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Lendo: Submissão e resistências num vale de suor e lágrimas – Crónica de um dia de trabalho com portugueses na Suíça

Submissão e resistências num vale de suor e lágrimas - Crónica de um dia de trabalho com portugueses na Suíça

Submissão e resistências num vale de suor e lágrimas – Crónica de um dia de trabalho com portugueses na Suíça


O mito da Suíça como país onde se consegue amassar fortunas esconde os inúmeros abusos e dificuldades aos quais se sujeita a mão de obra imigrante. Muitos entram para trabalhar na vinha e acabam por ficar, quase sempre alimentando a esperança de regressar ao seu país, deixando para trás uma sociedade que faz tudo para manter o estrangeiro à margem.

Um quarto para as cinco. Apago o despertador e dou uma vista de olhos às previsões meteorológicas. Doem-me os joelhos, levanto-me com dificuldade. Cambaleio até à cozinha e repito mecanicamente os gestos quotidianos que me permitem alimentar-me de forma minimamente decente. São dez horas de trabalho a 500-600 metros de altitude, no vertente sul do Valais suíço. Contando o transporte e a hora de almoço, são 12 horas por dias que passamos fora de casa, expostos às mudanças climáticas constantes provocadas pelos cimos de 3000 metros que nos rodeiam. O contexto alpino será sem dúvida aquilo que me fez apaixonar-me por este lugar insólito. A Suíça é um país estranho, que se considera o centro do mundo e que não gosta de ninguém. Não gostam dos franceses, não gostam dos alemães, não gostam dos italianos.

São conhecidos pelo seu chocolate, os seus relógios, o segredo bancário e a sua suposta neutralidade diplomática. Menos conhecido é o seu empenho em produzir vinhos que serão quase exclusivamente consumidos no mercado interno. Existe uma tradição importante de produção vitícola no cantão do Valais, maioritariamente de fala francesa. De facto, os cerca de 450 quilómetros de muros milenários que sustêm mais de 10.000 terraços em Lavaux foram incluídos no património mundial da UNESCO. Hoje em dia, a mão de obra agrícola é quase exclusivamente de origem estrangeira, deixando de fora os trabalhos qualificados (secretariado, contabilidade, enólogos, técnicos vinicultores, etc.). A vinha é uma porta de entrada para a comunidade lusófona, que nem sempre consegue aceder a trabalhos mais qualificados e melhor remunerados.

Seis da manhã. Ainda está de noite, mas ao chegar à garagem, o movimento dos veículos e a pressa dos chefes cria alvoroço. Saudações fugazes entre colegas, que se juntam por grupos linguísticos. Na empresa em questão, há duas grandes famílias: a Latina e a Eslava. O único representante da primeira é o grupo português, que é minoritário na empresa. A maioria de colegas são da Polónia e da Macedónia, os chefes da Eslováquia. E, de vez em quando, encontra-se algum húngaro e romeno, ou até mesmo algum espanhol despistado. Repartido o trabalho e formadas as equipas, amontoamo-nos nos veículos da empresa, que arrancam sem demora para a vinha. Não se recebe enquanto não se começa o trabalho, pelo que quem pode tenta dormitar mais um instantinho.

Uma parcela especialmente empinada.

Nas vinhas suíças, as mulheres não conduzem. O transporte ilustra a proibição que lhes impede o acesso a qualquer cargo de responsabilidade. Muitas delas conhecem bem tanto os caminhos que levam às parcelas como o trabalho que é para fazer em função da altura do ano ou do estado das videiras. Mas não, nunca são consideradas como interlocutoras, nem sequer se lhes permite conduzir. Nunca. Se for preciso, chegam a pôr ao volante rapazinhos imberbes e desajeitados para o ofício. Ao terem acesso às máquinas, os homens vão acumulando experiência e conhecimentos que os tornam indispensáveis. Isto permite-lhes negociações salariais, autonomia durante o dia, e poder sobre os seus colegas. A bazófia dos homens só pode ser comparada à discrição das mulheres, mantidas em posição de inferioridade.

Seis e meia, o sol levanta-se ao longe, detrás de montanhas cujo relevo é de uma beleza que desafia o entendimento. A esta hora não são apenas as dificuldades linguísticas que tornam a comunicação penosa. Começa-se o dia cansado, sentindo as dores de costas da véspera e o desgaste das 60 horas de trabalho semanais. Por afinidade ou pressão dos chefes, vai-se colocando cada trabalhadora numa fila por fazer. Choveu durante a noite e a vinha está encharcada. A neve no cimo das montanhas ainda não derreteu, algumas colegas levam luvas de limpeza para evitar ficar com as mãos geladas. Muitos levam calçado inadequado, demasiado ligeiro, frequentemente desgastado. Pés encharcados, roupa molhada, tosse rouca. Não convém ficar doente, quem fica em casa não recebe e continua a ter gastos.

Nas vinhas suíças, as mulheres não conduzem. O transporte ilustra a proibição que lhes impede o acesso a qualquer cargo de responsabilidade.

Os testes covid são caros, e dado que ninguém os faz, ninguém anda doente. É bem-sabido que na Suíça tudo se paga. É obrigatório pagar um seguro privado para trabalhar. A empresa oferece um pacote básico a quem vem de fora. Dizem que fica mais barato porque têm um acordo colectivo. Explicam-me que, na verdade, fica-lhes mais barato porque para cerca de 30 trabalhadores só se dá o nome de 20, e se houver um acidente muda-se o nome de quem está incluído. Ganha o patrão e ganha o empregado. Quem vive na Suíça paga o dobro para ter o seu próprio seguro, e o patrão perde a oportunidade de ficar com parte do salário. O mesmo acontece com o alojamento. Os grandes proprietários diversificam o seu negócio e investem em bens imobiliários. Os preços são imbatíveis, as condições, precárias. Partilham-se quartos, não se tem contrato de aluguer.

A primeira pausa demora em chegar. Já trabalhámos quatro horas a fio, o corpo pede descanso. Queriam acabar a parcela, mas por volta das onze, dão-se conta de que ainda falta muito. Quinze minutos para voltar para a carrinha, pôr qualquer coisa no bucho, fumar uma cigarrada e já está na hora. Hoje não chove. A água que cai do céu e que se vai infiltrando por baixo dos impermeáveis não é suficiente para que nos enviem para casa. O frio e a humidade despertam as dores dos mais velhos, que as escondem o melhor possível. Nota-se o sofrimento imenso acumulado por aqueles corpos maltratados pelo trabalho. Quem já não pode trabalhar é despedido e fica sem nada. São precisos dois salários para manter filhos, pelo que os casais com criançada vivem constantemente separados deles. Também quem vem de fora está longe da família. Tanto os polacos como os portugueses estão a cerca de 2000 quilómetros de casa.

Um chefe suíço disse-me uma vez que no país dele há uma cultura do trabalho. Temos sorte de obter os salários que nos pagam, e olha que o patrão não está obrigado por lei a dar-nos uma pausa à tarde. Imaginas? São 15 minutos durante os quais não trabalhas e ainda recebes. Foi o único suíço que encontrei na vinha. A pressão produtivista empurra a reduzir a complexidade das tarefas, a simplificar o motivo da nossa presença. Trata-se simplesmente de limpar o pé para que o glifosato não mate a parreira, arrancar as duas folhinhas de cada talo, pôr algum que esteja saído dentro do arame, mas não percas muito tempo com isso. Heresia, dirão os antigos. Obter boa uva requer realmente muito trabalho e cuidado, um ofício que se aprende com os colegas, que partilham o seu conhecimento sem pedir nada em troca.

Tudo começa com a poda, em janeiro. Deixa-se uma boa reserva para o ano seguinte, torce-se o talo que se guarda e cortam-se os restantes. Com a chegada da primavera, começa-se a selecionar os cerca de sete rebentos que vão dar fruto este ano, e que crescem sobre aquele que se deixou dum ano para o outro. Procura-se que estejam bem distribuídos, que sejam vigorosos e que tenham feito muita flor. Lá para finais de Abril, o crescimento acelera e chegam os reforços, que se juntam à equipa que fica o ano todo. Já em Junho, os talos escolhidos começam a endurecer e enfiam-se dentro dos arames, que lhes dão suporte e mantêm-nos direitos. O verão instala-se e os cachos enchem-se de açúcar, até que chega o momento de cortá-los. Quem vem de fora fica cerca de quatro meses no total, trabalhando por volta de 250 horas mensais.

Os terraços permitiram aproveitar a totalidade do vertente Sul do vale.

Já é uma e meia. E lá vêm eles outra vez com a lenga-lenga de acabar a parcela antes da pausa. Na Suíça há muito pouca margem para queixas e reivindicações. Os contratos são de três meses com três meses de prova. O empregador também pode pôr fim ao contrato se o volume de trabalho for reduzido. Dado que não se reconhecem horas extra, o contrato só garante 45 horas de trabalho semanais. Se bem que esteja proibido trabalhar em feriados, as autoridades cantonais concedem autorizações especiais para trabalhar sem máquinas. Se nos pudessem fazer trabalhar ao domingo também o fariam. A hora de almoço não é paga, e quando convém é reduzida a meia hora. Em dias de chuva, acaba por ser conveniente para não apanhar frio. Reconforto-me com essa ideia, mas depois de sete horas de trabalho o corpo já não quer mais. As tardes são sempre longas.

O ritmo marcado pelos chefes não abranda. O sol voltou, e de ter frio passamos a suar como porcos. Penduram-se casacos nos piquetes, trocam-se galochas por sapatos, a roupa aquece mas fica molhada. O ar está pesado, carregado de humidade. É complicado mudar de roupa ou beber água. Quem se atrasa fica para trás. Quem fica para trás vai ter problemas com o chefe. Dores de cabeça, dores articulares, cansaço. Mas podia ser pior. O Valais suíço chega a tornar-se num forno no pico do verão. Poucos usam protector solar, e apanham escaldões impressionantes. Estamos na vertente Sul, sem qualquer outra sombra que as videiras das quais cuidamos. Trabalhamos sempre virados para Oeste, com o cimo à nossa direita. Desta forma, não arrancamos as folhas que protegem as vides do sol da tarde. Trabalha-se sempre em desequilíbrio, com a perna esquerda em baixo.

Esta vez fazemos a pausa demasiado cedo. Antes fizeram-nos trabalhar esfomeados, agora convém-lhes parar antes. A parcela é grande e perde-se tempo ao voltar para a carrinha para a pausa. Esta é especialmente empinada, os pés escorregam, é difícil encontrar bons apoios. Juntaram a equipa portuguesa com uma das equipas polacas. Assim os colegas controlam-se uns aos outros. Não podemos trabalhar muito rápido, o que indicaria que não chegamos cansados ao fim do dia. Mas a pressão nunca decai, e se andarmos a engonhar ficam a pensar que trabalhamos sempre assim. O racismo suíço, que justifica qualquer abuso, fica encoberto por aquele que opõe portugueses e polacos. Os polacos são sujos, animalescos, rebaixam-se diante do patrão, são rápidos mas trabalham mal. Os portugueses são meio muçulmanos, idiotas que maltratam as suas mulheres e que se acham os maiores.

Até que enfim. Não precisam de o dizer duas vezes. Toda a gente se mete na sua carrinha, e conduzem-nos de volta à garagem. Chegamos às 17:30. Afinal fizeram-nos trabalhar mais meia hora do que previsto. Era suposto sairmos mais cedo por termos tido só meia hora de almoço, mas não foi assim. Encontro-me tão cansado que me custa arrancar. Só quero mesmo voltar para casa, comer qualquer coisa enquanto preparo o dia de amanhã e ir para a cama. Justamente por sentir que o meu corpo já não reage, obrigo-me a conduzir até ao lago mais próximo para dar um mergulho. O mau estar e a tensão já estão longe, tão longe como os picos que rodeiam o vale do Ródano. Seria mentir dizer que não se trata de trabalho duro. Mas os portugueses que me acolheram e ajudaram são pessoas que gostam de estar na Suíça. Afinal, vai-se poupando. E, enquanto não se regressa a Portugal, tenta-se viver o melhor possível.

 


Texto de  Galvão Debele dos Santos.
Legenda da fotografia em destaque – Uma tempestade chega da Itália, e esconde o Mont Blanc.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #33, Fevereiro|Abril 2022.


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