvolvê-lo. Foi um processo de relacionamento com a comunidade territorial.
O nosso propósito era simples: partilhar uma selecção de filmes extraordinários, aproveitando o fundo fílmico que tínhamos do FCATT, com o qual colaborava havia mais de doze anos. Começámos com uma forte programação de cinema africano de língua portuguesa e suas diásporas, nas pequenas aldeias do concelho de Marvão, com obras tão relevantes como Virgem Margarida, de Licínio Azevedo (Angola-Moçambique), Terra Sonâmbula, de Teresa Prata (Moçambique-Portugal) ou Moro no Brasil, de Mika Kaurismäski (diáspora africana do Brasil). Começámos assim a exibir obras com uma componente cultural e social muito marcante, que foi definindo a linha programática do festival.
Os objectivos foram-se descobrindo conforme íamos conhecendo o território transfronteiriço, e descobrindo, sobretudo, como a linha invisível duma fronteira física e imaginária, como é a da raia entre Portugal e Espanha, separava duas culturas.
os objectivos foram-se descobrindo conforme íamos conhecendo o território transfronteiriço, e descobrindo, sobretudo, como a linha invisível duma fronteira física e imaginária.
Os preços dos bilhetes são muito acessíveis e por vezes as entradas são grátis. Como consegue o festival financiar-se?
Os preços são acessíveis para a programação no seu conjunto; não apenas para ver um filme, mas também para desfrutar dum concerto ou duma actividade destinada a conhecer melhor o património natural da região. Partimos do princípio de que o direito à cultura deve ser universal e gratuito; ter bilhetes pagos ajuda-nos a melhorar os conteúdos e a reforçar a estrutura organizativa.
O festival conta com uma rede de patrocínios, em Portugal e Espanha, que se têm consolidado com o tempo, os quais vêem no Periferias um contributo para o estreitamento de laços entre o Alentejo e a Estremadura espanhola. Mas este financiamento é básico e escasso, tendo em conta tudo o que fazemos ao longo de um ano.
Nesta região, quando começaste, o hábito popular de ir ao cinema já devia ser quase inexistente, se é que existia. Como foi a recepção inicial, nos primeiros anos?
Creio que uma proposta como o Periferias marcou um antes e um depois na vida cultural dos marvanenses, porque não havia aqui nada no sentido de descentralizar a cultura, mesmo dentro do próprio município. Criando uma estrutura de cinema itinerante, não só propúnhamos uma programação cuidada e para todos os públicos, como levávamos outras pessoas a aproximarem-se das aldeias. Conhecemos pessoas que nunca tinham ido a um cinema.
Nos primeiros anos, sem deixar de trazer obras internacionalmente premiadas, centrámo-nos na parte mais etnográfica e fizemos para a nossa programação uma extensa busca de cinema documental, desejando recuperar todo o material possível sobre o património cultural alentejano, as suas gentes, saberes e tradições, levando ao mesmo tempo os forasteiros a compreender esta ampla geografia. Queríamos que o cinema nos falasse da memória histórica dos seus habitantes e que fizesse uma ponte com as novas gerações que aqui chegavam, como era o meu caso. A aceitação foi formidável: o Periferias passou a ser um encontro iniludível.
Outro factor determinante foi a reivindicação do espaço público, porque não só fazíamos projecções ao ar livre, como começámos também a dar vida ao património natural e arquitectónico da região, incluindo espaços públicos fechados ou esquecidos durante décadas, como a emblemática Alfândega e sítios como La Fontañera, situada no percurso histórico do contrabando e da resistência ao fascismo e onde, nas projecções, o ecrã fica em Espanha e a plateia em Portugal.
Começámos igualmente a pôr em ligação o tecido associativo de ambos os países, para levar a cabo iniciativas em conjunto, como foi o caso da Cruz Vermelha, de associações ambientalistas ou de pessoas com mobilidade reduzida, que nunca se tinham conhecido ou não tinham tido oportunidade de saber como se faziam as coisas no país vizinho. Dessas experiências resultaram projectos conjuntos.
Como passou o Festival de Cinema de Marvão a ser também de Valência de Alcântara?
Logo no seu terceiro ano, o Periferias passou a ser também da Estremadura espanhola. Não só porque as pessoas que vivem na fronteira entendem os dois países como um território, mas também porque não fazia sentido desaproveitar esta potencialidade, estando o país vizinho a 20 km. A participação espanhola foi iminente, porque há ali uma cultura da rua e da vida social fora de casa que suscita um acesso mais activo a conteúdos culturais, facilitando-nos a criação de públicos mais diversos. Além das povoações próximas de Valência, o Periferias acolhe pessoas vindas de Madrid, Sevilha, Badajoz, Cáceres.
Por outro lado, o apoio da Comunidade Autónoma da Estremadura foi incisivo para a consolidação do festival, que passou a ser reconhecido nacionalmente pelo Ministério da Cultura espanhol e se tornou uma referência importante no sector cultural estremenho, posicionando-se entre os melhores festivais da região. Um governo descentralizado como este permitiu uma comunicação mais horizontal, directa e activa entre as instituições e a estrutura cultural, tornando possível, com o tempo, dar continuidade e estabilidade ao nosso festival.
Da parte portuguesa contamos com o apoio incondicional do município de Marvão, que desde o início apostou neste projecto e constitui a sua base fundamental, e também com o valioso apoio de Cultura do Alentejo e dos municípios aderentes (Arronches, Campo Maior e também aldeias transfronteiriças).
Mas tenho de confessar que trabalhar em prol da cultura em Portugal não é fácil. Não se valorizam devidamente os projectos culturais independentes e ainda menos os que se realizam nos meios rurais; vemo-nos perante muita precariedade, a cultura é encarada como algo de meramente espectacular e momentâneo.
Julgo ser urgente reflectir sobre a centralização das práticas culturais nos núcleos urbanos. Há espaços que têm sentido ali, mas o mundo rural não deve passar para segundo plano. No nosso caso, nem sequer podemos candidatar-nos a projectos europeus como o Europa Criativa, porque as nossas características não se encaixam em coisas concebidas para grandes massas ou estruturas que permitem a contratação de colaboradores durante todo o ano.
Precisamos de uma «Europa Criativa» mais próxima do mundo rural, que conheça as nossas necessidades e trabalhe com as pessoas que habitam no território. São também necessárias políticas transversais que saibam aproveitar culturalmente o potencial existente na ruralidade. É importante dizer que as instituições públicas não podem esquecer as necessidades das pessoas que trabalham neste sector, amiúde com rendimentos paupérrimos que as impedem de garantir a sua actividade.
Um festival como o Periferias exige muita preparação. Como se processa isso?
Começámos com uma pequena estrutura de amigos, de que faz parte, desde o início, o Carlos Baptista. Presentemente, temos duas associações culturais, uma em Portugal (Periferias) e outra em Espanha (Gato Pardo). Contamos com uma equipa de 18 pessoas, que abarcam a pré-produção, produção e pós-produção do festival ao longo de todo o ano, sem deixar de contar com o apoio das câmaras municipais e da população local. A nossa equipa é a mesma desde há dez anos, embora tenham colaborado muitas pessoas.
E a internacionalidade do festival, que começa logo na sua programação?
Esta internacionalidade é profundamente raiana, com um fundo e uma mensagem sociopolítica muito fortes. Encaro o Periferias como uma estrutura permeável e viva, onde se habita o comum e onde há um imaginário de fronteira partilhado . Onde desenvolvemos um vínculo de pertença e participação cidadã colectiva.
Como tem sido a relação do Periferias com os e as cineastas seleccionados?
A melhor possível. De início não dispúnhamos de meios para os convidar; só para pagar os direitos dos filmes e fazer com que eles chegassem às pessoas. Mas muitos vieram por conta própria, o que sempre nos alegrou. Têm passado pelo nosso festival cineastas tão especiais como Diana Gonçalves, Sérgio Tréfaut, João Salaviza, Nick Willi (filho de Paula Rego), Mariana Gaivão, Victor Hugo Costa, Alejandro Gonzales Salgado. A Agnès Varda desejou muito vir, mas infelizmente a falta de saúde já não lho permitiu.
O Periferias foi pensado para decorrer em Agosto, ou este mês foi escolhido para permitir as suas diversas particularidades?
São diversas, de facto, as nossas particularidades, porque nos tornámos uma plataforma cultural onde estamos conscientes da inter-relação do ecossistema social, ambiental e político em que habitamos e da importância do comunitário.
O festival tinha de ser em Agosto porque andamos com toda a estrutura às costas, transportada numa furgoneta, e, claro, tinha de estar bom tempo… Também porque era o período de férias de muitos dos integrantes da nossa equipa luso-espanhola, e até de María Orellana e Manolo Ruiz, alma do festival, que vêm de Cádis, todos os anos, e cujo empenhamento tem sido uma das forças para nos mantermos.
Paula Duque entrevistada por Joëlle Ghazarian e Júlio Henriques
Artigo publicado no JornalMapa, edição #34, Maio|Julho 2022.
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