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Lendo: Curdistão em mudança

Curdistão em mudança

Curdistão em mudança


Abdullah Ocalan, 27 de Fevereiro de 2025. Encarcerado desde 1999 na ilha-prisão turca de Imrali, e após vários anos de completo isolamento, o líder de referência do movimento curdo, quebra o silêncio num apelo de paz intitulado “Paz e Sociedade Democrática”. Com uma aparente abertura por parte do Estado turco ao diálogo, são desencadeadas as circunstâncias para o início de um novo processo de paz, procurando uma resposta final à questão curda e ao conflito armado que assola a região desde 1984, ano em que o PKK – Partido dos Trabalhadores do Curdistão – deu início à luta armada. Décadas de conflito com o Estado turco, dezenas de milhares de mortes de ambos os lados e a classificação internacional do PKK como organização terrorista.

Após o apelo surpreendente de Abdullah Ocalan que anunciava, com condições, o fim da luta armada e a dissolução do PKK o movimento curdo, com o seu ramo armado, as Forças de Proteção do Povo (HPG na sua sigla em curdo), declaram um cessar-fogo unilateral, ao qual o Estado turco não respondeu de forma igual. Simultaneamente, têm lugar encontros entre Ocalan e várias figuras políticas curdas e turcas, congregados na que ficou conhecida como “delegação de Imrali”, e com representantes de outros partidos da oposição e do Estado turco.

Entender o PKK e o seu lugar na sociedade curda
O PKK é criado em 1978 em Bakur, região historicamente curda ocupada pelo Estado turco desde a sua formação. O partido nascia no ambiente político efervescente das décadas de 1960 e 1970, por entre a agitação da esquerda turca e a forte repressão estatal. A natureza ideológica do grupo inicial de estudantes, que formava este novo partido, liderado desde o início por Ocalan, era naturalmente e à época a de um partido de libertação nacional marxista-leninista. Em recente entrevista, Cemil Bayik, 74 anos e co-representante do KCK (União das Comunidades do Curdistão), recorda as condições bastante particulares da sociedade curda aquando da fundação do PKK: «As circunstâncias do povo curdo eram muito más. Os movimentos socialistas e democráticos na Turquia tinham sofrido golpes muito pesados. Mais uma vez, o povo curdo, por mais que se revoltasse, por mais que lutasse, enfrentava constantemente massacres, deslocações forçadas e a prisão.» O surgimento do PKK assumiu «um lugar especial na história dos povos do Curdistão. Porque mudou a história de quem enfrentava a extinção. Deu a capacidade aos Curdos de escreverem a sua própria história». Fez com que este povo «voltasse dos mortos».

O último congresso do PKK?
Nos dias 5, 6 e 7 de maio, o PKK realizou o seu 12.º Congresso em dois locais separados nas montanhas curdas de Bashur (Curdistão ocupado pelo Iraque). É declarado de que «a luta do PKK desmantelou as políticas de negação e aniquilação impostas ao nosso povo» permitindo «levar a questão curda a um ponto em que pode ser resolvida através de políticas democráticas». Seguindo o apelo de Ocalan anunciam que «todas as atividades realizadas sob o nome de PKK foram encerradas», assim como o «método da luta armada».

A avaliação destas palavras deve ser cautelosa e não permite, no atual contexto político, traçar conclusões. Importa recordar que o processo de paz agora proposto não é inédito. Em 1993, Ocalan tomara a primeira iniciativa na criação de um processo de paz para resolver a questão curda. O processo de paz falhou após o presidente turco Turgut Özal, o general Eşref Bitlis e toda a sua equipa terem sido mortos num misterioso acidente de aviação nesse mesmo ano. Em 1995 e 1996, novas tentativas de processos de paz falharam e o cessar-fogo unilateral declarado em 1998 fracassa com a detenção de Ocalan no Quénia no ano seguinte. A sua detenção conduz o PKK a tempos conturbados, a parar com a luta armada e a anunciar em 2002 a sua dissolução. O momento é sobretudo uma mudança de paradigma. Sucede-lhe sem outra designação, um PKK que apresenta agora um projeto ideológico, desenvolvido inicialmente por Ocalan na prisão, assente no Confederalismo Democrático, na Ecologia Social e na libertação da Mulher. Mantém-se a confrontação armada e os últimos processos de paz, de 2009 a 2015, fracassam resultando em violentos confrontos e massacres nas grandes cidades curdas.

Após 52 anos de luta, o Estado turco vê-se hoje numa posição difícil e impossível de resolver com políticas militares. Por outro lado, o PKK demonstrou ser um movimento revolucionário que se tem destacado pela sua capacidade de mudar e de se adaptar, através da autocrítica e da análise das novas circunstâncias que surgem, como a mudança de uma solução de Estado-Nação para um paradigma novo baseado no Confederalismo Democrático. A modernização da guerrilha, nas suas táticas e formas de organização foi também um fator-chave para conseguir levar o exército turco, o segundo maior exército da NATO, com todas as suas tecnologias e capacidades militares, a um impasse. O novo apelo à paz de Ocalan, secundado pelo Congresso, é também um reflexo desta característica de adaptabilidade deste movimento.

Não menos importante é o papel desempenhado pelos curdos nas derrotas, contenção e ofensivas sobre o Estado Islâmico que os colocou num distinto patamar da geopolítica, alargando definitivamente a sua abrangência. O projeto de Confederalismo Democrático posto em marcha no Nordeste da Síria e noutras partes do Curdistão implicando a pluralidade de povos, religiões e posicionamentos políticos revelou-se uma via alternativa na região. Para Cemil Bayik, «hoje em dia, o povo curdo atingiu uma fase tal que é uma força de estabilidade, uma força de mudança e transformação e uma força de democracia no Médio Oriente. Hoje, ninguém no Médio Oriente pode alcançar a estabilidade sem os curdos. Os passos dados são históricos. O movimento, que começou como um pequeno grupo, chegou agora ao mundo e tornou-se um movimento universal. Não se baseia apenas na luta pela solução da questão curda; baseia-se na luta pela solução dos problemas da humanidade, baseia-se na luta geral pela liberdade e pela democracia».

O que se segue?
Assim, quando o PKK anuncia a sua dissolução e o fim da luta armada não estamos perante um ponto final numa luta de 52 anos, mas apenas no início de uma nova fase da mesma luta para resolver a questão curda. Podemos estar a assistir a uma nova mudança de paradigma do movimento curdo ou, pelo menos, a um maior desenvolvimento do novo paradigma implementado há cerca de 20 anos? Ou, reduzindo o ângulo possível destas leituras provisórias, é apenas um processo com objetivos claros, como conseguir a libertação física de Abdullah Ocalan e de outros presos políticos?

A única coisa certa é a grande complexidade de fatores externos e internos que podem a cada passo dado mudar a direção do proposto processo de paz. Nesta altura, muito está nas mãos do Estado turco para entendermos para que direção será conduzido este processo de paz. Parece haver abertura, mas naturalmente, pelos episódios do passado, não existe grande confiança no Estado turco, mesmo que, conforme refere Cemil Bayik, este mostre interesse em querer corrigir o conflito Turco-Curdo: «Alguns compreendem isto, alguns estão a discutir o assunto, mas alguns estão a bloquear o caminho para a discussão. Não permitem que toda a gente discuta livremente. Particularmente aqueles que se consideram democratas não devem bloquear a discussão. Devem ser abertos. A Turquia precisa disso.»

A importância de uma solução para a questão curda é por demais evidente para os povos que vivem dentro das fronteiras do Estado turco. Mas é igualmente crucial para a região do Médio Oriente. A questão curda partilha uma história semelhante com muitos outros povos na região, seja o povo palestiniano, impossível hoje de ignorar, ou o povo baloch (no Irão, Paquistão e Afeganistão), que como outros não são notícia. Uma realidade entre povos que ninguém desejaria ver partilhada: feita de genocídio, repressão e de ocupação. Uma realidade vivida desde sempre pelo povo curdo.


texto da Plataforma de Solidariedade com os Povos do Curdistão, publicado no Jornal MAPA nr. 46 [Julho-setembro 2025]

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