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Lendo: 2020 também é ver o abolicionismo a ganhar forma

2020 também é ver o abolicionismo a ganhar forma

2020 também é ver o abolicionismo a ganhar forma


Uma reflexão sobre a radicalidade da luta contra a violência policial nos EUA: «Sim, queremos literalmente abolir a polícia. Andamos a implementar reformas há 50 anos e não funcionou».

 

What the world will become already exists in fragments and pieces, experiments and possibilities.

Ruth Wilson Gilmore

«Agora que a abolição da polícia se tornou uma possibilidade para o consciente coletivo, estas campanhas como o 8 can’t wait estão apenas a prestar um mau serviço», tweetava a rapper negra norte-americana Noname, referindo-se a uma mudança nas reivindicações que acompanharam os levantamentos nos Estados Unidos em plena época de protestos Black Lives Matter. Ela expressou aquilo que muitas de nós estávamos a observar: de modo massivo e generalizado, multidões nas ruas e nas redes exigiam o fim da polícia, obrigando a opinião pública a pensar sobre essa possibilidade. O tweet da cantora refere uma campanha para a implementação de reformas urgentes na polícia, chamada 8 can’t wait, que pretende acabar com práticas comuns dentro das forças de segurança, como imobilizações pelo pescoço e estrangulamentos, disparos sem aviso prévio ou relatórios pouco completos. Surgida no rescaldo da morte de George Floyd, a página desta campanha introduz-nos primeiro a uma crítica lúcida e profunda à polícia enquanto instituição, mas propõe depois 8 medidas de regulação no uso da força como resposta a uma violência estatal que está enraizada nesse modelo institucional que permanecerá injusto, mesmo que se acabem com os estrangulamentos.

É neste contexto que surge a campanha 8 to abolition, um exemplo da mudança nos discursos reivindicativos que, para quem acompanhou as notícias a partir de junho deste ano ou para quem faça agora uma pesquisa, é apenas uma das muitas iniciativas que evoca a abolição, desmantelamento ou desfinanciamento da polícia. Nitidamente, o tema tornou-se numa discussão pública, transversal a meios de comunicação de vários tipos – e isso é já em si uma vitória.
Mais do que contrastar com campanhas reformistas, este artigo pretende sim contribuir para a expansão nos nossos imaginários da possibilidade de um mundo sem polícias, mencionando alguns dos melhores conteúdos que se encontram a circular, fruto da junção de ideias antigas aplicadas a contextos modernos. É o que acontece quando deixam de ser apenas os Black Panthers e os anarquistas a reclamarem a abolição da polícia.

Esta gente anda há anos a tentar reformar a polícia

Cinco membros do Conselho Municipal de Minneapolis apresentaram, com base em vários relatórios, petições e reivindicações de populações locais, uma proposta para desmantelar totalmente o departamento da polícia da cidade e para a criação de um «departamento de segurança comunitária e prevenção da violência». Uma dessas dirigentes autárquicas de Minneapolis, Lisa Bender, declarou em conferência de imprensa que os esforços feitos de modo progressivo, ao longo de anos, para reformar a polícia, falharam. «Há que desmantelar a organização por continuamente pôr a comunidade em risco», declarou aquela dirigente e muitas outras figuras mais ou menos proeminentes. Um pouco por todo o país ecoaram pedidos de cortes de fundos e desmantelamento de esquadras, escolas e universidades anunciaram a cessação dos contratos que mantinham com a polícia e talk shows deram voz a pessoas que antes eram consideradas extremistas.

Sabemos que algo muito diferente e surpreendente está a acontecer quando a revista TeenVogue (!) publica um artigo em que destaca as palavras de Bender e explica ao leitor a campanha 8 for abolition. Ainda mais surpreendente é constatar que esse é um entre muitos outros artigos que a revista publicou sobre a abolição da polícia, a abolição das prisões, a supremacia branca sistémica, a celebração do gay pride enquanto riot contra a violência policial e até, a 15 de julho de 2020, um artigo sobre a abolição das rendas que questiona a propriedade privada.

Abolition

8 passos para a Abolição (poster da campanha que surgiu após a morte de George Floyd): “Por um mundo sem prisōes ou polícia onde todos possamos estar seguros, Desfinanciar a polícia, Desmilitizar as comunidades, Tirar a polícia das escolas, Libertar as pessoas das prisōes e cadeias, Revogar leis que criminalizam a sobrevivência, Investir na auto-gestão das comunidades, Investir em cuidado, não em polícias. Acreditamos num mundo com zero assassinatos policiais porque existem zero polícias. A Abolição não pode esperar.” [Fonte: www.8toabolition.com]

Aquilo que os manifestantes têm vindo a dizer, e que os media agora destacam, é que não é suficiente pedir uma atuação policial mais regrada, porque isso gera uma sensação angustiante de que algo errado fica por resolver. Não basta não matar. Imaginemos que o agente Derek Chauvin se tinha ajoelhado no pescoço de George Floyd «apenas» durante 7 minutos, em vez de 8 minutos e 46 segundos. Talvez Floyd tivesse sobrevivido para então ser detido, julgado e encarcerado por alegadamente ter tentado usar uma nota de 20$? Que justiça é essa que permite que a polícia faça a gestão da desigualdade social?

Vindas do lado da falta de privilégios, surgem várias iniciativas e reflexões políticas que já operam no sentido de uma prática autónoma de resistência e vivência comunitária. Como explica a ativista e advogada Derecka Purnell ao jornal The Atlantic, desde a morte de Michael Brown em Ferguson, em 2014, que existem grupos de alunos, professores, ativistas e advogados que se dedicam a explicar os propósitos do sistema de poder e o funcionamento do Complexo Prisional-Industrial. Os abolicionistas negros têm condenado o papel das prisões e da polícia durante séculos, mesmo antes de W. E. B. Du Bois ter escrito o Black Reconstruction. Eles imaginaram e construíram respostas aos danos sofridos baseando-se na comunidade e no compromisso. Nas últimas décadas, os abolicionistas desenvolveram alternativas ao 911 (linha de emergência), criaram sistemas de apoio para vítimas de violência doméstica, impediram a construção de novas prisões, reduziram orçamentos das forças de segurança e protegeram imigrantes sem-papéis de serem deportados.

O abolicionismo é muito mais que despedir polícias e fechar prisões. É também eliminar as razões pelas quais as pessoas acham que precisam de polícias e prisões.

Este é o debate que está finalmente a ter voz nos media e que força as pessoas a reconhecerem a existência e o valor destas ideias e práticas. «Nós somos aqueles que zelamos pela nossa própria segurança», «proteger mulheres e raparigas negras é uma responsabilidade sagrada» ou «quando as pessoas desconsideram os abolicionistas por não se importarem com a segurança ou com as vítimas, tendem a esquecer-se que nós somos muitas vezes essas vítimas, os sobreviventes dessa violência», são alguns títulos de notícias publicadas em revistas de moda ou jornais de generalidade, do New York Times à revista Rolling Stone. Naturalmente, existe uma correlação direta entre o dar voz a pessoas de cor e o aparecimento destes conteúdos – durante séculos, as próprias pessoas das comunidades não eram chamadas ao debate público e não tinham representatividade nos meios de comunicação social. Se me permito algum idealismo, quero pensar que agora lideram o caminho, não só denunciando as faltas de privilégio, como dando o exemplo através de modelos de resistência comunitária contra a pobreza e a violência.

Nada disto é muito novo, o que surpreende é a expansão destas ideias e autores

Não se pretende aqui transmitir a noção que estas lutas ou ideias são inovadoras e inéditas. A análise da sociedade nestes moldes é algo que vem a acontecer há séculos, mas finalmente parece ter sido conquistado o espaço necessário para que se possa falar da abolição de instituições repressivas. É das redes sociais, de académic@s radicais e das ruas que parte a criação desse conteúdo, que posteriormente os media amplificam, finalmente visibilizando-se assim a violência sistémica de que as pessoas mais vulneráveis são vítimas. Durante toda esta época de protestos, têm sido frequentes os ataques a pessoas de cor, com uma incidência assustadora em crimes contra mulheres, pessoas queer e/ou transsexuais. Mas também tem sido inspirador ver os vários atos de solidariedade e homenagem às vítimas de ataques, e ouvir discursos de denúncia e reflexão sobre essas condições de dupla ou tripla subalternidade que as pessoas mais vulneráveis experienciam. A consciência de que certas pessoas são sistematicamente vítimas de um sistema social assimétrico e punitivo é amplificada perante o impacto desproporcional em pessoas negras do Covid-19, da recessão económica, assédios ou assassinatos policiais e encarceramento. Um modelo assim assente na desigualdade, que a polícia é paga para manter.

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16 de junho, Florida. Vigília em homenagem a Oluwatoyin “Toyin” Salau, ativista de 19 anos encontrada morta após estar desaparecida durante uma semana. Foto de Eva Marie Uzcategui.

Para resistir a tal modelo social, bem como para expandir a capacidade de imaginação e implementação de um mundo mais justo, vale a pena ler as obras ou investigar as vidas de Audre Lorde (sempre!), Zoe Samudsi e outras feministas negras, Martin Sostre (um símbolo do ativismo anarquista negro feito desde a prisão), Ruth Wilson Gilmore, ativistas negras LGBTQ como Martha P. Johnson ou Lady O, e Frantz Fanon (cujo livro Peles negras, máscaras brancas dispensa introduções). Vale a pena também mencionar o conceito de «school to prison pipeline», sobre o uso de penalizações graves já em contexto escolar que abrem precedentes de criminalização juvenil; deixar uma breve referência às obras que investigam as origens da polícia enquanto instituição, e referir que a corrente afro-futurista anda a construir imaginários alternativos capazes de nos redimir, de Aimé Cesaire ao novo livro Black Imagination: black voices on black futures, editado por Natasha Marin.

Pegando no caso da autora Ruth Wilson Gilmore, o seu nome tem sido apontado como uma das vozes mais proeminentes para o desmantelamento do Complexo Industrial-Prisional e o seu livro Golden Gulag registou uma grande subida na procura e nas citações, bem como o livro de Angela Davis, Are prisons obsolete. Tivemos a sorte de ter a Ruth Gilmore a viver em Portugal durante um tempo e, há já alguns anos, o Jornal Mapa esteve presente num evento na Cova da Moura, a Universidade Popular Kwame Touré, onde quem participou teve o privilégio de ouvir a Ruthie e um outro professor a falar, entre outras coisas, sobre a Harriet Tubman, sobre a revolução Haitiana ou sobre a invisibilidade propositada da relação entre escravatura e capitalismo – na altura, ninguém parecia ter presente que o sistema financeiro e político atual não existiria sem séculos de trabalho forçado e gratuito, a escravatura. Essa noção parece estar hoje mais presente nas mentes críticas e o derrube de estátuas de esclavagistas em todo o mundo veio aprofundar esse debate.

Muito material crítico a ser produzido hoje em dia nos EUA merece ser traduzido e por isso se deixa aqui uma breve lista de boas fontes e exemplos. Vários artistas ou figuras públicas mostraram o seu engajamento político, pagando fianças ou participando em clubes de leitura que disponibilizam pastas cheias de literatura sobre estes temas. E por falar em figuras públicas, não nos esqueçamos de mostrar solidariedade com aqueles que recebem mensagens de ódio diárias precisamente por difundirem ideias antiracistas, sejam el@s o Mamadou Ba, a Noname ou aquel@ amig@ que se assume como abolicionista nas redes sociais.

“Quando as pessoas desconsideram os abolicionistas por não se importarem com a segurança ou com as vítimas, tendem a esquecer que nós somos muitas vezes essas vítimas dessa violência.”
Derecka Purnell

Para terminar, importa referir que o contexto europeu conta com uma tradição política diferente, constituída por inúmeros movimentos e momentos de oposição ao Estado Policial que não devemos deixar cair no esquecimento. As próprias características populacionais, o colonialismo e as vozes de oposição que sempre existiram oferecem um legado a explorar, com particularidades diferentes da realidade aqui apresentada. O que aqui se propõe é lançar um olhar atento ao contexto estado-unidense, reparando em semelhanças, contrastes e importações entre a resistência lá e cá, sabendo que o que acontece na barriga da besta imperial afeta as suas periferias.

E então, o que é tens feito ultimamente para imaginar um mundo sem polícia?

 


Artigo publicado no JornalMapa, edição #28, Agosto|Outubro 2020.


Written by

M. Lima

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