
Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: Referendo popular: uma ferramenta criada sem a intenção de ser usada
No verão de 2022, um grupo de habitantes da cidade de Lisboa lançou as sementes do que viria a ser um longo processo: a recolha de 5.000 assinaturas, em papel, para propor um referendo local de iniciativa popular à Assembleia Municipal de Lisboa, trilhando um caminho legal nunca antes percorrido. O objetivo deste referendo é reverter licenciamentos de Alojamento Local (AL) em Lisboa, impedindo essa atividade económica em casas que possam cumprir a sua função social: a habitação. Falámos com a Teresa Mamede e com o Manuel Martin, do MRH, que nos contaram que «houve momentos de esperança, mas sabíamos que o mais provável era que não nos deixassem chegar ao fim. A nossa ideia, desde o início, era testar os limites do campo democrático».
Explorar um AL numa fração habitacional era, aliás, ilegal de acordo com o Código Civil e o Supremo Tribunal de Justiça, para além de contrário à Constituição, apesar de permitido pelo Regulamento Municipal do AL. Duas semanas antes da entrega das 6.612 assinaturas à Assembleia Municipal, no início de dezembro de 2024, o governo aprofundou esta incoerência, ao legalizar a exploração de AL em imóveis habitacionais. Convenientemente, ao TC bastou declarar que, embora se trate de alojamento local, este não pode ser regulado por municípios. O TC acrescentou ainda que o problema da habitação é um problema de escassez de imóveis, apesar de os dados publicados pela OCDE desde 2021 apontarem o contrário: Portugal é um dos países com mais casas por habitante e o país com mais casas desocupadas quando se inclui AL, que representa mais do que 60% das casas desocupadas.
O TC permitiu-se até considerar que só as falhas burocráticas do processo seriam suficientes para chumbar a proposta. Como repara Teresa, «não faz sentido: se há vícios processuais, deve ser dada a oportunidade para sanar esses vícios, para depois então se analisar o caso». Faltavam, por exemplo, as assinaturas dos mandatários: um grupo de 15 pessoas que representa a proposta na Assembleia Municipal. «Como é que íamos saber? Não está na lei do referendo local, e a Comissão Nacional de Eleições disse-nos que não era preciso». Como se tem vindo a tornar comum em processos participativos institucionais, tudo parece estar pensado para garantir que a participação não acontece. «As exigências são enormes. Nós temos 5 dias para responder a um acórdão do TC com 34 páginas. Isto implica uma capacidade de responder muito rápido, e como é que fazes isso se és um grupo de cidadãos sem grandes recursos? No MRH, a maior parte das pessoas trabalha. Chamam-nos para audições com pouco tempo de antecedência, durante o horário laboral. Isto não é compatível com um processo participativo. É uma ferramenta feita para não ter uso popular».
Para responder ao acórdão, o MRH resolveu seguir algumas pistas. «Agarrámo-nos às declarações de voto de dois juízes conselheiros que não concordam com toda a argumentação do acórdão. E o que é dito é que os municípios têm, sim, competência para regulamentar o AL. Tem a ver com a forma como as perguntas do referendo estão formuladas – é uma questão de português». Por exemplo: uma das modalidades do AL – que representa menos de 1% dos casos – é o aluguer de quartos numa casa que está, de resto, habitada. Nesses casos, as licenças de AL poderiam manter-se porque não existe uma violação da função social da habitação. Reformular as perguntas do referendo de forma a atender a esta diferença permitiria que a proposta regressasse ao TC sem desvirtuar a sua principal reivindicação: devolver casas à cidade.
O regresso da proposta ao TC, no entanto, está novamente dependente de aprovação na Assembleia Municipal de Lisboa. Na Assembleia realizada no dia 27 de janeiro, para surpresa da audiência, a proposta foi retirada da ordem de trabalhos. As pessoas ali presentes cantaram “O Feitiço” da Kantata do Tecto Incerto – desejando: “Possa o feitiço virar-se contra o feiticeiro” – e foram expulsas violentamente pela polícia. À data de fecho desta edição, o MRH acredita que a proposta não voltará ao TC, morta pelo que descrevem como um «espectaculo muito degradante». «Tudo isto tem sido aproveitado pelos principais partidos da Assembleia, PS e PSD, para se atacarem um ao outro». A incapacidade de o poder político responder de forma séria à crise da habitação semeia cada vez mais descrédito. «Mesmo que se esgote a parte formal do processo de referendo, isso não esgota o movimento», diz Teresa. E Manuel acrescenta: «Eu, por exemplo, juntei-me quando encontrei alguém do MRH numa recolha de assinaturas. [O referendo] criou a oportunidade de ter conversas com as pessoas sobre a função social da habitação. E isto vai continuar, independentemente do que aconteça». E sonham: «já pensámos até fazer um referendo popular auto-organizado… Em que os centros sociais da cidade, e associações, poderiam substituir as instituições!». Apesar das instituições ou por causa delas, a força do MRH cresce. «Nós estamos a fazer isto porque queremos testar a possibilidade de uma mudança radical na cidade através de um instrumento de democracia direta. Isto era um teste e a democracia está a falhar o teste».
Artigo publicado no JornalMapa, edição #44, Janeiro|Março 2025.
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