shop-cart

Lendo: Lições da Síria

Lições da Síria

Lições da Síria


Exilados sírios falam sobre como a sua experiência pode inspirar a resistência à invasão.

Entre a unanimidade ideológica dos grandes meios de comunicação e as vozes que transmitem sem escrúpulos a propaganda do Kremlin, pode ser difícil saber a quem dar ouvidos.

Em vez de especialistas em geopolítica, devemos ouvir aqueles que têm sofrido sob o governo de Putin, na Rússia e noutros lugares, ao longo de vinte anos. Convidamos-te a preferir as vozes e as organizações que, dentro desse contexto, defendem os princípios da democracia directa, do feminismo e do igualitarismo.

É certamente desejável compreender os interesses económicos, diplomáticos e militares das grandes potências; ainda assim, contentarmo-nos com um enquadramento geopolítico abstracto da situação pode deixar-nos com uma compreensão abstracta e desligada do terreno. Essa forma de compreensão tende a ocultar as protagonistas comuns do conflito.

Mesmo que não invadam directamente a Ucrânia, não sejamos ingénuos em relação à NATO e aos países ocidentais. Devemos recusar-nos a apresentá-los como os defensores do «mundo livre». Lembre-se: o Ocidente construiu o seu poder sobre o colonialismo, o imperialismo, a opressão e a pilhagem da riqueza de centenas de povos por todo o mundo – e continua todos estes processos nos dias de hoje.

«Campismo» é a palavra que usamos para descrever uma doutrina de outros tempos. Durante a Guerra Fria, os adeptos deste dogma sustentavam que o mais importante era apoiar a URSS, a todo o custo, contra os estados capitalistas e imperialistas. Esta doutrina ainda persiste na facção da esquerda radical que apoia a Rússia de Putin na invasão da Ucrânia ou que relativiza a guerra em curso. Deixemos que os «campistas» usem a palavra que quiserem para descrevê-la, se «imperialismo» lhes parece inadequado. Mas nunca aceitaremos qualquer desculpa para infligir violência e dominação sobre populações em nome de uma precisão pseudo-teórica.

Pior ainda, tal posição leva essa «esquerda» a reproduzir a propaganda desses regimes a ponto de negar atrocidades bem documentadas. Falam de «golpe de estado» quando descrevem a revolta de Maidan ou negam os crimes de guerra perpetrados pelo exército russo na Síria. Essa esquerda chegou ao ponto de negar o uso de gás sarin pelo regime de Assad.

Na Ucrânia, a identidade do agressor é conhecida por todos. Se a ofensiva de Putin é, de certa forma, uma resposta à pressão da NATO, ela é sobretudo a continuação de uma ofensiva imperial e contra-revolucionária. Depois de invadir a Crimeia, depois de ter ajudado a esmagar as revoltas na Síria (2015-2022), Bielorrússia (2020) e Cazaquistão (2022), Vladimir Putin já não tolera o actual clima de protestos – encarnado pelo derrube do presidente pró-Rússia na revolta Maidan – dentro dos países sob sua influência. Deseja esmagar qualquer desejo emancipatório que possa enfraquecer o seu poder.

Se entendemos e nos juntamos ao apelo para acabar com a guerra, insistimos que devemos fazê-lo sem qualquer ambiguidade quanto à identidade do agressor. Nem na Ucrânia, nem na Síria, nem em qualquer outro lugar do mundo, as pessoas comuns podem ser culpadas por empunharem armas para tentar defender as suas próprias vidas e as das suas famílias.

Nem na Ucrânia, nem na Síria, nem em qualquer outro lugar do mundo, as pessoas comuns podem ser culpadas por empunharem armas para tentar defender as suas próprias vidas e as das suas famílias.

De um modo mais geral, aconselhamos as pessoas que não sabem o que é uma ditadura (mesmo que os países ocidentais se estejam a tornar mais abertamente autoritários) ou o que é ser bombardeado a absterem-se de dizer aos ucranianos para não pedirem ajuda ao Ocidente — como alguns disseram aos sírios ou a Hong Kong — ou para não desejarem uma democracia liberal ou representativa como sistema político mínimo. Muitas dessas pessoas já estão cientes das imperfeições desses sistemas políticos — mas a sua prioridade não é manter uma posição política impecável, mas sim sobreviver aos bombardeamentos do dia seguinte, ou tentar não acabar num país em que uma palavra descuidada pode condená-las a vinte anos na prisão. Insistir neste tipo de discurso purista demonstra a determinação de impor uma análise teórica num contexto que não é o nosso.

Na Ucrânia, nacionalistas ucranianos, incluindo fascistas, desempenharam um papel importante nos protestos de Maidan e na guerra que se seguiu contra a Rússia. Além disso, como aconteceu com o Batalhão Azov, beneficiaram dessa experiência e tornaram-se parte legítima do exército regular da Ucrânia. No entanto, tal não significa que a maioria da sociedade ucraniana seja ultra-nacionalista ou fascista. A extrema-direita obteve apenas 4% dos votos nas últimas eleições; o presidente ucraniano, judeu e de língua russa, foi eleito com 73%.

Defender a resistência popular (tanto na Ucrânia como na Rússia) contra a invasão russa também não deve significar ser ingénuo em relação ao regime político que emergiu de Maidan. Não se pode dizer que a queda de Yanukovych tenha resultado numa expansão real da democracia directa ou no desenvolvimento da sociedade igualitária que desejamos para a Síria, para a Rússia, para França e para todo o mundo.

Tal como as revoluções árabes, os Coletes Amarelos e os Maidan provaram que as revoltas do século XXI não serão ideologicamente «puras». Embora entendamos que é mais confortável e estimulante identificarmo-nos com actores poderosos (e vitoriosos), não devemos trair os nossos princípios fundamentais. Convidamos a esquerda radical a tirar os seus velhos óculos conceptuais para confrontar as suas posições teóricas com a realidade. Essas posições devem ser ajustadas de acordo com a realidade, e não o contrário.

É por estas razões que, a respeito da Ucrânia, pedimos que as pessoas dêem prioridade às iniciativas de apoio que vêm da base: as iniciativas de auto-defesa e de auto-organização que florescem actualmente. Podemos descobrir que, muitas vezes, as pessoas que se organizam defendem, de facto, concepções radicais de democracia e de justiça social – mesmo que não se considerem «esquerdistas» ou «progressistas».

Embora nos oponhamos radicalmente a todos os imperialismos e a todas as formas modernas de fascismo, acreditamos que não podemos limitar-nos apenas a posturas anti-imperialistas ou anti-fascistas. Mesmo que sirvam para explicar muitos contextos, também correm o risco de limitar a luta revolucionária a uma visão negativa, reduzindo-a à reacção, à resistência permanente, sem caminho a seguir.

Acreditamos que continua a ser essencial fazer uma proposta positiva e construtiva, como o internacionalismo. Tal significa vincular revoltas e lutas pela igualdade em todo o mundo.

 


O texto “Dez Lições da Síria”, dos colectivos The Syrian Canteen of Montreuil e L’équipe des Peuples Veulente, originalmente publicado em CrimethInc.com e reproduzido no site do Jornal MAPA, surge aqui editado na forma de excertos seleccionados.

Fotografia [em destaque] de George Ourfalian/AFP. Legenda: “Olhar dos retratos de Putin e Assad à medida que soldados armados patrulham as ruínas da Síria.”


Artigo publicado no JornalMapa, edição #34, Maio|Julho 2022.


Written by

Jornal Mapa

Show Conversation (0)

Bookmark this article

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

0 People Replies to “Lições da Síria”