Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Experimentar, Experimentar sempre
Desconstruir mitos, desinstalar ideias feitas, quebrar ligações estabelecidas. Olhar para o passado com outros olhos e abrir possibilidades para o futuro. Mostrar que a transformação da sociedade é um desígnio realista, uma ambição perfeitamente natural, a loucura está em pensar que o mundo não pode ser mudado. Estes os propósitos de O Princípio de Tudo: Uma nova história da humanidade (Bertrand, 2022) (The Dawn of Everything: A new history of humanity, Allen Lane, 2021) e, havendo mão de David Graeber nesta obra, tal não será de estranhar. Em Debt – The First 5000 Years (2011), Graeber questionou o mito da troca direta a que tantos economistas ainda recorrem para explicar a origem do dinheiro. Agora, escorado pela sabedoria arqueológica de David Wengrow, problematiza as conceções evolucionistas e complexificantes da história humana que, partindo do mito de uma suposta idade da inocência profundamente igualitária, procedem da caça e da recoleção para a agricultura, das aldeias para as cidades, da igualdade para a propriedade privada e a hierarquia (não, não há nenhum nexo inevitável entre o cultivo da terra, a sedentarização e o aparecimento de grandes metrópoles, nem entre o aumento da população, os arranjos políticos verticais e a centralização administrativa, nem sequer entre sociedades de pequena escala e igualitarismo – está tudo em aberto!).
A recusa do evolucionismo talvez explique uma das grandes dificuldades deste livro, que passa pela ausência de uma linha cronológica precisa, substituída por uma alternância entre a pré-história, o passado recente das sociedades primitivas estudadas pelos antropólogos, e a história dos povos invadidos e colonizados pelos Europeus (especialmente os povos da América pré-Colombiana). Há, no entanto, um momento nevrálgico nesta nova história da humanidade, e que coincide com a chegada das caravelas e das naus ao outro lado do Atlântico: do século XVI em diante, o futuro e o passado mudam de feição, a realidade começa a ser pensada e ordenada de uma só maneira, dando azo a um sistema político-económico particularmente coriáceo, mescla de estado, mercado, guerra, burocracia e democracia representativa, o mundo em que vivemos e pensamos. É este o ponto cardeal das narrativas evolucionistas, que Graeber e Wengrow se esforçam por varrer do enredo, fragmentar, estilhaçar.
Tratando-se de obra de fôlego, cujos fios são tantas vezes deixados em suspenso para serem retomados mais adiante, quando não para se perderem, desejamos, neste excurso, precisar as ideias fundamentais avançadas por Graeber e Wengrow, para depois apreciarmos o seu contributo dum ponto de vista crítico.
Contra a unidirecionalidade da história: a alternância e a flexibilidade institucional
Se há coisa que se pode afirmar acerca da pré-história é que se trata de um período demasiado vasto e diverso, durante o qual os seres humanos terão experimentado conscientemente uma série arranjos sociais. Na página 111, é dito que os nossos antepassados do Neolítico eram uma espécie de saltimbancos políticos, havendo indivíduos que passavam uma temporada num bando de caçadores-recolectores, outra numa tribo sedentarizada e uma terceira numa cidade com características de estado. Esta ideia é aplicada também às sociedades primitivas estudadas pelos antropólogos, como os Nambikwara, que oscilavam sazonalmente entre bandos de caçadores-recolectores subordinados a um chefe autoritário e grupos maiores que praticavam uma agricultura sazonal e eram mais igualitários. Logo as hierarquias sociais existem desde há muito, provavelmente desde sempre, mas ao longo de milénios terão constituído situações passageiras e reversíveis. O que obriga a pensar na espantosa flexibilidade das instituições que, por um lado, permitia tais hierarquias e, por outro, oferecia a possibilidade de desfazer ou neutralizar o poder de chefes, reis e rainhas…
A copresença, numa mesma região, de diferentes sistemas políticos está ligada a outra ideia importante deste livro: a cismogénese. Graeber e Wengrow especulam que, desde o fim da Idade do Gelo (há cerca de 40 mil anos), as sociedades humanas terão entrado num processo de diferenciação mútua, propiciando o aparecimento de universos sociais e culturais relativamente separados e antagónicos. Tudo indica ter-se tratado, mais uma vez, de um processo consciente e político, envolvendo uma reflexão sobre diferentes maneiras de organizar a vida. Neste sentido, pode dizer-se que a hierarquia e a igualdade são irmãs – isto é, surgiram ao lado uma da outra e por oposição uma à outra.
O aparecimento da guerra, enquanto forma extrema de violência política, é uma consequência da cismogénese. Não há razão para assumir que a guerra tenha sempre existido, os vestígios arqueológicos sugerem uma alternância entre períodos de paz e períodos de intensa conflituosidade. No entanto, a guerra traz consigo implicações decisivas: ao trocar a expressão simbólica das rivalidades coletivas pela vingança de sangue e pela morte indiferenciada, a guerra abre caminho a uma combinação entre cálculo abstrato e ressentimento que faz ver qualquer membro de outro grupo como alvo potencial de uma retaliação. A ação bélica contribui assim para definir grupos adversos, obriga a escolher lados, aumentando a necessidade de defesa e a rigidez dos centros de poder militar. Quanto mais guerra, menos flexibilidade institucional…
A loucura está em pensar que o mundo não pode ser mudado.
Contra a uniformidade dos modos de subsistência: uma «ecologia da liberdade»
Durante toda a pré-história a alternância dos arranjos políticos andou de mãos dadas com a alternância das estratégias de subsistência. Não houve, portanto, nenhuma Revolução Neolítica sob o signo da agricultura. Lembrando que o processo de domesticação do trigo e da cevada demorou cerca de três mil anos, Graeber e Wengrow sugerem que o cultivo da terra foi inicialmente uma forma de diversão, até mesmo de subversão, e não uma inevitabilidade decorrente da necessidade de produzir comida para alimentar uma população crescente. Mais concretamente, o plantio surgiu como uma atividade de nicho e uma especialização local de certas comunidades sedentárias das zonas baixas do Crescente Fértil, funcionando como um suplemento de economias assentes sobretudo na recolha de recursos naturais.
Originariamente praticada em várzeas e planícies aluviais nos períodos em que as águas recuavam, esta agricultura tirava partido do solo filtrado e refrescado e das facilidades de irrigação, bem como da falta de necessidade de desbaste. Era uma agricultura prática, combinável com a pecuária, a caça e a recoleção. Graeber e Wengrow falam de uma «ecologia da liberdade» (pag. 260) associada à manutenção de um sistema agroflorestal tão dinâmico quanto maleável, sem lugar para a delimitação ou apropriação particular de parcelas de terreno por tempo indeterminado. Daí que os autores recusem qualquer ligação inevitável entre a adoção da agricultura e o desenvolvimento das hierarquias sociais, das desigualdades e da propriedade privada. Na verdade, o caminho da agricultura até ao século XVI foi tudo menos uma linha de sentido único, estando cheio de falsos inícios, de reviravoltas e ziguezagues.
Contra a cidade-estado: a diversidade, a multiplicidade dos projetos urbanos
Também as primeiras cidades, longe de remeterem invariavelmente para a presença de estados e de organizações hierárquicas, se revelaram propícias à experimentação. Na pré-história, havia-as para todos os gostos. Talianki, na atual Ucrânia, promovia um igualitarismo exacerbador das liberdades e diferenças individuais, com os vários fogos a colaborarem numa rede rotativa de cooperação económica. Por seu turno, em Uruk e noutros primeiríssimos centros urbanos da Mesopotâmia, foram ensaiadas soluções híbridas, recorrendo-se a formas participativas de governo para organizar obras públicas e decidir acerca das relações com o exterior, deixando que os assuntos económicos fossem resolvidos de maneira mais burocrática e hierárquica. Em Mohenjo-daro, nas margens do Indo, vingou outra combinação de horizontalidade e hierarquia, com um governo igualitário dedicado aos assuntos quotidianos da cidade, lado a lado com uma organização social ascética. Já Arslantepe, na Turquia oriental, foi berço de uma aristocracia agonística e guerreira, com casas nobres e túmulos de heróis, mas sem uma autoridade centralizada ou burocracia…
Os vestígios arqueológicos dão ainda conta de metrópoles que, tendo albergado regimes hierárquicos e militarizados durante longos períodos, foram entretanto tomadas por cidadãos revoltosos que redefiniram as fronteiras espaciais e sociais quase até ao ponto da sua completa abolição. Veja-se o caso de Taosi, na atual China, ou de Teotihuacán, no México (à qual é consagrado todo um capítulo), onde a partir do ano 300 da nossa era, a monarquia terá sido substituída por uma república que abdicou da arquitetura monumental e da autocracia em prol de habitação social de qualidade e de formas indígenas de democracia assentes em assembleias locais e num conselho geral.
Primeira, segunda e terceira ordens – ou como é que a história emperrou?
Se a experimentação, a alternância e a flexibilidade foram a regra durante milénios, como é que sistemas hierarquizados de larga escala – coincidentes com os estados e impérios modernos – tomaram conta do cenário político e aprisionaram a história humana em relações permanentes de dominação e subordinação? Formulada no capítulo quarto do livro (pág. 140), esta importante pergunta obtém uma resposta provisória no penúltimo capítulo, que é também o mais longo. O argumento começa por distinguir três formas elementares de governação: através do controlo da violência (ligado ao poder militar), através do controlo da informação (ligado à religião e à burocracia) e através do carisma (ligado a sistemas de promoção individual por via agonística).
Nesta base, Graeber e Wengrow propõem que qualquer formação política que se suponha ter assentado prioritariamente em qualquer um destes três pilares seja designada um «regime de primeira ordem». Assim seria a sociedade Azteca, que dependia essencialmente do controlo da violência; ou o Império Inca, que exibia uma componente mais burocrática; ou a civilização Olmec, gerida por uma classe de aristocratas cujo carisma decorria das vitórias em torneios desportivos. Ou ainda – exemplo sobre todos fascinante pela mistura de teocracia e ginecocracia –Creta Minoica, governada por um colégio de sacerdotisas que elevavam o êxtase erótico a motivo de celebração ritual… Ora, não obstante as suas enormes diferenças, os regimes de primeira ordem iam e vinham, distinguindo-se pela precariedade, pela intermitência ou pela sazonalidade do seu poder.
Já as formações políticas que combinavam dois dos três princípios elementares de governação são chamadas «regimes de segunda ordem», englobando a maior parte dos reinos, impérios e repúblicas da Antiguidade e que a historiografia evolucionista designa anacronicamente de «primeiros estados». É o caso emblemático dos reinos do Antigo Egipto, que conjugavam burocracia e violência, mas excluíam quase completamente a política carismática assente na rivalidade (um faraó não podia ser desafiado por nenhum mortal…). Porém, Graeber e Wengrow observam, também a este nível, sinais de intermitência e sazonalidade, aliás patentes nas periodizações convencionais que tomam por referência os governos mais estáveis e desconsideram as fases intermédias (por vezes ainda mais longas e exibindo soluções de recurso deveras curiosas). Neste sentido, os primeiros reinos podem ser vistos como experiências, recreações, jogos que, aos poucos, foram ficando mais sérios.
A conjugação dos três princípios de governação configura o estado moderno, ponto de aniquilamento de uma miríade de percursos históricos e civilizacionais pré-seiscentistas que terão – supremo atrevimento! – provado e testado o poder sem se deixarem subjugar permanentemente por ele. Não estamos, insista-se, perante uma evolução ou processo de sentido único, embora seja possível identificar elementos que, ao serem combinados entre si, tornam compreensível a emergência de uma estrutura política mais teimosa e preparada para resistir às contingências da história: uma dessas combinações junta o impulso diferenciador da cismogénese ao confronto armado, em detrimento do jogo ou do teatro; outra associação nefasta advém da intromissão do poder militar e da violência arbitrária da guerra (potencialmente orientada para o exterior) na esfera das relações de proximidade e de cuidado, abrindo caminho à repressão severíssima de conterrâneos, vizinhos e familiares, a par de uma subordinação generalizada das mulheres; enfim, os tabus religiosos e a definição de campos sagrados de acesso restrito, aliados ao conceito de propriedade privada e aos direitos exclusivos que ele implica, também ajudam a perceber porque é que a história ficou perra.
a dificuldade em transformar radicalmente a sociedade persiste, mesmo perante os mais flagrantes indícios de esgotamento da atual ordem político-económica.
Profunda história, profunda incerteza, profunda, profunda especulação…
Apesar do título grandiloquente, anunciador de revelações e revoluções, o que salta à vista, nesta interrogação sobre as profundezas da história, é a incerteza concomitante, a incerteza constante, a incerteza gritante. Tudo está em aberto, porque se desconhece quase tudo a respeito de muitas das realidades pré-históricas mencionadas. Expressões como «não sabemos de todo», «não temos uma ideia precisa», «não podemos mesmo explicar porquê» ou «os arqueólogos ainda não conseguem definir com confiança qual a sequência de eventos precisa» vão-se sucedendo, deixando o caminho aberto à especulação, por mais difusa que seja: vejam-se, nas páginas 399-402, as hipóteses titubeantes quanto ao significado dos assassinatos e sacrifícios em massa que terão marcado as fases iniciais das monarquias do Antigo Egipto, e que Graeber e Wengrow associam à constituição de um sistema patrimonial de raiz familiar.
Para além disso, como se disse, o livro oscila entre a arqueologia e a antropologia, entre a pré-história ou as fases inaugurais da história e as etnografias de sociedades primitivas. Trata-se de um esforço intencional e louvável, como antídoto contra o evolucionismo das periodizações clássicas, mas os dois relatos (arqueológico e antropológico) não são equiparáveis. É difícil descobrir na arqueologia da pré-história aquilo que Marshall Sahlins designava por «eventos etnográficos», referindo-se ao encontro das tribos primitivas com as autoridades coloniais, que os antropólogos testemunharam em direto. Tal como é difícil achar interações, improvisações quotidianas ou até pessoas. O que se descobre são sobretudo vestígios mais ou menos evidentes de arquitetura monumental e fortificações, de registos burocráticos, de cultivo regular de cereais, de enterros sumptuosos ou valas comuns, e só quando todas estas coisas aparecem juntas é que se torna legítimo inferir a presença de uma autoridade centralizada (e, mesmo assim, tudo o que diga respeito ao modo como essa autoridade seria realmente exercida não se presta a ser desenterrado). Incapaz de recorrer a exemplos concretos de acontecimentos prosaicos, o argumento fica reduzido a quadros hipotéticos, quase sempre pintados em traços gerais. Isto é especialmente notório a respeito da combinação incongruente entre atos de violência e tarefas de cuidado, que Graeber e Wengrow admitem estar na origem da dominação autoritária nas sociedades humanas, dado que os escravos eram frequentemente empregues em tarefas de cuidado, surgindo assim como não-pessoas que colaboravam na formação de pessoas (pág. 191) – ideia tão estimulante quanto abstrata e, inclusivamente, redutora, sendo todavia a melhor que os autores estão em condições de oferecer.
Poder-se-ia ir mais longe e assinalar os prováveis paradoxos ou autocontradições desta reflexão de longo alcance: obra monumental que ataca a história monumental; libelo incisivo contra o mito de um estado originário da humanidade que eleva a experimentação politica autoconsciente ao estatuto de disposição humana mais frequente (mais natural?) desde a pré-história até à era dos impérios capitalistas; crítica das periodizações evolucionistas que acaba por recorrer a um artifício complexificante ao propor a existência de regimes políticos de primeira, segunda e terceira ordens – mesmo que o caminho seja declarado reversível e o processo de desmantelamento do estado já esteja em curso. E, na base de um tal argumento, uma conceção tripartida das formas de governação que deixa de lado qualquer conceção mais insidiosa e inconsciente de poder, denunciando o conservadorismo das ciências sociais, a sua insistência nos temas da tradição, da autoridade, do estatuto, da alienação e do sagrado, da incorporação e da disciplina. O que talvez seja injusto, em primeiro lugar pela recolha empírica aturada que sustenta algumas destas investigações (pensemos em Bourdieu ou em Foucault), mas também porque a revelação das formas menos visíveis de dominação tem contribuído, igualmente, para a sua condenação e ultrapassagem.
Malgrado estes reparos, a dificuldade em transformar radicalmente a sociedade persiste, mesmo perante os mais flagrantes indícios de esgotamento da atual ordem político-económica. Teremos então perdido a capacidade de criar uma outra relação com o poder, de o conceber não como uma inevitabilidade, mas antes como uma tentação e um perigo, como algo que atrai e repugna, e que merece ser desfrutado em pequenos goles, ao jeito epicurista, temporária e intermitentemente? Fica mais fácil pensar que não depois da leitura deste livro…
O Princípio de Tudo: Uma nova história da humanidade [The Dawn of Everything: A New History of Humanity]
David Graeber, David Wengrow
Bertrand, 2022
Texto de Daniel Seabra Lopes
Ilustração [em destaque] de João Cabaço
Artigo publicado no JornalMapa, edição #35, Setembro|Novembro 2022.
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