
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: «A crise da habitação é profunda em Lisboa e em Portugal»
Nos últimos meses o projeto da Torre da Portugália, na Avenida Almirante Reis, esteve no epicentro do debate sobre a cidade e as formas de habitar Lisboa. Que tipo de visão sobre a cidade transporta esta torre?
Este projeto ilustra de forma exemplar o processo de instalação da cidade neoliberal: planificação ajustada à lógica do mercado e da máxima extração de lucro, que cria oferta que não responde às necessidades nem se adapta à capacidade económica dos habitantes, e dá origem à expulsão de moradores e comércio tradicional. O modelo – abandono, desvalorização, especulação, gentrificação, explosão dos preços – alastra a muitas cidades na Europa e no mundo, com particularidades de cada local, mas sempre com a consequente expulsão dos moradores por meio de despejos e de bullying.
O projeto é apresentado por um fundo imobiliário, por sua vez representado por uma sociedade do Luxemburgo, que pertence a um fundo de pensões alemão. A profusão de intervenientes é normal no processo típico da globalização financeira: cria a opacidade necessária à fuga fiscal e até à lavagem de dinheiro. Acresce que este fundo imobiliário é gerido por uma sociedade dirigida por antigos administradores da CGD e BES, o que lhe traz a mais-valia de «informação privilegiada», eufemismo para «tratamento privilegiado».
Entretanto, as promessas do empreendimento usam conceitos ambíguos para criar as condições para que o absurdo seja aceite como razoável: a habitação acessível apregoada ficará certamente fora do alcance da maioria, o espaço público será certamente confiado à gestão privada, com horários, acesso restringido, etc.
A região de Lisboa atravessa um intenso processo de transformação a reboque do chamado boom imobiliário. Existem outras «Torres da Portugália» a nascer nos próximos anos?
Melhor será dizer boom dos preços do imobiliário. Em Lisboa, o turismo e a evolução para estância para estrangeiros ricos acelerou o processo. Para ajudar à escalada dos preços e à escassez de casas, o governo criou os regimes especiais para residentes estrangeiros e os Vistos Gold, para quem a oferta passou a orientar-se. São os fundos de investimento monstruosos que decidem o futuro das cidades, o papel das entidades públicas – autarquias, governos, união europeia – é facilitar o processo com leis, regulamentos e regalias fiscais. O que se vai passar nos próximos anos depende também da capacidade de gerar um movimento crítico e combativo.
Sra. Ondina Tavares, Bairro 6 de Maio, Amadora. Obra de Vhils.
Paralelamente existe uma profunda crise de habitação. Não há também aqui um profundo contraste?
É a outra face da moeda. A Lei Cristas, no essencial mantida pelo PS, alargou a crise a novos grupos sociais – jovens à procura da primeira habitação, “classes médias” com mais visibilidade e capacidade de se organizar e fazer ouvir, ajudando a colocar a habitação na agenda política.
Mas a crise da habitação é profunda em Lisboa e em Portugal: oficialmente há mais de 26 mil famílias em grave carência habitacional: famílias monoparentais, migrantes, idosos e pessoas nos salários mínimos, em casas arruinadas, em barracas. Somando as famílias em sobrelotação, 10% segundo o INE, chegamos números astronómicos de casas necessárias, a reabilitar ou a construir de novo. As políticas anunciadas não têm orçamento palpável e delegam nos municípios, alguns sem vontade, outros sem capacidade, a responsabilidade de resolverem o problema.
A Habita defende mais habitação pública, que não só responda ao problema dos mais pobres, mas que se destine também a grupos socialmente diversificados. Mais habitação pública é também mais habitação fora do mercado e a possibilidade de controlar os preços de renda e de venda, se for assumida a regulação do mercado e da especulação em simultâneo. Encaramos a habitação como património comum, essencial à vida social.
É possível fazer um mapeamento das lutas pela habitação e pelo direito à cidade em Lisboa?
Nos bairros sociais as famílias amontoam-se em apartamentos: a luta é por habitação digna e de dimensão adequada. Na falta dela, centenas de famílias resistem em casas que ocuparam depois de estas permanecerem devolutas anos a fio. Apoiamos esta forma de luta: uma casa tem uma função social, mantê-la vazia é criminoso, ocupá-la para dar teto à família é legítimo.
Nos bairros históricos com mais pressão surgem muitos focos de luta pelo direito a ficar onde sempre se viveu. Há algumas vitórias, ainda não definitivas, mas indicadoras de que uma oposição forte é eficaz: na Rua dos Lagares; no prédio Santos Lima, no Martim Moniz.
Fotografia: Ephemera
Por toda a cidade, bairro a bairro ou de forma mais dispersa, surgem todos os dias aumentos brutais de rendas, não renovações de contratos, despejos desumanos, embora legais. As pessoas sentem a incapacidade de manter uma casa como fracasso individual, isolam-se e escondem-se. A luta é aqui pela criação da consciência de que o problema é coletivo e só coletivamente se pode lutar.
Nos bairros auto-construídos da periferia a luta é pelo direito ao realojamento. Quando essas periferias se tornam centrais, pelo crescimento da cidade, há municípios (Amadora, por exemplo) que querem demolir os bairros e expulsam as pessoas sem lhes assegurar uma alternativa de habitação digna.
Lembro ainda a Manifestação “Pelas nossas casas, pelas nossas vidas, lutamos”, em Setembro do ano passado. Organizada por quase 50 coletivos de Lisboa e Porto, numa articulação frutuosa entre movimentos. Por isso estamos muito empenhados no festival Habitacção, no último fim-de-semana de Setembro deste ano, que é, igualmente, um movimento de articulação dos movimentos de resistência e luta pelo direito à habitação e à cidade, bens comuns.
Artigo publicado no JornalMapa, edição #24, Agosto|Outubro 2019.
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