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Lendo: 2055, um mundo sem extrativismo

2055, um mundo sem extrativismo

2055, um mundo sem extrativismo


Covas do Barroso, agosto de 2055. Este ano, a acampada virou um imenso festival.
O recinto estende-se pelos baldios fora, do tamanho da área que outrora quiseram destruir…para fazer minas de lítio! Fala-se portuguêse esperanto — língua que, sem ser obrigatória, toda a gente sabe falar. Simbolicamente, o encontro abriu com a destruição da última arma.

Foi por volta de 2040 que se começou um inventário de todo o equipamento militar. Foi fundido e reciclado para criar recursos para o bem comum. Muito do aço foi utilizado para refazer caminhos de ferro.

Há cerca de duas décadas que utilizamos o “lixo”, os desperdícios da sociedade que colapsou, como os nossos recursos. Desmantelámos as fábricas e refinarias, usamo-las como as novas “minas” de materiais. Vivemos numa economia circular, todos os objetos são desenhados de forma a serem duradouros, reparáveis, reutilizáveis e recicláveis, reduzindo a necessidade de novos materiais.

A energia, que há 30 anos ainda era centralizada e distribuída de forma completamente danosa, hoje é partilhada, através de comunidades energéticas. Usamos o sol, o vento, a geotermia, a água, a gravidade, a energia potencial, para produzir, armazenar e transformar energia de forma local. As patentes foram abolidas, e hoje a ciência é livre e partilhada.

Porque não vivemos numa sociedade materialista, de consumo, não temos de trabalhar tanto. Temos mais tempo livre para passar com família e amigos e nas coisas que realmente importam. Não somos forçadas a ganhar um salário nas cidades, e pudemos regressar ao campo e reconectar com a terra.

Estamos organizadas em comunidades mais pequenas, a maioria no mundo rural. Localmente, podemos tomar melhores decisões, decidindo o que está mais bem alinhado com cada ecossistema e contribuindo para a sua regeneração. Trabalhamos a terra em comum, com base na agroecologia. Os princípios ecológicos guiam a vida, a agricultura, a relação com os animais. Há agroflorestas com árvores de fruto de acesso livre. Há cantinas comunitárias pelas vilas e bairros. Há uma conexão espiritual com a comida.

Estabelecemos manchas em que ninguém habita, ninguém toca, ninguém vai sequer apanhar lenha: são simplesmente deixadas à vida selvagem não humana.

Os nossos habitats têm espaços comuns de partilha e espaços individuais de repouso. Encontrámos um equilíbrio entre o trabalho comunitário e as nossas paixões pessoais.

Passámos por um processo de descentralização do poder e da governança. Há muita transparência e empatia a nível local e as pessoas sentem interesse em participar nas decisões que lhes dizem respeito. O sentido de comunidade e de colaboração é central na nossa visão política. A vida comum não é focada na produtividade nem no crescimento. É centrada nos cuidados, com atenção à gestão de conflitos. O direito ao ócio e à sesta estão consagrados na constituição.

Recuperámos a figura da artesã e do artesão, da e do mestre, a passagem de conhecimento ancestral profundo, ao longo de gerações. Cada comunidade tem hoje um ou vários especialistas, ferreiros, carpinteiros, que suprem as necessidades da comunidade e disponibilizam esse conhecimento. A sabedoria ancestral é parte dos cuidados de saúde. A terapia é normalizada e acessível, pelo que muitos traumas já foram sanados.

Vivemos numa sociedade que aboliu a propriedade privada. O usufruto dos bens é gerido de forma cooperativista consoante as necessidades de cada uma.

Algumas comunidades têm um Rendimento Básico Incondicional para todas. Outras aboliram o dinheiro, e têm bancos do tempo e sistemas mais diretos de trocas. O trabalho nas nossas pequenas comunidades organiza-se por uma lista de tarefas, e as pessoas podem ir alternando por essas várias tarefas que têm de ser feitas para sustentar a vida.

Cada comunidade funciona como uma célula, e tem relações, interseções, com outras células, que estão mais perto a nível geográfico. Podem ser pontos de comunicação, mas também de conflitos. E estes podem gerar novas células, novas comunidades.

Hoje, o sul da Península Ibérica é um deserto. Há menos chuva, e muita água continua poluída. Mas há muito que deixou de haver contaminação das fontes e dos rios por minas e outras indústrias. Como já não existe agricultura intensiva, que consumia 80% da água, e porque ajudamos o solo a reter água, temos abundância de água potável para manter comunidades rurais saudáveis.

Nos espaços urbanos, generalizou-se o transporte público e a infraestrutura ciclável, e quase não há veículos privados.

Os aviões praticamente acabaram. A mobilidade é livre, mas muito mais lenta e reduzida. Sem combustíveis fósseis e sem minas, não existem movimentos em massa. Todas as pessoas são livres de se mover, como sempre aconteceu — simplesmente fazem-no de outras formas. Num encontro como este, tão grande e tão especial, as viagens para chegar ao Barroso são tão ricas quanto o próprio festival.

E como chegámos aqui?
Para que hoje todos os adultos estejam a fazer aquilo que sonhámos, aquela vez em 2024 quando nos reunimos no Barroso, tivemos de começar a pensar nisto há muito tempo.

Em 2030 deu-se uma revolução na educação, uma reformulação completa do sistema educativo, que deixou de ser aquela formatação que antes tínhamos.
O ensino é desde então focado no cuidado: cuidado da terra, cuidado umas das outras, cuidado de si própria. Mudámos completamente o que consideramos conhecimento essencial para viver em comunidade: comunicação e gestão de conflitos, medicina, adaptação a climas desérticos…

As comunidades organizaram-se para fazer uma superescola popular, onde se ensinam os saberes necessários para viver no campo. Antes das pessoas que ainda tinham esses conhecimentos partirem, resgataram-se vários saberes ancestrais.

Nos anos 2030 houve uma grande crise, com secas e incêndios que afetaram a vida de todas as pessoas. Houve uma explosão de conflitos, muito caos, muitas mortes. Deu-se o colapso de vários recursos e um enorme êxodo climático.

O colapso motivou um movimento social de reapropriação dos recursos. Na ausência de abastecimento público ou limpeza das ruas, as pessoas começaram a organizar-se em comunidades. Houve uma expropriação e uma redistribuição total das grandes riquezas.

Muitas pessoas mudaram-se da cidade para zonas rurais. Forçosamente, deu-se uma reforma agrária, e a terra foi redistribuída e reclamada por quem queria trabalhar com ela. Juntámo-nos a pessoas que pensavam como nós e organizámo-nos em cooperativas, de baixo para cima.

A partir de 2035, instaurou-se uma verdadeira democracia participativa. As pessoas começaram a envolver-se ativamente nas decisões que impactam as suas vidas e decidiram abolir a extração de petróleo, a mineração, a agricultura intensiva. Instaurou-se uma lei do ecocídio, e através dos tribunais foi-se atrás de todos os crimes ambientais. Decidiu-se que não haveria mais subsídios para atividades e projetos extrativistas. Sem financiamento externo, os projetos industriais de larga escala tornaram-se inconcebíveis. Com o fim do petróleo e do extrativismo, acabou também o capitalismo.

Os últimos anos têm sido de estabilização das comunidades, de plantação de árvores, de estabilização climática.

Houve períodos muito conturbados e continuamos a aprender a organizarmo-nos. Mas a nossa interdependência é clara, em relação aos outros seres nas nossas comunidades, às comunidades à nossa volta, ao lugar que habitamos.

Este conceito de interdependência fez com que questões como a criminalidade e a segurança se tornassem mais simples. Depois de anos de muita violência, o sentimento de interdependência, de pertença e de poder partilhado faz com que as comunidades que temos hoje prosperem em paz, de forma justa e ecológica.

Avançamos.


Este relato é baseado nas ideias partilhadas na sessão participativa “2055: Um mundo sem minas. Que alternativas ao extrativismo?”, decorrida numa manhã da Acampada em Defesa do Barroso de 2024.

O exercício é parte do guia Breaking free from mining, da Seas at Risk, que propõe levá-lo às várias comunidades, em grupos pequenos. Depois de sermos capazes de imaginar horizontes, o exercício propõe regressar ao presente. Como podemos fazer planos de ação, trabalhar e caminhar rumo a eles?

O guia pode ser descarregado livremente, em inglês e em castelhano:
https://bit.ly/4gMEyKi


Artigo publicado no JornalMapa, edição #43, Outubro|Dezembro 2024.


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Jornal Mapa

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