Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Na Cozinha Migrante dos Anjos serve-se solidariedade sem fronteiras
O chef remexe com a colher de pau a enorme panela fumegante. «Chamamos-lhe thiebou guinar», conta Gora, com um largo sorriso. «É o melhor prato do Senegal!»
Começou de manhã cedo mais um dia de azáfama da Cozinha Migrante dos Anjos. Das colunas de som, o canto quente do músico uolofe Ndongo Lô enche o centro social anarquista Disgraça, na Penha de França.
«Aprendi a cozinha no mar. Sou pescador, passava 10 dias, 15 dias embarcado. Mas aprendo cada dia», conta o jovem senegalês. «Não sou eu apenas, vimos preparar a refeição em conjunto.»
«Tudo isto é amor», diz Cheikh. «É uma família. Quando fazes algo sem amor, em breve desistes. Quem quer fazer, faz. Quem não quer, gere outra coisa. Enquanto vimos cozinhar, outros ficam no acampamento para guardar os nossos pertences», explica.
Luzia, uma das vizinhas que dá apoio ao grupo de migrantes, vai varrendo o chão. «Sentimo-nos em casa desde o primeiro dia», conta. «Ver a convivência entre os cozinheiros e as pessoas da Disgraça é uma delícia».
Olivier, vizinho da Penha de França, e Papa, outro dos jovens vindos do Senegal, debruçam-se sobre uma tábua com um quadriculado desenhado, numa partida de damier, a versão do jogo das damas popular na África Ocidental.
Pelas duas da tarde, o almoço está pronto. É costume então oferecer-se refeições às pessoas que ajudaram e às pessoas da Disgraça. Depois, num ápice, carregada por dois jovens, a pesada panela sobe os degraus do centro social para o clarão e o calor da rua. Ao longo dos passeios, desce a Penha de França. E aterra, enfim, no Jardim António Feijó, no meio do acampamento que há seis meses se instalou junto à Igreja dos Anjos, à margem da Avenida Almirante Reis.
«É uma espécie de ritual. Descer até ao acampamento, distribuir os pratos a toda a gente. A conclusão de um processo coletivo», observa Olivier. Cheikh serve, uma a uma, perto de uma centena de refeições. Alimentam pessoas de todo o lado, estrangeiros e portugueses.
O ciclo acaba depois com a lavagem das panelas, dos pratos reutilizáveis, da cozinha, que deixam impecável.
E assim foram, nos últimos dois meses, confecionadas mais de sete mil refeições.
Basta que certa luz de seus raios aqueça
A semente que jaz na sua leiva escondida,
Para que ela, a sorrir, desabroche e floresça,
De perfumes enchendo as estradas da Vida.
António Feijó
É aqui, no Jardim António Feijó, que Cheikh, Gora e Papa vivem há quatro meses, acampados, entre dezenas de pessoas. Foi a partir dos dias frios e chuvosos de janeiro que as tendas se começaram a acumular. A maioria são nacionais do Senegal, como eles, e da Gâmbia, mas também tem havido timorenses, brasileiros, guineenses e portugueses. Muitos aguardam por resolver as suas situações junto da AIMA, Agência para a Integração Migrações e Asilo, situada ali mesmo ao lado.
«Fizemos um pedido de asilo. Cinco dias depois exigiam-nos que saíssemos do país», conta Cheikh. «A situação no acampamento é muito dura. Passamos noites de mau tempo sem dormir. Passámos dias inteiros sem comer», recorda Gora.
«Muitas pessoas passam e, sem dizer palavra, começam a filmar-nos e a tirar fotos. É humilhante», conta Papa. Algumas das imagens chegaram até eles depois de correrem as redes sociais. «Nós procuramos tranquilizar as nossas famílias. Dizemos-lhes que tudo se passa bem. Porque a vida anterior não era fácil…»
«O que queremos é o normal para todas as pessoas: estar legais e ter direito a uma residência», diz Cheikh. «Queremos poder trabalhar», resume Papa.
«Vimos de diferentes países e encontrámos-nos todos aqui com o mesmo objetivo: procurar um trabalho. Como estamos na mesma situação, tornamo-nos uma família», conta Gora. «Somos todos irmãos», acrescenta Papa.
Mesmo em frente ao acampamento, está o enorme refeitório, balneário, e centro de acolhimento para pessoas em situação de sem abrigo da Santa Casa da Misericórdia, que exige registo de morada em Lisboa. No jardim, estão casas de banho públicas, que só abrem certas horas. Num dos lados, o Centro de Saúde da Penha de França. No outro, a AIMA. «Está ali tudo», diz Luzia, «e eles não têm acesso a nenhum deles».
Com uma emergência humana à vista, no início de Abril, a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia de Arroios afixaram cartazes pelo jardim. Em letras coloridas, lia-se:
A 9 de abril, um contingente da PSP, com pessoas da Comunidade Vida e Paz, Santa Casa, Junta de Freguesia e SNS, começa uma operação no jardim.
«Passo pela Igreja dos Anjos no meu caminho de casa. Assisti ao aumento do número de pessoas em situação de sem abrigo até o espaço ficar sobrelotado. Falava com elas, alguns dias levava comida e tentava entrar em contacto com os coletivos para ver o que podíamos fazer», explica Luzia. «E nesse dia fomos lá para cobrir os acontecimentos e impedir um possível despejo.»
Segundo o comunicado oficial, o objetivo da ação era «dar resposta a todas as pessoas vulneráveis que ali se encontram, contribuindo ao mesmo tempo para o bem-estar dos moradores daquela zona da freguesia de Arroios, cuidando do equipamento urbano, da saúde pública e dos espaços verdes.»
«As prioridades das instituições são ativar um protocolo de higiene social e urbana acima da vida das pessoas nas situações mais vulneráveis», denunciaram então vários coletivos e organizações, entre eles Stop Despejos, Humans Before Borders e SOS Racismo, para quem a verdadeira intenção tem sido «despejar o espaço de pessoas que não ficam bem no postal turístico», recorrendo «à intimidação e a práticas ilegais», como fazer entrevistas de madrugada e sem direito a tradução.
A indignação e a solidariedade juntou pessoas e coletivos e conseguiu travar as tentativas de expulsão. E desencadeou uma rede de apoio que se tece até hoje.
A 14 de abril, a Festa do Cinema Italiano exibia no Cinema São Jorge o filme Eu, Capitão, de Matteo Garrone, sobre a dramática aventura de dois jovens de Dakar para chegar à Europa.
«Estão todas estas pessoas aqui, e há um filme ali em baixo que fala da sua história», pensou Luzia. Decidiram contactar a organização do festival. A resposta? Uma centena de bilhetes para a sessão e um momento para falar sobre a sua situação.
Luzia não esquece a força da imagem daquelas 60 pessoas migrantes a entrar no São Jorge. Empunhavam cartazes onde se lia «Isto não é ficção, é a realidade. Está a acontecer na tua cidade». «Essa noite, subiram ao palco, pegaram no microfone e explicaram à audiência que a sua longa travessia ainda não terminou. Agradeceram a Portugal ser um país acolhedor e apelaram à solidariedade de todos.»
Entre a plateia, estava uma amiga de Olivier, chocada e sensibilizada com o que via e ouvia. No dia seguinte foi aos Anjos trazer comida, e falou com vários amigos. Um deles era Olivier. «Fomos um dia, fomos dois, conhecemos as várias pessoas que já davam apoio há mais tempo, e fomo-nos envolvendo cada vez mais.»
O festival doou as receitas da bilheteira. As pessoas perguntavam como podiam ajudar. A maior urgência no acampamento era clara: alimentação. Contactou-se espaços e, em conjunto com as pessoas acampadas, pensou-se como organizar uma cozinha comunitária. «A Disgraça, como outros espaços coletivos com quem falámos, foi espetacular: “aqui têm a chave, e vamos acertando juntas”». Além da cozinha, sublinha Luzia, este lugar proporciona durante algumas horas um espaço seguro, íntimo, a um grupo de pessoas forçadas a morar na rua.
A cooperativa Fruta Feia, que distribui semanalmente cabazes de frutas e legumes que não obedecem às normas estéticas da grande distribuição, ofereceu os alimentos que sobram.
A Cozinha depende dos donativos de todos e do trabalho de dez pessoas, que dedicam 6 horas por dia a comprar e recolher os alimentos, preparar a refeição, limpar a cozinha e distribuir nos Anjos.
Enquanto o verão avança e o acampamento permanece, o apelo à solidariedade com a Cozinha Migrante dos Anjos é hoje tão atual como naquela noite de abril.
Este ano está a ser marcado pela hostilidade do sistema de acolhimento de migrantes. Para emitir atestados de residência, necessários ao processo de regularização, a Junta de Freguesia de Arroios passou em fevereiro a exigir um título de residência, em vez de apenas um passaporte, criando mais um labirinto burocrático. Em abril, o Parlamento Europeu aprovou o novo Pacto para as Migrações e Asilo, prevendo o endurecimento das leis de contenção na entrada, externalização e expulsão do território, reforçando parcerias com países terceiros. E em junho o novo governo apresentou 41 medidas que prevêem aumentar o policiamento sobre migrantes e pôr fim ao mecanismo da «manifestação de interesse», que permite a quem está em Portugal a descontar para a Segurança Social regularizar a sua situação.
Nos Anjos, enquanto as instituições públicas «passam a bola uns aos outros» e declinam responsabilidades, coletivos, associações e advogadas individuais fazem os possíveis para avançar os processos administrativos e apoiar as necessidades das pessoas. Têm tido reuniões com a AIMA e com o Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA).
«Cada qual com a sua disponibilidade, com o que pode trazer. Há pessoas que vêm do âmbito da saúde e podem dar alguma assistência. Pessoas que vêm de lutas antirracistas e podem trazer espaços de escuta. Pessoas que vêm das lutas pela habitação e conhecem as estruturas e formas de abrir caminhos. É rico o conjunto de energias que as pessoas podem trazer. Porque esta luta é transversal», recorda Luzia.
«Pessoas a fazer um processo de regularização, com entrevistas marcadas, continuam super expostas, numa situação de rua. Não é digno. Elas têm de sair da rua e ser alojadas. Além das questões de saúde e de segurança básicas, há a ameaça da extrema direita. Houve momentos muito tensos, de insegurança, de medo.»
O grupo mantém a reflexão sobre como ser solidários mas não assistencialistas, como a solidariedade é uma responsabilidade de toda a gente. «Não podemos suprir as responsabilidades do Estado. Estamos aqui para juntar os nossos corpos e as nossas forças às deles e acompanhá-los até conseguirem os seus direitos garantidos.»
Luzia e Olivier sublinham a importância da «rede de coletivos ativistas, de espaços autogeridos, que não só têm meios e recursos, como integram na sua forma de estar a luta pelos direitos – habitação, trabalho, lutas anti-racistas, de acesso à saúde…»
A convite da Cozinha Migrante dos Anjos, na tarde de 2 de junho, diversos coletivos e habitantes da cidade juntaram-se no Campo Mártires da Pátria, para o convívio «Ninguém é ilegal, a luta é de todxs». «Somos muitas as pessoas que querem um Portugal aberto, solidário, e livre de racismo e xenofobia», lia-se no convite. «Precisamos de mudar a realidade e as políticas que a moldam, e que são experienciadas de forma dramática pelas pessoas migrantes. De promover alternativas ao acesso habitacional, à saúde, eliminar as leis racistas, humanizar os processos administrativos, educar na solidariedade.»
Para os coletivos, «é urgente eliminar a imposição de se deslocar, viver e trabalhar em condições inseguras, que fomentam no imaginário coletivo a ideia de criminalidade das pessoas de um determinado perfil étnico». Defendem a entrada e a residência das pessoas migrantes através de vias seguras, regularizar a situação de todas e garantir os direitos básicos e a dignidade nas condições de trabalho e de vida.
Morte que, sem piedade, uma a uma arrebata,
Como um tufão que passa, as nossas afeições,
E, deixando-nos sós, lentamente nos mata,
Abrindo-lhes a cova em nossos corações.
António Feijó
É o solstício de inverno, a noite mais longa do ano. Numa praia da costa senegalesa prepara-se a piroga, de madeira pintada em cores vivas. «Esperámos que o mau tempo passasse», recorda Gora. E, com alguns víveres, entre dezenas de pessoas, zarpam a bordo do barco de pesca tradicional. Ao longo das costas do Senegal, Mauritânia, Sahara Ocidental, Marrocos, vogam 1.500 quilómetros de oceano, rumo ao arquipélago espanhol das Ilhas Canárias. «A 26 de dezembro de 2023, cheguei a Espanha».
«A travessia pode durar quatro, cinco, no máximo sete ou oito dias», explica Papa. «Muitas pessoas, guineenses, gambianos, malianos, partem em pirogas. Muitos são grandes pescadores. Eu sou pescador, desde criança conheço o mar.»
Mas conseguir chegar também significa mágoa. «Ficámos atónitos. Havia outras pessoas… E, até hoje, nunca chegaram. Nós chegámos, eles desapareceram. Centenas de pessoas, muitos amigos. Não voltei a ver as suas pirogas. Não desejávamos isso. Desejávamos que todos pudessem chegar bem», diz Cheikh. «É traumatizante. É duro. Muito duro.»
Cheikh, Gora e Papa, como muitas das pessoas acampadas nos Anjos, sobreviveram àquela que é hoje a rota migratória mais mortal do mundo.
Perto da árvore icónica do jardim, uma Bela-sombra – também ela vinda de longe, das pampas da América do Sul – tem lugar a reunião regular das pessoas acampadas e das pessoas e coletivos solidários. Uma delas, que fala perfeitamente português e uolofe, a língua mais comum no acampamento, apoia na tradução. «É um momento de fazer um ponto de situação, em termos de processos de regularização e das várias iniciativas», explica Olivier. São as «assembleias uolofe».
«Eu agradeço enormemente às associações e coletivos que nos apoiam. Foi uma mudança enorme, podermos organizar as refeições, ter apoio na documentação. Começámos a sentir alegria quando sentimos todo o amor destas pessoas. Cada dia os vemos, e isso tranquiliza-nos», partilha Gora.
«É uma imensa aprendizagem», diz Luzia. «Dá-me muita força, testemunhar o seu trabalho e a sua generosidade, a forma como se mantêm íntegros e dignos, sempre com um sorriso e uma palavra amável, enquanto vivem uma situação tão desumana e injusta.»
«As pessoas que não nos conhecem julgam-nos pela nossa aparência», afirma Cheikh. «Tudo isso é o racismo». «A aparência é sempre enganadora», remata Gora. «Somos pessoas responsáveis. Não somos ladrões, não somos assassinos, não somos bandidos», diz Papa, a voz assertiva. «Há muitas dificuldades em África, muita pobreza. Por isso arriscámos a vida e viemos cá simplesmente para trabalhar».
«Cada pessoa no acampamento tem a sua profissão», lembram. Há pescadores, alfaiates, soldadores, agricultores, pintores, cozinheiros, carpinteiros, tradutores, empreiteiros. Cheikh gostaria de trabalhar em mecânica automóvel. Para Gora, o sonho é trabalhar num barco de pesca.
«No Senegal, trabalhava o dia inteiro e quase não ganhava dinheiro», recorda Gora. O salário de um pescador senegalês pode rondar os 2,000 CFA, cerca de 3 euros, por dia.
«O governo vendeu o oceano», denuncia-se no país. As licenças dadas aos navios de pesca industrial chineses e europeus, a par das alterações climáticas, causaram o declínio das populações de peixes.
Desde 2022, o Senegal vive um sentimento de «desespero social e político», marcado pela corrupção e a repressão, com inúmeras detenções de opositores ao governo, descreve Fatou Faye, jurista e investigadora sobre jovens e migrações da Fundação Rosa Luxemburgo em Dakar.
Disparou o preço de bens como arroz, óleo ou pão, e um terço das pessoas vivem na pobreza. «Sem futuro, sem a possibilidade de construir uma vida decente, os jovens aqui não têm opção», explicou à revista francesa Le Point. «Quando os teus pais, irmãos e irmãs dependem de ti para sobreviver, partes para ganhar dinheiro no estrangeiro.»
Um cenário familiar também em Portugal, onde, segundo o Observatório da Emigração, 850 mil jovens emigraram nas últimas décadas à procura de melhores condições de vida.
O último relatório do Banco Mundial revela que em 2022 os países mais pobres pagaram valores recorde de dívida externa, com juros cada vez mais altos. De acordo com a Oxfam, a pobreza acentuou-se ainda mais nestes países depois da pandemia. «Estamos a viver uma década de desigualdade extrema, exacerbada pelas empresas multinacionais. Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas, enquanto quase cinco mil milhões de pessoas se tornaram mais pobres.»
Ao crepúsculo, uma piroga lança-se ao mar na vila piscatória de Fass Boye, a norte de Dakar. A bordo leva 101 pessoas, do Senegal e da Guiné-Bissau.
Os ventos contrários complicam a perigosa travessia. Ao sexto dia no mar, abate-se uma tempestade. Ao décimo dia, com as Canárias praticamente no horizonte, o motor cala-se, sem combustível. Fazem remos com pranchas de madeira e fazem turnos a remar. Molham as roupas no mar em busca de consolo do sol implacável. Mas os ventos e a corrente afastam-nos fatalmente do destino.
A cada dia que passa, cruzam-se com cargueiros, repletos de mercadorias a circular livremente pelo globo. A cada vez, gritam até não ter mais forças. Vêem as bandeiras, brasileiras, espanholas, russas, e, por vezes, até os rostos da tripulação no convés. Mal podem acreditar: ninguém vem em seu socorro.
Várias pessoas tentam nadar até aos barcos – e morrem afogadas. A cada dia, alguém sucumbe à fome e à sede. Faz-se uma oração por cada morto e atira-se o corpo ao mar. Até que deixam de ter forças para orar. Até que deixam de ter forças para lançar os corpos ao mar. Os cadáveres acumulam-se a bordo.
Ao trigésimo sexto dia, ao largo de Cabo Verde, um navio de pesca espanhol vem em auxílio da piroga há um mês à deriva. Descobre 38 sobreviventes, corpos pele e osso, mal capazes de se mover. Entre o trauma e as alucinações, revelam a história, passada no verão passado, a meios como a BBC e a Associated Press.
Empurradas pelos ventos alísios, os mesmos que outrora impeliam os navios portugueses com milhões de africanos forçados à escravatura nas américas, centenas de pirogas repletas de pessoas migrantes desaparecem nos nossos dias sem deixar rasto, testemunhas ou memória, em «naufrágios invisíveis» no sem fim atlântico.
Na vila de Fass Boye, os irmãos das vítimas continuam a querer embarcar para a Europa.
Um belo dia no acampamento dos Anjos surge a ideia: «e se fizéssemos jogos de futebol?» O clube desportivo Relâmpago acolhe-a com entusiasmo. «Digam-nos quantos são e os nomes para as equipas.» Anunciaram quinze jogadores. Chegado o dia, a caminho, eram trinta. A resposta foi: «tudo bem, isto resolve-se, venham!». «Mais uma vez a generosidade, o não complicar e ir resolvendo as coisas», conta Olivier.
«Ficámos super contentes!», recorda Eupremio, presidente da Associação Desportiva e Recreativa O Relâmpago. O simbolismo do nome está ligado «à espontaneidade da associação popular, tal como sucedia nos inícios do futebol e do desporto. Uma das nossas missões é promover o desporto popular e recuperar de certa maneira o que era o associativismo», explica. Os jogos de sexta-feira, em lugares como o Centro de Cultura Popular de Santa Engrácia ou o Operário Futebol Clube, já eram o momento mais emblemático do clube. Agora, todas as semanas, no acampamento na igreja dos Anjos, junta-se um grupo de pessoas para mais um dia de bola.
«Ver trinta pessoas a jogar com um sorriso daqueles, desfrutando de algo que lhes dá prazer, depois de meses de stress, a viver numa tenda», descreve Eupremio. «Está a ser uma experiência única. Têm sido dos momentos mais bonitos e mais marcantes da história do Relâmpago.»
«No fim uns ganharam, outros perderam, e é sempre uma grande festa! É fenomenal no Relâmpago terem-se lembrado como o futebol é uma ferramenta espetacular para unir pessoas», sublinha Olivier.
Eupremio devolve a bola: «É dos exemplos mais claros do poder que podes ter de solidariedade: a partir de indivíduos, coletivos, grupos desportivos, criou-se um movimento de apoio que talvez ninguém estivesse à espera. Faz-me muita confusão, cento e tal pessoas, muitas apenas à espera de um documento, acampadas entre três instituições, igreja, AIMA e Santa Casa, e não se encontrar uma solução. A freguesia que se diz a mais intercultural, com mais trabalho com migrantes, tem aqui uma oportunidade para o mostrar».
«Também acredito que tantas pessoas acampadas, em condições tão precárias, pode ser como um barril de pólvora. E ter esta válvula de descompressão, em que vêm jogar, descarregar, fazer desporto, baixa os níveis de tensão, os momentos de stress», observa.
O clube recebe mensagens de pessoas sensibilizadas. Nalgumas sextas fizeram recolhas de alimentos. Alguns dos associados começaram a ser voluntários no acampamento. «Viva a solidariedade internacionalista», lê-se numa das novas faixas do clube.
A vontade futura do Relâmpago é convidar as pessoas migrantes para praticar outros desportos, através das suas sete modalidades, que vão do boxe ao ciclismo, do atletismo ao xadrez – desporto bem popular no Senegal.
5.054 seres humanos morreram na fronteira ocidental entre África e a Europa nos primeiros 5 meses de 2024. Uma média de 33 mortes por dia. A esmagadora maioria, nas viagens de barco rumo às Canárias.
São os números mais altos alguma vez registados pelo coletivo Ca-Minando Fronteras, que trabalha com pessoas migrantes e suas famílias, pelo restabelecimento de direitos nas fronteiras europeias.
«Este alarmante aumento da mortalidade mostra claramente os efeitos de uma política mais preocupada pelo controlo migratório que pela defesa do direito à vida. Revela um sistema de acolhimento atravessado pelo racismo institucional.»
Frequentemente, quando são dados alertas de embarcações em perigo de naufrágio e pessoas em risco de vida, com as posições exatas, os meios de busca e resgate não são ativados, por se tratarem de pessoas migrantes. Os estados de origem e de destino cooperam para «silenciar e a invisibilizar as mortes».
«Não podemos normalizar estes números», clama Helena Maleno, da Ca-Minando Fronteras. «Devemos exigir aos países que coloquem a defesa do direito à vida por cima das medidas de controlo migratório. Não é assim tão complicado, é simplesmente não deixar morrer pessoas nas fronteiras».
Nos últimos anos, Marrocos utilizou o fluxo de pessoas migrantes para Espanha como chantagem política. O objetivo: conseguir o consentimento espanhol à ocupação militar do Sahara Ocidental, onde o povo saarauí luta pelo direito à autodeterminação. O governo espanhol cedeu, e desde abril de 2022 os dois países reforçaram a vigilância e a repressão na costa marroquina. Este ano, o governo espanhol estabeleceu outro acordo com a Mauritânia para a repressão da migração. E o endurecimento securitário em terra e no mar leva as pessoas a tomar outras rotas, em travessias cada vez mais letais.
«Patrulhar as rotas migratórias torna-as na realidade mais perigosas. O que quer que se faça a nível de controlo de fronteiras, os jovens encontrarão sempre uma forma de partir, e tomarão caminhos mais perigosos», afirma Fatou Faye. Investir no «desenvolvimento» tampouco é uma panaceia. «Essa ideia de que vamos resolver a migração irregular criando riqueza é uma exportação da política da União Europeia».
Os problemas, sempre complexos. E as soluções, sempre simples. «Porque não aceitar que estes jovens queiram ir ganhar a vida na Europa?», questiona Faye. «A migração, quando é segura, permite às famílias sobreviver nos períodos difíceis. O que é necessário é criar vias de emigração legais, para que os jovens possam partir alguns anos, e regressar ao seu país quando o desejam».
Cada dia em que participa na cozinha é, para Olivier, «uma oportunidade para estarmos juntos, fora daquela relação da tenda». Procura conciliar a solidariedade com as pessoas migrantes com o trabalho numa empresa de informática e o cuidado de três filhos. «Tudo transpira de uma coisa para a outra. Os meus filhos perguntam pelas pessoas, querem vir cozinhar e participar. A mais nova fez dois bolos para lhes dar. Eu fico uma pessoa mais completa.»
Um belo dia, uma das pessoas acampadas disse: «se não aprendemos português, não saímos do Senegal». Isso motivou-o a procurar algo.
Começaram por participar nas aulas abertas de português que a Rede de Apoio Mútuo de Lisboa organiza na Sirigaita. Depois, criaram os seus próprios encontros no acampamento.
Os «encontros falantes» acontecem todas as terças feiras. «Há várias pessoas que querem participar no ensino de português, e ninguém é professor! Durante duas horas estamos a conversar, com um guião que vai evoluindo a partir do que eles nos dizem: “preciso de saber como se vai de um sítio para o outro, como me apresentar quando for a uma entrevista de trabalho, explicar um sintoma quando for ao centro de saúde”», explica Olivier. «E também nós gostamos de aprender uolofe.»
«Os encontros são uma maravilha», empolga-se Luzia. «Em redor ouves ambulâncias, pessoas que estão com problemas de saúde mental, imensa polícia que chega de repente por algo que aconteceu ali ao lado, a Almirante Reis a rugir de carros. É agressividade total. E cria-se ali uma bolha de bem estar, de humanidade, de pessoas a aprender uma língua em conjunto.»
Perante a situação «terrível, desumana, injusta» a que as instituições públicas têm votado Gora, Papa, Cheick e os milhares de outros imigrantes, Luzia navega diariamente entre o sentimento solidário e a frustração e raiva por cada dia em que ela continua. «Os seus corpos, as suas vidas a sofrer as cruéis consequências do modelo capitalista. Eles representam a outra face da moeda, vieram até aqui para nos mostrar que esta vida que temos, que isto que temos construído, tem um custo mortal.»
«Queremos respostas, queremos que o Governo, a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, a AIMA, a Santa Casa e o NPISA se articulem e assumam responsabilidades», conclui. «Há uma responsabilidade de emergência humanitária, há uma responsabilidade de direitos universais e há uma responsabilidade de respostas sociais e políticas.»
Texto: Francisco Colaço Pedro
Fotografia: Cozinha Migrante dos Anjos
Acompanhar e apoiar a Cozinha Migrante dos Anjos
Instagram | email: cozinhadosanjos24 (at) gmail (ponto) com
IBAN: PT50 0035 0413 0004 5049 730 79
Titular: Habita65 – Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade
Descritivo: Cozinha dos anjos
Artigo publicado no Jornal Mapa, edição #42, Julho|Setembro 2024.
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