
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Felizmente continua a haver luar (Maio/Julho 2022)
«Uma amarra ao mar outra à terra», assim se exprimia um cristão-novo algarvio em 1558 para resumir a maneira como as gentes da sua comunidade faziam para escapar à Inquisição. Num livro recentemente publicado e que tem por título esta frase, Carla Vieira, jovem historiadora que se vem focalizando nos problemas dos cristãos-novos, estuda um século da vida desta comunidade algariva, entre meados do século XVI e meados do século XVII. Durante este período, a comunidade dos cristãos-novos do Algarve — «os da mesma nação» como se chamavam a si próprios — sofreu o embate de três terríveis vagas de repressão da parte da Inquisição. As circunstâncias históricas em que vivia a região eram de uma forte crise política e económica. «As relações internacionais e os confrontos políticos do Império reflectiam-se no sul do reino» (p. 32). O Algarve estava geograficamente próximo do norte de África e sofria directamente as dificuldades do reino lusitano na região e o abandono das praças marroquinas. Um clima de pavor reinava no litoral da província, a costa era continuamente vítima da pirataria. Acrescente-se a miséria, a fome e a peste, o aumento constante dos impostos necessários para pagar os gastos militares, e as condições estavam criadas para a eclosão de uma revolta popular que iria revestir-se de aspectos messiânicos e irracionais contra a população judaica e dos cristãos-novos, os bodes expiatórios tradicionais. A repressão da Inquisição permitiu canalizar, ou utilizar, a revolta popular.
As consequências desta intervenção marcaram profundamente a sociedade algarvia e em particular os centros urbanos mais importantes da época, Tavira, Vila Nova de Portimão, Lagos e Faro. Os cristãos-novos eram uma população maioritariamente urbana, de comerciantes e artesãos, por vezes também ligada à terra e à actividade agrícola que integravam na sua actividade de comerciantes, exportadores de produtos agrícolas e, sobretudo, do mar. Assim Lagos, no século XVI, constituía «o maior centro exportador mundial de conserva de atum» (p. 207). Estas cidades algarvias eram, para a época, portos bastante cosmopolitas, frequentados por comerciantes europeus e orientais de origens diversas. A repressão da Inquisição processou-se de forma curiosa; de uma certa forma, ela veio de fora, do exterior da sociedade local. Os seus agentes, autênticos funcionários policiais, chegavam de Évora e de Lisboa com o fim de instruir os processos, prender as pessoas e levá-las para Évora ou Lisboa, onde os tribunais da Inquisição exerciam as suas sinistras tarefas. Segundo Carla Vieira, uma das principais consequências, senão a mais decisiva, desta repressão foi que «a Inquisição entrava em comunidades emergentes e secava-as. Ao actuar sobre um grupo com tamanho peso na economia urbana e ao provocar a sua desestruturação, a repressão inquisitorial hipotecava o desenvolvimento dos núcleos citadinos. À vaga de prisões seguia-se uma fase de decadência» (p. 320).
De facto, uma das formas de resistência foi a emigração, esvaziando os portos dos membros mais activos da comunidade comerciante, fazendo morrer a actividade. Para outros cristãos-novos houve a tentativa, muitas vezes mal sucedida, de se misturarem com os cristãos-velhos através de laços matrimoniais, ou de se retirarem para as actividades rurais onde melhor podiam dissimular as suas práticas religiosas de um judaísmo híbrido, mesclado de práticas cristãs. A partir de certa altura «A limitação dos direitos de um individuo deixava de ser determinada pela religião professada, mas pela sua origem familiar» (p. 292). A presença do «sangue infecto» caracterizava a comunidade judaica aos olhos dos cristãos, e ser tratado de «Judeu, mais do que uma ofensa, era uma ameaça» (p. 283).
Tudo assenta na participação da vítima na sua própria criminalização e condenação. Complementar, no funcionamento da máquina da Inquisição, é a importância dada à delação.
O texto de Carla Vieira nem sempre é de fácil e agradável leitura, como é infelizmente, em geral, o caso dos trabalhos universitários, que mastigam fontes, bibliografias, referências como passagem obrigatória. Ficam soterradas as ideias e o debate. Embora o trabalho diga respeito a uma região particular do país, é evidente que Uma amarra ao mar e outra à terra, Cristãos-novos no Algarve (1558-1650) aborda temas essenciais para quem procura compreender os fundamentos da sociedade de hoje em geral, e não só a portuguesa, e as marcas que o passado lhe deixou.
A este propósito, dois aspectos do funcionamento do terror da Inquisição me parecem guardar alguma actualidade. O aparelho da Inquisição conhecia mal o Judaísmo, manifestação da ignorância dos seus funcionários, mas também resultado da repressão feita contra a circulação dos textos desta corrente religiosa (p. 261). Assim, «o deficitário conhecimento que os inquisidores tinham sobre o Judaísmo surgia sintetizado nos éditos de fé, lidos e escutados pelos cristãos-novos que, dessa forma, tomavam consciência do que eles indagavam, do que esperavam ouvir. Com o avançar da perseguição inquisitorial, passaram a saber o que era e como havia de ser feita uma “boa confissão”. É isso o que exprime o conteúdo das suas confissões, cada vez mais padronizado, cada vez mais repetitivo. Confissões verosímeis, não necessariamente verdadeiras» (p. 314). A auto-acusação favorecida pela Inquisição foi depois um modelo utilizado nos processos de diversos regimes totalitários. Dos quais os processos de Moscovo, entre Março 1936 e Agosto 1938, ficaram como caso exemplar. Tudo assenta na participação da vítima na sua própria criminalização e condenação. Complementar, no funcionamento da máquina da Inquisição, é a importância dada à delação. Ressalta, da leitura dos testemunhos que Carla Vieira nos dá a conhecer, que a delação no interior da própria comunidade, nas próprias famílias, atinge proporções assustadoras e que muitos dos processos eram fundados na delação no interior da colectividade dos cristãos-novos. E a autora sublinha que muitas vezes se chegou ao ponto de serem os cristãos-velhos a defender os cristãos-novos perante os funcionários da Inquisição… Tudo isto fazendo reinar na sociedade da época um grande clima de terror.
Cinco séculos depois, é evidentemente difícil estabelecer, especular, até que ponto este clima, estas práticas de terror, marcaram a sociedade portuguesa. A qual, desde a época da Inquisição, atravessou uma sucessão de períodos de poder absolutista e autoritário, de violência social, com raras, ainda que fulgurantes, interrupções revolucionárias. Sabemos que o autoritarismo tem como corolário o espírito de submissão, o qual tem encontrado um terreno fértil no país dos doces costumes. Com um belo apogeu no funcionamento do regime salazarista, o qual soube retomar para o seu funcionamento as práticas ancestrais do Santo-Ofício, entre as quais a delação e o clima de medo social que lhe está associado. Ainda hoje, seria arriscado pretender que a natureza autoritária das forças políticas dominantes da democracia parlamentar corrupta, a arrogância e a impunidade dos DDT, são totalmente estranhas a este passado. Um passado violento que continua a pesar nas mentalidades, a manifestar-se nos comportamentos submissos do «bom povo português».
Ilustração [em destaque] de José Smith Vargas
Artigo publicado no JornalMapa, edição #34, Maio|Julho 2022.
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