Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Acesso à terra, agroecologia e convivialidade: três lados de um triângulo em construção
A Poucaterra é uma revista que nasce da vontade de explorar três conceitos que têm significado por si só e que, postos em relação, permitem pensar que uma transição cultural é possível, como antecâmara de uma transição agroecológica. É também um exercício de imaginação da Madalena André e do Pedro Mendonça, que não abdicam de procurar respostas que contrariem o colapso civilizacional iminente.
Como surgiu a ideia da Poucaterra?
Madalena: A minha primeira memória que eu tenho de nós falarmos em revistas, foi quando eu fui à COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas) em Glasgow, porque queria conhecer o movimento, queria conhecer as pessoas, e surpreendeu-me muito a quantidade de coisas que havia em papel, era tudo assim muito acessível para quem estava lá enquanto ativista e para os grupos. Eu trouxe um dos jornais, que se chama Less, que é um jornal escocês sobre decrescimento. Perguntámo-nos se seria uma forma fixe para falarmos sobre estas coisas e foi assim que começou.
Mais tarde, quando eu estava na Alemanha, em Erasmus, já estava a pensar em começar uma revista, eventualmente com amigos, e que se chamava A grande recusa. Era inspirada no Marcuse, que falou muito dos estudantes do Maio de 68 e daquele movimento mais libertário. Depois não avancei com isso, mas recebi um e-mail do Pedro, a dizer que queria começar uma revista, direcionada mais para a agroecologia e sobre o acesso à terra, essencialmente.
Uma revista pareceu-nos uma boa ideia, porque nenhum de nós estudou agroecologia de raiz. Eventualmente, cresceu o interesse e acabámos por mergulhar mais no assunto. Na minha cabeça eu vejo isto um bocadinho como desculpa para continuarmos a aprender e conhecer mais sobre estes temas. Foi um processo um bocado longo, foram quase dois anos, antes de termos a primeira impressão, porque nenhum de nós tinha feito uma revista antes, porque tínhamos muito claro que queríamos que transparecesse de uma certa forma, que não fosse a académica, que fosse acessível a mais pessoas, que envolvesse mais do que só textos de opinião e que recolhesse testemunhos portugueses sobre agroecologia.
Pedro: Nessa altura em que mandei o e-mail, eu a Madalena estávamos em trajetórias opostas, mas no mesmo plano, isto é, a Madalena a afastar-se do campo e a tentar perceber como é que a vida dela iria dar de novo ao campo; e eu a chegar ao campo pela primeira vez na minha vida, que eu sou um rato de cidade. Tirando campos de férias, nunca tive qualquer tipo de contacto com a vida rural, e deparei-me com uma série de questões sobre as quais nunca tinha pensado. Até do ponto de vista da diferença cultural, entre mim e as pessoas que vivem cá. E também com os meus filhos, na escola, houve um grande choque cultural. Eu estava a iniciar o meu longo divórcio da academia e, nessa altura, a Madalena estava a acabar o mestrado em sociologia e ainda estava a celebrar as bodas dela com a academia.
Quando vim para Coimbra fiz uma mudança muito grande na minha área de estudos, Na altura, estava a estudar comércio internacional, mas depois, por uma série de razões, em que fiquei convencido do colapso iminente da civilização ocidental, decidi tentar trabalhar para ajudar a resolver alguns problemas. Fui parar ao Centro de Ecologia Funcional, do Departamento de Ciências da Universidade de Coimbra. E comecei a trabalhar numa série de coisas que eu achava que também não era aquilo que devia ser feito, que era trabalhar com a noção de serviços de ecossistema, sobre o qual temos um texto a criticar no número 1, e também porque a maior parte destes projetos têm uma abordagem que tenta quantificar economicamente, se vale a pena evitarmos o desastre ecológico. Eu estava a fazer análises de custo-benefício da adoção de métodos agroecológicos. O que me parecia, do ponto de vista conceptual… nós sabemos qual é o custo, que é o colapso. Então, se evitarmos esse custo, qualquer que seja o benefício, está bom, não é? Estávamos mais ou menos nesta trajectória cruzada, a Madalena a embrenhar-se na academia, eu vou tentar sair, a Madalena a tentar voltar ao campo e eu a chegar pela primeira vez.
Madalena: Sim, acho que esse o choque cultural é mesmo relevante. Eu estava há 3 anos na cidade e, na verdade, mesmo quando estava na Alemanha, em Erasmus, estava mais no campo do que na cidade. E foi uma choque grande. Como as primeiras chuvas no Porto, cheiravam-me mal, a cidade cheirava mal. E eu lembro-me que para mim a chuva era uma altura maravilhosa, porque vem o cheiro da da terra, cheira a lareira, não cheira a poluição molhada. E quando eu vim para o Porto, tive a sensação de que quem vive cá desde sempre não tem noção de que há outras vidas possíveis. Nesse sentido, para mim é importante falar sobre estes temas, porque existem outras formas. Também fui para a Cop, porque foi uma altura em que o colapso climático e civilizacional estava presente na minha cabeça, e em todo o meu corpo e coração.
Para mim a Poucaterra é um exercício de imaginar em conjunto com outras pessoas essa direção e é mais fácil pô-la em prática depois de a imaginar.
Então, as vossas próprias vivências levaram-vos a achar que era relevante passar essas ideias a outras poucas pessoas, é isso?
Pedro: Honestamente, não é esse o meu principal motor. Eu estou, de facto, a tentar ter uma vida ligada ao acesso à terra, à convivialidade e à agroecologia. É difícil, sobretudo se se vai parar a um contexto ainda com muito pouca coisa construída nessa direção. Só o facto de imaginar essa direção é difícil, quanto mais pô-la em prática. Para mim a Poucaterra é um exercício de imaginar em conjunto com outras pessoas essa direção e é mais fácil pô-la em prática depois de a imaginar. Mas eu acho que é uma imaginação mesmo frágil. Quando as pessoas ouvem a apresentação da Poucaterra, do que ela quer explorar, a reação é entre «estão tontinhos» ou «utopia ao cubo», ou algo assim. Eu mesmo, ao pensar em como se fala no acesso à terra para malta que vive em Lisboa, não é óbvio para mim. Quando eu vivia lá, sentia necessidade de escapar desse ambiente, não sabia bem como, e sentia que, de alguma forma, um pedaço de terra me traria satisfação. Mas não chega, há uma série de outras coisas que é preciso. Mas se me dissessem, quando eu estava lá, que o que eu queria mesmo imaginar, ou lutar por, ou procurar, para mim e para as outras pessoas na mesma situação que eu, sobretudo no desemprego, em que é muito difícil, porque a nossa relação com a cidade fica muito reduzida em termos de como é que nos ligamos aos outros… Se me dissessem que «o que tu estás a precisar é de pensar no acesso à terra», eu nem sequer saberia por onde começar a conversa. Isto para dizer que eu faço isto mais por mim do que pelas pessoas.
Eu gosto é de fazer isto com pessoas. Não nos interessa muito encher isto com a nossa opinião.
Madalena: É exatamente isso, nós temos essa curiosidade e há pessoas que já começaram este caminho, outras que estão a começar agora. Os caminhos são todos muito diferentes, é aprender com as tentativas de cada um e juntá-las num sítio. Até porque para haver uma transição agroecológica ou uma transição que nos permita evitar ou minimizar de alguma forma o colapso, também é preciso uma transição cultural. Eu acho que a Poucaterra tenta, de uma forma muito pequenina, criar um espaço para pensar essa transição cultural, para que se arranje um vocabulário para falar sobre isso, e para que se juntem os testemunhos de quem já está a tentar praticar isso.
Foi por isso que vocês foram buscar a convivialidade, do Ivan Iliich?
Pedro: O Illich foi uma revelação, mas foi já a meio, final do caminho que fizemos com a Poucaterra. A introdução do termo «convivialidade»naquele subtítulo, foi mesmo no último segundo, quase. Mas é uma presença fundamental, pelo menos para mim, para navegar nas ideias de que estamos a falar, a relação com a tecnologia, com o progresso, com a autoprodução. Mas eu li-o sempre como uma coisa à parte da Poucaterra, só veio cá parar mais recentemente. Mas estou meio obcecado com ele.
Madalena: Pois, a escolha antes da convivialidade era artes e ofícios. As artes, para incluir mais do que só a parte intelectual e académica. E acho que os ofícios como aquela passagem de conhecimento, que tem de ser de uma geração para a outra, que tem de ser com prática, que tem que ser vivida no corpo… mas até isso era um bocado redutor, porque as interpretações de artes e ofícios são sempre muito diferentes. E acho que a convivialidade aglomerou isso e ainda acrescentou mais coisas. Nós falámos disso no editorial, de ser preciso juntarmo-nos, e cantarmos juntos, e dançarmos juntos. E termos jantares e isso tudo…
Pedro: Mas mais uma vez, isso já estava descrito antes de chegarmos aqui, isto é, nós já estávamos a pensar na convivialidade antes de sabermos o nome. Mas facilitou imenso ter um nome, conseguirmos dar um nome a isto. E descobrimos, depois de publicar, que há uma Internacional Convivialista e entraram em contacto connosco. É altamente, têm dois manifestos e tudo. Mas não fazíamos ideia, quando isto começou.
Na parte de sair da economia de mercado, não só nos sentimos sozinhos como muito ignorantes.
E isso faz-vos pensar que não estão sozinhos neste devaneio?
Pedro: Sim. Mas eu acho que o Illich iria discordar da maior parte das coisas, acho que ia ter muito a dizer sobre a Internacional Convivialista. Mas, a grande solidão, nem é quando falamos sobre convivialidade, porque toda a gente tem uma experiência mais ou menos breve com convivialidade, seja, no associativismo, seja em campos de férias, a fazermos prendas uns para os outros, ou massagens uns aos outros, ou juntaram-nos à noite para cantar, em vez de ir para um bar, beber, por aí fora. Nunca sentimos muitos sozinhos nessa aspiração de estarmos mais uns com os outros, e sabermos suprir as necessidades uns nos outros, sem elas terem de ser mediadas pela economia de mercado e pela tecnologia. Mas, para sair da cidade já somos menos acompanhados, eu diria. E depois, na parte de sair da economia de mercado, aí não só nos sentimos sozinhos como muito ignorantes. Portanto, para além do exercício de imaginação, também é preciso um exercício de transmissão de saberes e de experiências.
E mais, nós estamos à procura de uma vida, em que o nosso trabalho, a possibilidade de ter família, pertencer a uma comunidade, tenha significado. É na direção de uma autonomia crescente da economia mercado, porque achamos difícil ela ter significado dentro de uma dependência do mercado de trabalho e da economia de mercado. E gostamos de pensar nesta coisa do acesso a terra, também como um direito básico de optar por não participar na economia de mercado, extrativista, na carbo-economia.
Já falámos com urbanistas sobre este tema e sentimos-nos muito doidos.
Porque é uma visão completamente diferente?
Pedro: Porque eles estão habituados a lidar com a terra como um bem escasso, que tem de ser pensado dentro de uma visão muito estreita, a que eles chamam a função social do solo. E quando começamos a falar da função social do solo, é dar abrigo às pessoas, é dar-lhes nutrição, é dar-lhes um sítio para passear, e por aí fora, depois há certas coisas que deixam ter grande lugar. Porque há uma série de infraestruturas que servem para manter a tal economia de mercado, que tem normalmente prioridade quando se pensa na função social do solo.
E todas estas necessidades, como abrigo (quando digo abrigo é habitação), uma alimentação saudável que não dependa de mão de obra semi-escrava, ou migrante, por aí fora, um sítio onde possamos estar sem pagar para consumir, portanto o direito ao espaço, quando falamos destas coisas todas, elas são pensadas no fim de tudo. Se calhar estou a ser um bocado injusto, porque os urbanistas também pensam em praças e espaço público, mas é dentro de um esquema que não admite a possibilidade de optar por não participar dessa economia.
Madalena: Sim, acho que há muitas disciplinas que acabam por estar naturalmente embrenhadas
no que é a nossa economia. Eu a seguir a estudar sociologia fui estudar planeamento regional e urbano e, então, deparo-me muito com isto, estas coisas pequeninas de estarmos a olhar para uma praça e ver, quais é que são os problemas. Muitas vezes fala-se dos serviços e do comércio e não se fala das pessoas que também precisam de um espaço, ou que não têm de gastar dinheiro para estar. Quando há um espaço verde que não está perto da cidade, que não está construído,
a ideia que vem primeiro é construir um campo de golfe porque, assim, estamos a potenciar a economia local. Enquanto que, se calhar, esse espaço verde tem uma função diferente daquela a que os urbanistas, por estarem nesta economia, ou por trabalharem com as câmaras, acabam por ter de responder.
Pedro: Mas, tipicamente, são urbanistas que fazem esses planos diretores municipais. E, se eles disserem, a cidade tem vindo a perder habitantes, vamos fazer um plano que pense como é a cidade decresce, são imediatamente despedidos.
Até porque a ideia é a cidade crescer, e não decrescer, não é?
Pedro: Pois. O que é meio paradoxal, tendo em conta esta compulsão para o crescimento ser simultânea com a ideia da terra como bem escasso. Mas as duas vivem em conjunto.
Mas, acontece uma coisa mágica qualquer que, quando falamos nos termos do urbanismo, nós é que parecemos tontos, apesar deste paradoxo, óbvio e mais ou menos flagrante. E eu ainda não sei explicar o que é.
É diferente pensar o que é suficiente e o que é sustentável
Vocês também dizem que é preciso mais acesso à terra, mas também é preciso que se use menos a terra, ou seja, deixá-la estar.
Pedro: Sim. Vou recuperar o Illich. Uma das coisas que temos pensado é sobre como para nós a convivialidade é um objetivo social, possivelmente mais meritório do que a sustentabilidade.
E uma das coisas tem a ver com uma diferença que achamos fundamental. É diferente pensar o que é suficiente e o que é sustentável. Normalmente, o que é sustentável é pensar qual é o máximo que podemos tirar, sem prejudicar a possibilidade de isto se reproduzir. Enquanto que, o que é suficiente, não pensa em qual é o máximo que podemos tirar, mas em quanto estamos a precisar de facto agora, para aquilo que nos interessa, em termos das relações sociais que queremos, e por aí fora.
E a convivialidade promove esta coisa, não sei qual é que seria a tradução, mas o Illich chama-lhe critical enoughness, que é essa ideia de, se temos uns recursos por explorar, nós não temos necessariamente de ir a correr explorá-los. Mas isto também é meio chanfrado na maior parte dos círculos onde se fala sobre estas questões.
O que nós gostávamos com a Poucaterra, era de criar uma espécie de discurso que mostrasse a imoralidade desta relação com a terra e desta assimetria de uns terem milhares de hectares e outros não terem onde cair mortos e também da ideia de olhar para a terra apenas como um recurso a consumir, para alimentar a economia.
Temos uma grande ênfase sempre no tom com que dizemos as coisas, porque queremos dizer coisas que, dado o status quo, são altamente radicais, mas queremos dizê-las com a razoabilidade que elas têm de facto. Ou seja, que não pareçam pedidos extravagantes.
Madalena: É essa a ideia, haver pouca terra e usar pouca terra, não ser antagónico. E também que há outras formas de nos relacionarmos com os recursos, com o território, com o que é local.
Há alguma espécie de filtro para os textos que vos chegam? E vocês pedem textos a pessoas específicas, ou esperam que vos mandem coisas?
Madalena: Eu acho que esta pergunta terá respostas diferentes nos próximos números, se a Poucaterra chegar a mais pessoas. O número 1 foi muito específico, porque partiu muito de nós pedirmos a pessoas que são nossas conhecidas que escrevessem, ou seja, fomos nós que convidámos as pessoas para escreverem.
Pedro: Há textos neste número que têm coisas nas quais não me revejo. Mas não são coisas que me chocam, é só porque penso de maneira diferente. E estou confortável em conversar com pessoas que pensam daquela maneira. Tirando casos extremos, e duvido que essas pessoas queiram participar na revista, temos mais cuidado com o tom, isto é, por mais diferente que seja a tua ideia da minha, o que eu quero é que ma apresentes no tom mais cortês e cordial possível. E nas coisas que eu, como editor, não estou a perceber, que faças um esforço maior do que o costume para esclarecer, porque se calhar estás habituada a falar com pessoas que já estão de acordo contigo nesse ponto. O que aconteceu, por exemplo, neste número, foi que isto gerou muitas trocas para trás e para a frente entre nós e autores. Mas já temos autores do número 1 a dizerem que já têm um texto para o número 2, portanto, foi uma troca que funcionou. Na verdade, é um processo que enriquece as duas partes, porque a outra parte também é obrigada a traduzir as suas ideias para uma linguagem diferente. E este esforço, para quem está disposto a percorrê-lo, acho que abre sempre coisas para explorar. Agora que fizemos estas apresentações todas, conhecemos uma série de pessoas que achámos que seria altamente contribuírem com textos. Vamos tentar persuadi-las a fazerem-no. Mas não sabemos se isto vai dar de facto um salto em que, de repente, estão textos a chegar-nos que não queremos. Acho muito improvável, mas vai ser um problema com o qual será fixe lidar. Enfim, é um problema com que ainda não lidámos, mas que pode acontecer.
Por exemplo, com a Internacional Convivialista, eu achava altamente ter um texto deles e tentar perceber como é que se ligam com as questões da agroecologia e do acesso a terra, que estão ausentes desse manifesto. E no número 2, o que para nós era fixe era ser mais explícito em relação a cada um destes três pontos [do subtítulo]. Ter mesmo uma secção só dedicada ao acesso a terra, à agroecologia, mas sempre a tentar lançar as pontes para os outros dois pontos do triângulo, porque para nós só faz sentido cada ponto em relação com os outros.
Madalena: E também acho que, quando pensamos em convidar pessoas, há muita gente que gosta de pensar sobre estas coisas, mas não tem necessariamente o hábito de escrever sobre elas. E é também um desafio porque é um bocadinho intimidatório e há o fantasma da academia e do intelectual.
Pedro: Pois, como a Madalena está a dizer, às vezes as pessoas podem ter pudor em avançar, porque acham que isto é um território dos outros.
Madalena: E o que nós queríamos é que a Poucaterra fosse um território de todos e não apenas de quem já praticou o escrever.

Apresentação da Poucaterra na Livraria Gato Vadio, no Porto
Gostava que me falassem um pouco do mapa da agroecologia.
Madalena: Então, o mapa veio desta vontade de juntar testemunhos e, simultaneamente, de sabermos que nem toda a gente vai escrever para a revista. Há pessoas que estão muito focadas no trabalho prático e na vivência e achamos que, conhecendo o que existe em Portugal, talvez a comunidade da Poucaterra se alargue um bocadinho. E isso não tem que ser necessariamente só para partilhar conhecimentos; às vezes, pode ser só para saber que há um projeto aqui ao lado e vou lá pedir um copo de água. Ou seja, é não só conhecer a agroecologia e as formas diferentes como as pessoas ocupam o pequeno acesso à terra que têm, mas também promover a convivialidade entre quem se interessa pela revista.
Pedro: Na nossa cabeça o mapa ia-se enchendo de pontinhos, queríamos ter um separador no site onde eles estivessem permanentes e a cada número acrescentar, ir povoando esse mapa. O que eu suspeito é que, para o número 2, vamos ter de ser nós a ir procurar sítios e metê-los no mapa, com autorização, claro, esperando que isso crie algum balanço para outras pessoas irem fazendo o mesmo e torná-los visitáveis. Agora, isso tem uma responsabilidade grande, porque estamos a pôr projetos no mapa que, de repente, podem ser visitáveis por pessoas indesejadas. E, para nós, é importante perceber como é que isto se faz de uma forma segura para os sítios que avançarem. Era fixe haver uma espécie de código de conduta, de visita, de coisas básicas, não fazer isto, não fazer aquilo… Mas, se calhar, isto também é a minha veia ditatorial a achar que é preciso e se calhar não é, e vai tudo na base da convivialidade. Enfim, é uma preocupação.
Madalena: Acho que na criação da Poucaterra a ideia nunca foi que ela ficasse só nossa. Foi sempre que chegasse a mais gente e que as pessoas a tomassem como delas também. E se isso se puder materializar em pessoas reais e em projetos reais, melhor ainda. Eu acho que o mapa da agroecologia, se calhar não vai dar em nada, mas se calhar alguém fica mesmo entusiasmado com esta ideia e vê valor nisto e vê valor em partilhar a sua história e o seu espaço. E se calhar somos uns sortudos e tivemos uma boa ideia.
Pedro: Uma metáfora que às vezes penso sobre a Poucaterra não ser só para nós é estarmos só a fazer uma espécie de hotel de insetos, ou de passarinhos. Depois, se correr bem, eles vão para lá morar. Nós vamos tentar fazer o melhor hotel de insetos possível. Depois, tudo o que vier de bom e de rico serão esses insetos a trazer. E aí já não temos grande controlo sobre isso. A única coisa que podemos fazer é manter esta casinha o mais arrumada e acolhedora possível. Gostávamos que isto fosse, sobretudo, sobre quem contribui para a revista. E que, eventualmente, pudéssemos ter conversas mais alargadas entre as diversas pessoas que contribuem e diálogos dentro da revista. O que nós queremos oferecer é o nosso tempo de trabalho para permitir que isso aconteça e a nossa curiosidade sobre o tema.
Sobre o número 2, o que é que já podemos saber?
Pedro: Isto de comunicar o resultado do número 1 foi mesmo uma coisa difícil para nós.
Nem eu nem a Madalena temos talento particular nem vontade de falar sobre coisas que fizemos. Isto tem sido uma aprendizagem. Por exemplo, ainda não fizemos nada sobre os lançamentos que fizemos no Instagram e sabemos que isto é necessário, para dar a conhecer às pessoas. Mas eu não tenho redes sociais e a Madalena tenta evitá-las ao máximo. Para a semana vamos tentar resolver isto. Ainda temos mais duas apresentações para fazer, uma vai ser na Universidade de Aveiro, o que para mim é importante, para pensar como é que se fala nisto para um público académico sem trair a essência do que estamos a fazer. E eu sinto que só depois deste processo acabar e de percebemos como é que se faz isto da apresentação é que nos podemos lançar para o número 2. Porque por nós, por mim e pela Madalena, tudo isto que estamos a fazer é contra natura e já estávamos a preparar o número 2.
Houve uma série de textos que ficaram mais a menos a meio e que não chegaram a entrar no número 1, era recuperar esses; há as pessoas que fomos conhecendo ao longo dos lançamentos e que gostávamos de trazer agora; alguns autores que gostavam de volta a contribuir, porque curtiram a experiência, ou descobriram a Poucaterra; esta ideia de termos alguém da Internacional Convivialista. E podem aparecer surpresas, de pessoas que queiram participam.
E o nome da revista, como é que surgiu? Porque há vários significados aqui, não é?
Pedro: Eu acho que foi a polissemia da coisa que nos atraiu. Isto é, quando ouvimos o nome é impossível não pensarmos logo em qualquer coisa. E todas as associações que ele permite, para mim, são positivas. A ideia de que há muita gente com pouca terra, a ideia de que temos de começar a depender menos de tanta terra, no nosso modo de vida. E também as minhas reminiscências de infância, de brincar aos comboios e dizer «pouca terra, pouca terra» e aquilo nunca ter significado óbvio para mim e agora encontrar um significado: gostávamos que a revista viajasse. Não estamos preocupados em crescer quantitativamente, ou ter tiragens cada vez maiores, mas gostávamos de crescer qualitativamente. Isto para nós quer dizer andar devagarinho, sem pressa, com passos seguros, curtos, e ir tendo uma confiança cada vez maior nas palavras que usamos para falar sobre isto, e na imaginação que ousamos conjurar a propósito desta curiosidade.
A agroecologia (…) tem uma base social muito importante, de querer produzir comida de forma justa, nutritiva, culturalmente apropriada em relação ao território, à terra onde cresce.
Acho que o conceito que explorámos menos foi o de agroecologia. Querem explicar melhor?
Madalena: Da mesma maneira que a sustentabilidade foi sendo cooptada e utilizada para promover coisas que não é óbvio que ela quisesse promover, a agroecologia também corre o mesmo risco. A agroecologia é um movimento principalmente de agricultores, que começou na América Latina, mas também é uma ciência cada vez mais estudada na academia, e também é uma prática agrícola. É uma forma de produzir comida, alimento. E tem uma base social muito importante, de querer produzir comida de forma justa, nutritiva, culturalmente apropriada em relação ao território, à terra onde cresce. São as coisas que nos fazem sentido, até por promover muito mais produções pequenas e estas dependem muito mais umas das outras e de uma cultura convivialista, e não de uma separação ou de uma comercialização de tudo.
Pedro: Nós nunca vamos propor fronteiras óbvias entre o que é agroecologia e, por exemplo, o que é a permacultura. Não nos interessa essa discussão. Interessa-nos perceber qual é a forma de produzir comida mais alinhada com a possibilidade de convivialidade e, do ponto de vista económico, qual é a forma de produzir comida que possa estar mais autónoma da economia de mercado, em termos, por exemplo, da produção de fertilidade. A economia industrial depende essencialmente da economia de mercado para produzir fertilidade, de cadeias de produção extensíssimas, com nutrientes e combustíveis fósseis a vir de sítios longínquos, e por aí fora. Quando falamos em agroecologia é também o que fazer quando se tem acesso à terra para se produzir comida, o que, do ponto vista cultural está alinhado com a convivialidade na ligação que tem com os saberes tradicionais e ancestrais. Do ponto de vista da produção alimentar, é o que é compatível com os outros dois pontos do triângulo.
Madalena: Quando estávamos a falar de a agroecologia ser apropriada pela narrativa de mercado, uma das coisas que tem acontecido é aprovarem climate smart solutions, como plantas geneticamente modificadas, que aguentam secas e pragas. Mas, na verdade, se nós tivermos curiosidade e aprendermos com o conhecimento tradicional, ou indígena e local, já existem soluções para isso que não dependem de comprarmos nada a ninguém, ou de consumirmos pesticidas e fertilizantes específicos. Na verdade, é só aprendermos com quem está lá há mais tempo e com quem é indígena local e sabe os ciclos daquela terra.
Pedro: Quando eu estava a trabalhar para a academia, íamos falar com agricultores e dizíamos, «vejam estas técnicas agroecológicas que descobrimos», normalmente depois de dezenas de milhares de euros. E alguém dizia lá do fundo, «ó pá, eu faço isso há 30 anos!….». Era assim em quase todas as sessões. Isto é uma indústria, não é? A própria investigação alimenta uma série de pessoas.
Revista Poucaterra
https://www.poucaterra.pt/
revista.poucaterra@gmail.com
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Entrevista de Ana Queijo, publicada na edição #46 do Jornal MAPA [Jul.-Set. 2025]
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