Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Somos muitas e não somos números. Um relato do 4º Acampamento em Defesa do Barroso
O programa teve início oficial a 14 de Agosto, com a exibição do filme Lavra, que aborda as dramáticas consequências da exploração mineira sofridas por diversas comunidades brasileiras, vendo «o chão a ceder sobre os seus pés» e «o céu a cair sobre as suas cabeças». No entanto, nos dias anteriores várias foram as pessoas que acorreram a Covas do Barroso, oferecendo os seus dias de verão para garantir que todas as necessidades logísticas do evento seriam satisfeitas.
A “acampada” foi precisamente caracterizada pelo envolvimento das participantes, responsabilizando-se pelas tarefas diárias segundo princípios de auto-gestão e apoio-mútuo, tornando-a num fervilhante laboratório de horizontalidade. A estrutura organizativa desdobrou-se em grupos de trabalho, cujas responsabilidades iam desde a limpeza e a confecção de refeições à (celebr)ação e ao cuidado inter-pessoal. As refeições, que alimentariam mais de 300 pessoas, ficaram a cargo dos colectivos Maldatesta, Mula, Disgraça e Rede de Apoio Mútuo de Lisboa. A loiça, por sua vez, era lavada pelas próprias participantes sob o espigueiro da Quinta do Cruzeiro, onde outrora fora armazenado o milho após ser colhido. Ironicamente, este complexo senhorial do século XVIII passa, nos verões dos anos 2020, a testemunhar práticas vivas de organização anarquista.
O dia seguinte foi marcado por uma conversa com Paula Oliveira, que se dedica a fomentar a produção têxtil através de técnicas tradicionais, sobre a utilização de linho e de lã no Barroso, seguida da escuta de histórias partilhada pelas habitantes locais, que se estenderam pela «caminhada sensorial» e pela «caminhada da memória», nas quais os forasteiros foram convidados a enveredar.
Ao cair da noite, o Largo do Cruzeiro encheu-se de gente para assistir ao Grupo Teatral de Boticas, que trouxe uma leitura encenada do livro “Lítio”, lançado essa noite. Seguiu-se a estreia nacional do filme “A Savana e a Montanha”, de Paulo Carneiro. Um filme de tom satírico à estilo western, protagonizado pelos próprios habitantes do Barroso, que estreara em maio no festival de Cannes e de onde se destaca a máxima «somos poucos, mas não somos números».
O programa de dia 16 começou com uma contextualização sobre o projecto de mineração em Covas do Barroso, combinada com a crítica ao processo de expansão energética (disfarçado de «transição energética») em Portugal, contando com a presença de representantes da Mútua de Pescadores de Setúbal. Antigos mineiros, da Associação de ex-trabalhadores das Minas de Urânio (ATMU), partilharam a sua luta de mais de duas décadas pelos direitos de quem teve de, como nos versos de Sérgio Godinho cantados hoje no Barroso, «construir as cidades pr´ós outros, carregar pedras, desperdiçar muita força p´ra pouco dinheiro». Denunciaram a violência exercida por qualquer grande projecto de mineração sobre a saúde das pessoas, das comunidades e da natureza, e afirmaram a sua solidariedade com a resistência de Covas e de todas as populações ameaçadas.
A tarde foi brindada com sete oficinas, realizadas paralelamente: escrita criativa e performance, ilustração naturalista, construção de máscaras barrosãs, criação de meias de lã, danças de rancho, visita ao ecomuseu do Barroso, introdução à ecologia e cuidado da vida para crianças. Houve ainda lugar para uma conversa sobre solidariedade com o povo palestino, com uma faixa em pano de fundo onde se lia «Do Barroso à Palestina, a terra a quem a trabalha».
A noite foi embalada pela contadora de histórias Estefânia Surreira, pelo Grupo Couto de Dornelas, ao som do qual o largo inteiro se tornou um tremendo baile tradicional, e pelo inebriante Coro dos Anjos, que partilhou estar a experienciar um processo de horizontalização, na ausência do seu mentor Edgar Valente.
Na manhã de dia 17, abriu-se espaço para o pensamento utópico na sessão “2050: um mundo sem minas”, onde se esboçaram colectivamente alternativas ao modelo extractivista. A tarde foi novamente repleta de actividades simultâneas, por sua vez repletas de participantes: oficinas de herbalismo, crochet, cante alentejano e teatro para crianças, assim como uma conversa sobre os impactos da mineração. Em seguida, sentados numa grande roda de escuta, membros do colectivo Vozes de Dentro leram cartas de mulheres encarceradas e estimularam reflexões sobre a privação da liberdade no sistema prisional em articulação com a análise dos mecanismos igualmente opressivos das instituições psiquiátricas.
As celebrações nocturnas contaram com um espetáculo acrobático, que teve lugar no campo de futebol da aldeia; o surpreendente concerto-performance de Buterflai, que ecoou as anteriores histórias carcerárias – com ritmos de cadeados a evocar memórias da escravatura histórica e contemporânea – e celebrou a resistência e a criatividade em meio rural; e a performance musical «Volta ao Mundo em 80 Minutos», por João Barroso, músico autodidata das montanhas do Gerês, que quebrou barreiras entre artistas e público, convidando os presentes a tomar os instrumentos e participar numa criação coletiva.
O domingo, dia da celebração, despertou para a criação de alianças entre movimentos nacionais e internacionais que resistem à mineração, com a presença de companheiros do Montalegre Com Vida, que lutam contra o projeto da Mina do Romano, em Morgade, pela empresa Lusorecursos; companheiras da Ação Floresta Viva, na Serra da Estrela, que lutam contra a expansão anunciada da mina de Alvarrões pela Sociedade Mineira Carolinos, atualmente em consulta pública; companheiras galegas de Suído-Seixo; e de companheiros franceses de Allier-Echassiéres.
Ao cair da tarde, as e os participantes juntaram-se à entrada da quinta para marcharem em direção à vizinha aldeia de Romainho – que dista apenas 200m dos terrenos em que a Savannah tenciona levar a cabo os seus projectos de mineração. «Querem dar cabo das serras, Barroso / Nós não vamos permitir / O povo vai resistir» – entoavam-se os versos do cantautor barrosão Carlos Libo, à medida que o pôr-do-sol conferia às montanhas um impressionante contorno rosado.
No largo de Romainho, diante de uma parede granítica decorada com ferramentas de trabalho e de luta (como a icónica sachola), maçarocas avermelhadas, vinhas contorcidas e uma cabaça tornada candeeiro, teve lugar uma performance onde pássaros humanos, adornados com máscaras de junco criadas durante a acampada, aludiam a um futuro em que a luta contra a mineração terá sido ganha e em que os guerreiros podem voltar a ser gente. Em seguida, leu-se o comunicado da nova Rede Global Anti-Extractivista, apelando ao cuidado, ao apoio mútuo e à solidariedade internacional contra as pulsões auto-destrutivas do capitalismo neoliberal.
A música prolongou-se pela noite dentro, com vários momentos comoventes, como a atuação do próprio Carlos Libo, a música tradicional galega interpretada por crianças e adultos, ou a participação da Dona Albina, habitante de Covas do Barroso e presença regular nos turnos de bloqueio das máquinas, que brindou a multidão com uma cantiga da sua infância e com o fado que marcara a sua vida.
No último dia da acampada falou-se sobre práticas comunitárias ibéricas, com destaque para os baldios, a sua importância histórica e atual e o seu funcionamento, com depoimentos de Nelson Gomes, presidente da associação Unidos em Defesa de Covas de Barroso e uma das figuras fundamentais na luta contra a mineração juntamente com a sua esposa, Aida Fernandes, presidente do Conselho Diretivo dos Baldios das Covas do Barroso. Seguiu-se uma conversa com membros da comunidade de baldios de Montes de Couso, na Galiza, que apresentaram uma fascinante experiência de gestão agroflorestal e organização económica para benefício comunitário.
A tarde contou com a apresentação dos livros La Sanabria Anarquista de los anõs 30, de Carlos Coca, e The Sytem is Killing Us, de Xander Dunlap. Ao pôr-do-sol, encerrou-se o programa de reflexão colectiva em conversa com o sindicalista Bruno Candeias sobre as pontes entre os movimentos ecológicos e os movimentos laborais. Até a escuridão começar a tomar conta da tenda principal, foram-se tecendo ligações entre a mineração de lítio, a requalificação do complexo industrial de Sines, a tão prometida fábrica de hidrogénio verde, o tão cobiçado data center, as centrais fotovoltaicas que se multiplicam pelo país e a voracidade do capital internacional para aumentar infinitamente a produção e o consumo energéticos num planeta onde os recursos são finitos e a vida vulnerável.
À luz da lua cheia, O Gajo tornou-se lobo com o uivar da sua viola campaniça, e Säflor embalou a noite com a sua inspiradora recolha de canções tradicionais ibéricas e uma voz de arrepiar tanto os fãs de música softezinha como os punks mais hardcore.
Enquanto a população de Covas recupera a calma das lides diárias e centenas regressam às suas terras e aos seus caminhos pelo país e mundo fora, ficam a força deste encontro, as sementes de cuidado e de resistência, a chama de «vida verdadeira» que se viveu durante uma semana, e que se desejam capazes de travar o projecto mineiro com que o governo e a Savannah ameaçam os animais, as plantas, os rios, as montanhas do Barroso, com que nos ameaçam a todas nós.
Texto de Filipe Olival e Francisco Colaço Pedro
Imagens de Catarina Leal, Jan Kleinpeter e Florian Scheible
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