Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: O animismo fetichista do Candomblé afro-brasileiro e a espiritualidade no Ocidente (Parte II)
Na primeira parte do artigo, observámos que o candomblé afro-brasileiro concebe a espiritualidade como uma prática de re-ligação à vida terrena através do chamamento dos ancestrais divinizados e do contacto com as divindades que descem à terra (os orixás, voduns e inquices), invocação que se exprime numa vivência hedonista pois no culto iorubano «o mundo celeste não está distante nem é superior» 1, assevera Pierre Verger. Esta abordagem distancia o candomblé de uma perspectiva escatológica, sendo a frase de Leiris um achado simbólico que sugere que o culto animista ao transcendente está incorporado na realidade mais primária e intestina dos viventes. Em termos filosóficos, dificilmente podemos intuir na raiz animista (ameríndia e africana) uma visão escatológica finalista, porque nela não se encontra presente nem a ideia de redenção, nem a salvação da alma além-túmulo, muito menos ainda qualquer tipo de epifania futura após a morte, quer da humanidade quer do indivíduo. A própria ligação ao mundo sobrenatural, através do transe ou do xamanismo, visa uma recondução da efectividade da existência na terra e tem como orientação a harmonia da cosmologia animista, o que por sua vez está imbricado num resultado sociocêntrico. É sempre a comunidade que ganha, na renovação das suas práticas de pertencimento e de encontro com a diferença, na evolução processual das ligações sociais e na reiteração simbólica da sua cosmologia.
Na emboscada ao Novo Mundo, constatámos que o impacto cosmológico do Cristianismo (e em menor escala a influência do Islamismo) foi incapaz de impor uma total sujeição espiritual aos povos africanos e indígenas do Brasil. Pura e dura, foi a imposição de um Rei e de uma Lei, no quadro da experiência de acumulação mercantil que o comércio esclavagista transatlântico traçou durante mais de três séculos. Os «acres fantasma» do Novo Mundo (Kenneth Pomeranz) cultivados pelos escravos africanos e os inequívocos elos de ignição com a Revolução Industrial e o trabalho assalariado foram documentados por autores tão distintos entre si como o seminal Eric Williams, passando por Ira Berlin, Barbara Fields, Julie Saville, Silvia Federici, Knick Harley, Kenneth Morgan, Georges Lapierre, Ana Luísa Araújo ou o indispensável colectivo afro-brasileiro Maíra. Se a eficácia económica e política da escravidão, a par de um incessante policiamento da conduta civil das classes escravizadas, foi absoluta e uma condição sine qua non para a transição europeia do regime feudal para a sociedade industrial e o modelo de vida onde hoje colapsamos, o programa propedêutico de inculcar a fé aos gentios foi um logro.
Poço sem fundo, a tradição oral animista e oracular africana não só resistiu à subjugação como canibalizou as restantes tradições sagradas que veio a conhecer no Brasil. Nina Rodrigues, precursor da etnologia dos cultos afro-brasileiros, destacava que «longe de o negro converter-se ao catolicismo, protestantismo ou islamismo, acontece ao contrário influenciá-los este com o seu “fetichismo” e adaptando-se [aqueles] ao animismo negro» 2. Na «ampla bulimia ideológica» do escravo, tomando de empréstimo uma expressão do antropólogo Viveiros de Castro, por mais que o catecismo pregasse a boa nova do Evangelho de um Deus supremo, único e todo-poderoso, a fé animista fetichista de índole africana manteve-se intacta no candomblé de rito jeje (proveniente de etnias do ex-Daomé) e de rito nagô (que inclui, entre outras, as nações ketu, ijexá, nagô egbá e xambá) ou então esteve na origem dos sincretismos religiosos brasileiros (o candomblé de caboclo, a umbanda, o catimbó-jurema, a encantaria, a quimbanda, etc.). Mais, quando a padralhada os tinha por ganhos e convertidos, eis senão quando os escravos voltavam ao «vómito dos antigos costumes» 3, como Anchieta se lamentava a propósito do animismo dos povos indígenas. Além disso, no credo às divindades de origem nagô, jeje ou bantu ninguém está obrigado a acreditar nas entidades como um artigo de fé, tal como os cristãos crêem nos seus mandamentos. Equivocava-se o profeta dos olhos fechados, Jorge Luis Borges, quando agoirava que «as heresias que devemos temer são as que se podem confundir com as ortodoxias» 4.
A heresia espiritual do escravo africano, mais do que incólume ao assédio dos monoteísmos absolutos, cristão e islâmico, foi um factor determinante que inspirou e manteve viva a chama da revolta quilombola, franqueou as portas à integração horizontal da mulher e da sexualidade homossexual e bissexual, e resgatou a cultura matriarcal da reciprocidade e da criação. Além deste efectivo arco de transgressão política e social no quadro geral de uma sociedade repressiva e patriarcal, conservadora e homofóbica, foi a partir da expressão musical dos ogãs alagbês, nas práticas cerimoniais de origem africana, que nasceram vários géneros musicais e de dança do Brasil (o lundum, o maracatu, o jongo, o maxixe, o samba) ou ritmos específicos como o coco, o cabula, o samba de roda, o lilú (associado à Escola Estação Primeira da Mangueira) e o afoxé. Do lugar real e simbólico dos terreiros, espaço de ritualização e de reconstituição da liberdade, deitou ainda raízes o jogo da capoeira. Um amplo e diverso processo histórico de criação cultural, singular e colectivo, e de resistência política valorizado por figuras reconhecidas da literatura (Machado de Assis, Jorge Amado), da música (Pixinguinha, Dorival Caymmi, Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Criolo), da arte (Carybé) e também pelo mentor da somaterapia (Roberto Freire) e que contraria a tese de Pierre Bourdieu de que os grupos subordinados «recusam o que lhes é negado e apreciam o inevitável» 5. Inevitavelmente, imaginemos antes, por um minuto, a potência dos cultos de tradição animista afro-brasileiros se, em vez de terem estado a contas com a perseguição de um aparelho repressor durante trezentos e cinquenta anos, manietados pela Inquisição e a Igreja Católica, em nome da lei e do comércio mercantil, e de terem carregado até hoje as marcas do preconceito social que adveio do projecto eurocêntrico de colonização, tivessem evoluído numa sociedade de iguais e do respeito pela diferença. Equacionemos ainda a falta que esse ethos cosmológico nos fez a nós, ocidentais, também colonizados há séculos pelo pensamento platónico, antropocêntrico, eurocêntrico e binário-racionalista. Sem volta a dar, foi a favor de outra concepção prepositiva e auto-consciente da existência, da relação com o outro e a natureza, que a cultura candomblecista afro-brasileira resistiu e se rebelou contra os três grandes pilares da ordem social: o Estado, o Capital e a Igreja. Uma tradição ontológica e postura empírica que ao mesmo tempo não se aventura pelos caminhos relativistas das religiões orientais (do hinduísmo ao xintoísmo, do jainismo ao confucionismo, passando pelo budismo), onde a dimensão sociocêntrica se dissolve, o individual evolui num processo a-histórico e a própria ética arrisca-se a evaporar-se no ar.
Noutros termos, se a hegemonia política e económica subjugou populações inteiras – «São nações escravizadas/ E culturas assassinadas», como canta Bia Ferreira –, em absoluto controlo das estruturas de reprodução do poder material e legal das sociedades, só um corpo de experiências de carácter último espiritual pôde (podia) desestabilizar essa hegemonia, vencê-la e revolucionar as relações de poder, sociais e humanas. Essa específica e recôndita consciência (do sagrado) dos escravos e seus descendentes, traduziu-se numa ética social da reciprocidade e da inclusão – inclusive, a aceitação de franjas da elite da classe opressora, em aparente contradição mas efectiva coerência, como evidenciaram autores como Nina Rodrigues, Roger Bastide e Edison Carneiro –, em que a referência comum a todos os seres da natureza não é o indivíduo enquanto espécie mas a humanidade enquanto condição, humanidade essa que, na linha animista, inclui o extra-humano, o virtualmente tudo, animais, plantas, fenómenos da natureza, a matéria do plenum primordial. Na belíssima prosa de Nina Rodrigues, a que Marcel Mauss não poupou elogios, nos terreiros da Bahia «todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras» 6. O itálico é do autor e dá azo a pensar que «negro» não é um pigmento da pele mas uma qualidade anímica. O candomblé está descentrado do imperialismo egocêntrico, etnocêntrico e nacionalista – ademais, integra a fisioesfera, a bioesfera e a noosfera, numa exibição radical e holística da sua alegria intrínseca. Ao fim ao cabo, a filosofia animista afirma há milénios o que Nietzsche (o Anti-Cristo, ele mesmo) veio reclamar no coração da modernidade, «repudio uma vaidade: considerar o homem como tendo sido o grande desígnio prévio da evolução animal. Não é de modo algum a coroa da criação» 7.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”. Era preciso deglutir “todas as catequeses” e a “consciência enlatada” que “começava no Cabo Finisterra”, a peste trazida pelas caravelas na lábia do Padre Vieira.
Ao arrepio de teses hegemónicas marxistas de catadura gramsciana, não só as populações escravas não viviam em «falsa consciência», como o reduto animista da sua fé e a prática ritual nos candomblés foi indissociável das várias experiências revolucionárias que levaram a cabo no Brasil (tema que ganhará relevo na terceira parte do artigo). Longe de ser «o ópio do povo», o candomblé resulta na consumação de uma ligação ecológica do particular ao todo, do indivíduo ao colectivo, do colectivo à bioesfera, da bioesfera à transcendência cósmica e a sua festa, o xiré, uma intensificação pontual de um estado de consciência da finitude da vida terrena, num estender de mão aos espíritos (aos ancestrais e aos orixás) para que estes abandonem provisoriamente o orum (o lugar extra-terreno, matriz do tempo eterno e onde moram os orixás) e retomem o caminho da alegria terrena no aiê (a terra).
O ópio pós-moderno destilado pela mega-máquina soporífica da sociedade de consumo (o aparato publicitário e mediático, o aparato médico-científico e tecno-computacional) é demasiado presente e óbvio para que as verdadeiras causas ganhem visibilidade. De acordo com o filósofo Ken Wilber o estado neurótico da existência contemporânea «é um sintoma de crise ecológica – negação de si e da natureza», recalcamento da natureza interna (libido) e da natureza externa. Em sentido oposto, a vida no terreiro é uma constante procura de equilíbrio ecológico. Os momentos do xirê, espelham as noções de harmonização entre o corpo, o espírito e a vida social, essencialmente ligada à noção de axé, a força vital, intangível e invisível, mágica e sagrada, que todo o ser, coisa viva, seres inanimados e sobretudo os orixás possuem. O povo-de-santo, pouco dado à crença do pecado, vive em plenitude a sua sensualidade, a sua sexualidade e os prazeres do corpo, por meio da dança, da música, do amor, do prazer, da beleza e da vitalidade, nessa busca de equilíbrio do físico, do mental e do social. Uma manifestação da vocação holística do candomblé para o equilíbrio corpo-social-transcendente. A simples ausência do pecado, a inexistência de uma moralidade como essência e de qualquer conceito de sujidade/negatividade sexual (esteios do Cristianismo) incentivam na prática a uma recuperação total da confiança no ser humano, no ser humano enquanto vínculo com o outro/o social, com a natureza e consigo mesmo. E esta prática secular pressupôs uma experiência libertária.
No refluxo das naus, na ressaca do naufrágio cósmico, social e humano do imperialismo Europeu, o enjoo toma conta dos descendentes dos «argonautas». O que foi feito da espiritualidade na civilização ocidental para dela nos afastarmos e negarmos, senão mesmo espezinharmos?
À luz da macro-história, a modernidade anunciou a morte de Deus, como a pós-modernidade veio bradar a morte das utopias sociais universalistas (as grandes narrativas, em linguagem pós-moderna). Atrelado ao movimento das Luzes impôs-se um marco epistemológico, em particular à boleia da tecno-ciência e seu discurso, que pressupõe que todo o conhecimento implica a anulação da subjectividade. Paradigma que se constituiu na imposição de um dogma, a objectividade como verdade absoluta, que por sua vez criou um regime de subjectividade excludente de outras subjectividades, da diferença e de outros saberes, e que normativizou o olhar humano à diferença. Esta hierarquização de saberes, juntamente com a hierarquia de sistemas económicos e políticos, assim como a predominância da voz das culturas de raiz eurocêntrica, tem sido apelidada por vários investigadores de “colonialidade do poder”. Uma das expressões mais claras da colonialidade das relações de poder acontece com a persistência da colonização epistémica do conceito de objectividade – prato do dia no discurso dos media, da economia à política, da ciência aos detergentes da loiça, enfim em todos os campos da existência –, um carrossel de reprodução de estereótipos e de formas de exclusão. Nem por acaso, a objectividade enquanto centralidade do conhecimento racionalista é um paradigma nos antípodas do saber animista para o qual conhecer é entranhar o outro, é subjectivar ao máximo para introjectar o outro, canibalizando o plural e o singular, trazer o que está para lá de nós ao âmago do que nos liga. «Tupi or not tupi, that is the question», antropofagiava Oswald de Andrade num dos mais flamejantes, férteis e insurrectos manifestos em língua portuguesa: «Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente» 8. Era preciso deglutir «todas as catequeses» e a «consciência enlatada» que «começava no Cabo Finisterra», a peste trazida pelas caravelas na lábia do Padre Vieira. «Já tínhamos o comunismo, (…) a língua surrealista». «Fizemos foi Carnaval»… Desta cosmognose, Viveiros de Castro infere o palavrão «antropocentroanimismo».
O largo espectro de traumas e de sombras do pensamento ocidental remete-nos para o enunciado de que «todo o documento de cultura é um documento de barbárie», célebre frase de Walter Benjamin. Como sublinha a notável socióloga e historiadora Sílvia Cusicanqui, «a centralidade da “cultura letrada” perpetuou uma particular exclusividade do conhecimento ocidental em detrimento das culturas orais subalternas» 9. Crítica que nos estimula a questionar se na tradição oral dos saberes mitológicos do candomblé não está a explicação da sua abertura conceptual ao não-normativo e ao outro, a origem da sua processualidade evolutiva propensa à mudança e à integração de contrários, o esteio da sua outorgada autonomia e ausência de um poder centralizador, marco da sua propensão à roda e à horizontalidade do poder entre géneros, consumada numa informal hierarquização de poderes, todavia insusceptíveis quer de uma hegemonia quer de um centro.
Nos terreiros da Bahia, todas as classes, mesmo a dita superior, estão aptas a se tornarem negras.
A ausência de escrituras sagradas é um factor pendular durante milénios nos cultos africanos das nações iorubá-nagô, jeje e bantu 10, e há razões para acreditarmos que é inextricável da génese de uma praxis espiritual (o candomblé afro-brasileiro, em particular) propiciatória da assimilação de pluralidades e da aceitação das singularidades, e com evidentes rasgos transgressores em vários campos das relações de poder. Amadou Hampâté Bâ – um dos grandes etnólogos africanos e que dizia que «em África quando morre um velho é uma biblioteca que arde» – destacou que, para vários povos do continente negro, a oralidade tem duas dimensões: uma ascendente – do ser que busca comunicar com o sagrado – e outra descendente – do sagrado que procura conectar os humanos. Neste sentido, a oralidade é um instrumento transcendental de conexão ao sagrado e um meio de coesão social da comunidade. A oralidade não manifesta uma inaptidão da África negra para o registo escrito mas revela que a linguagem oral predominou porque foi o meio mágico e sociocêntrico que melhor garantiu a sobrevivência cultural e identitária de um determinado povo.
O etnólogo Tobias Schneebaum, em Lá onde o rio te leva, não se contradiz ao escrever que «para me tornar Michii [nome próprio de um indígena na Amazónia peruana] tenho não apenas de me livrar da necessidade de escrever, mas do próprio conhecimento de que a escrita existe» 11. Em afro-samba: «O homem que diz “dou” não dá, porque quem dá mesmo não diz» 12. Sem gingado, na (outra) face da moeda da Civilização, a codificação escrita de uma tradição filosófica ou religiosa acarretou o risco verificado de cristalizar significados, esterilizar o conhecimento e tiranizar o olhar.
Historicamente, os sistemas de sabedoria e ética tradicionais do mundo foram sob vários aspectos e na sua maioria contrários à modernidade e acabaram soterrados na era da pós-modernidade, asfixiados pela mega-máquina do mercantilismo e do Estado. É o que sucede actualmente com as sociedades indígenas na América do Sul ou com as populações da «Zomia» 13. Descontados os romanticismos, seres humanos unidos mediante o tecido da experiência comum e relutantes em passar à discricionaridade e impessoalidade do mercado, ao cash nexus, como definiu Thomas Carlyle a relação das pessoas conectadas pelos laços do mercado. Sociedades «regidas pelos princípios da reciprocidade, redistribuição e o intercâmbio de bens equivalentes», como elucidou o cientista social Karl Polanyi em The Livelihood of Man.
O que é extraordinário na Europa da razão crítica é a sociedade, quase que por inteiro, incluindo as vanguardas culturais e políticas, ter cavado um fosso de estigmatização desses saberes, modos de sentir, pensar, estar e agir. Observe-se, por exemplo, a silenciadora rejeição das perspectivas anti-desenvolvimentistas por todos os quadrantes sociais e a frequência com que as teses críticas à ideologia do progresso e à indústria tecnológica são rotuladas de puro reaccionarismo, por mais que um século de factos históricos e políticos e algumas décadas de acumulação de dados sobre o colapso da bioesfera nos convidassem a valorizar os variados e heteróclitos movimentos de transição e a problematizar as sociedades a partir de questionamentos que encontramos nas propostas do neo-primitivismo, do neo-luddismo e do decrescimento.
A vocação trágico-cómica da Civilização estreitou-se tanto a ponto de só quando a tragédia global nos toca e se transforma no nosso «drama em gente», para citar Álvaro de Campos, começamos a guinchar. Apenas quando sentimos na pele a marca neurótica deste tempo olhamos de raspão para o programado desastre colectivo da sociedade capitalista, no plano humano – os milhares que sucumbem à guerra, à fome, os que atravessam fronteiras num fluxo migratório forçado, enfim, toda a massa humana que esfalfando-se ou perdendo a vida sustenta um projecto economicamente absurdo e irracional, e eticamente fascista – e no plano da bioesfera, com quatro dos nove limiares planetários já atravessados em resultado da actividade humana – o limite planetário de mudança climática, o da integridade da biosfera, o da mudança no sistema terrestre e o dos ciclos bio-geoquímicos alterados 14. Qualquer fuga em frente do capitalismo transnacional é mais um prego no progresso do seu próprio caixão.
Caso para perguntar, para que serviu à Europa a acumulação espiritual da razão crítica? Se aparentemente só a tragédia privada nos faz questionar a nossa posição social, humana e ética, então, será a razão eurocêntrica mais do que uma farsa? Até onde foram recalcadas as outras dimensões humanas? Que corte profundo separou a nossa sensibilidade do saber? Os sentimentos da ética? A dimensão espiritual e imaginária da visão social e cósmica? Nem por acaso, no contexto desse ocultismo secular levado a cabo pela racionalidade eurocêntrica, assistimos a um (outro) factor que se reveste de novidade: a generalizada morte da esperança. Num passado não muito longínquo, a nostalgia de um mundo perdido no neo-romantismo alemão era o ócio de meia-dúzia de poetas e o niilismo arrebatado, no dealbar do séc. XX, um culto reservado a um punhado de irados russos. Porque morreu a esperança?
Com o Renascimento, não foi apenas Deus que saiu do altar, e a modernidade, para impor o seu projecto, não queimou apenas as bruxas. Do cheiro a queimado, exala o suspiro de todas as vastas e diversas heresias que se opunham à redefinição das forças dominantes na transição do feudalismo para o mercantilismo, dos ana-baptistas aos ludditas, das seitas religiosas milenaristas às sociedades de tendência anarco-primitivista. Todas as visões que propugnavam uma mudança secularizada da existência e das sociedades, que manifestavam um modo de organização de significativa tendência auto-governativa, que outorgavam um espaço à liberdade do corpo e da consciência (como ainda antes do Renascimento defendiam os Cátaros), que viviam sob relativa autonomia económica e política, foram perseguidas e dizimadas. O historiador Brian P. Levack estima que em cinco séculos houve mais de 110 mil processos crime por bruxaria (sem incluir, portanto, as restantes heresias, como a blasfémia, a imoralidade, o judaísmo). Outros investigadores, estimam que durante os dois séculos da Inquisição durante o período da Reforma entre 40 a 80 mil mulheres foram queimadas em auto de fé. Escusado será dizer que maioritariamente estas mulheres (e os seus filhos não eram poupados) pertenciam às classes populares e de baixa condição.
Era preciso punir a ama. A que cuida e a que distribui carinho. O projecto antropocêntrico de dominar a natureza prestou-se ao correlato lógico de punir quem na praxis e simbolicamente estava vinculada com a reprodução da natureza e quem dela cuidava (em extensão e horizontalidade): a mulher. Acusada de bruxaria «para que o povaréu continue a crer nas máscaras do medo» 15. As palavras são de José Donoso e a bruxa é em particular Peta Ponce, autor e personagem de um dos mais brilhantes e diabólicos romances dados à estampa: El obsceno pájaro de la noche. Peta Ponce ou as «mestres-cucas sifíliticas que enrolam jibóias aos pescoço» 16. Ou as feiticeiras da Odisseia. Ou a coruja Hécate que, através da pena de Apuleio, alude às mulheres que voam de madrugada, ávidas de carne e sangue humanos, mas que não passam das Deusas das terras selvagens e dos partos na mitologia grega. Ou Blimunda, filha de uma bruxa queimada em Memorial do Convento. E, claro, as Iá Mi Oxorongá, as velhas mães-feiticeiras da cosmologia iorubana. Correlato ou não do antropoceno, foi necessário perseguir e punir, queimar (para) vigiar. Porém, desenganem-se, o patriarcado por si só não foi capaz de derrotar a cultura matriarcal, nem com a instituição do Direito romano, a lei patrilinear, nem com a Santa Inquisição. As Antígonas e Macabéas, as Elsalliles e Oxuns, coexistiram com as sociedades patriarcais e resistiram. Libertas do ónus da culpa e libertando a potência da sua fertilidade – o dom de criar e dar a criar – «mulheres que se confundem como imagens de fumaça, mutáveis e em mutação constante», como escreveu o bestial Donoso –, são devir e processo, renovam-se e escapam aos ditames que a sociedade patriarcal e religiosa impõe. Haveria de ser a transição para o mercantilismo e a industrialização, como documenta Silvia Federici (Cf. Calibán y la bruja: mujeres, cuerpo y acumulación originaria e Revolución en punto cero), que anularia sumariamente a condição da mulher, a história e a batalha nocturna, como lhe chamou Carlo Ginzburg, e imporia o actual regime mitológico e opressivo sobre a mulher.
Mas as bruxas que foram queimadas na Europa reapareceram nos terreiros de candomblé porque «a bondade animal da vagina» 17 resistiu e tudo venceu…
Artigo publicado no JornalMapa, edição #24, Agosto|Outubro 2020.
Notas:
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