
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Felizmente continua a haver luar (Setembro/Novembro 2022)
Em Abril de 2018, membros da associação parisiense Memória Viva 1 deslocaram-se ao cemitério militar português de Richebourg, no Norte de França, para depor uma coroa de flores sobre o monumento que pretende homenagear os 7000 soldados que foram enviados para a morte pelos generais portugueses na sangrenta batalha de La Lys da I Guerra Mundial, a fracção lusitana dos 9 milhões de mortos sacrificados no conflito.
A coroa de flores acompanhava uma faixa onde se lia «Maldita seja a guerra», célebre frase pacifista e antimilitarista inscrita no conhecido monumento contra a guerra em Gentioux, povoação do departamento francês da Creuse. Um dos raros monumentos — entre os 36 000 que conta a França — onde o carácter pacifista e antimilitarista é afirmado. Obviamente, horas antes do começo das cerimonias oficiais em presença dos cómicos do costume, as flores, assim como a dita faixa, foram deitadas para o lixo por um empregado enviado à pressa pela embaixada em Paris, entretanto informada do acto de sacrilégio. Estes funcionários do poder, especializados na propaganda da mentira, não gostam de ouvir as verdades incómodas, ainda menos em momentos de celebrações patrióticas como esta do centenário do massacre.
Nesta guerra como em todas as guerras, os interesses de classe divergentes e opostos são ocultados pelo patriotismo.
Entre os membros da associação Memória Viva estava o António Oneto, desertor da guerra colonial exilado em Paris e um dos animadores da oportuna e radical iniciativa. Se recordo aqui este pequeno acontecimento não é tanto para enaltecer o seu carácter digno que distingue os seus iniciadores, mas também para lembrar o António Oneto, homem de qualidade para quem o mundo acabou, quatro anos mais tarde, no dia 13 de Julho de 2022. Nome que deve ser conhecido pelas leitoras e leitores mais jovens do MAPA. Aqui fica a modesta homenagem.
«Maldita seja a guerra», uma frase que introduz a crítica radical da sociedade capitalista. Sociedade na qual a guerra é uma das constantes e interessadas actividades lucrativas, reveladora da natureza mortífera da lógica de lucro que a anima. Desde a barbárie da II Guerra Mundial (que sucedeu à primeira de que falávamos), nunca a guerra acabou, em formas mais ou menos localizadas — e aqui há que integrar os 13 anos da guerra colonial portuguesa, hoje relegada para alguns romances de capa e espada modernos — ou em formas mais generalizadas como as que vamos vivendo à distância de anos a esta parte, da Coreia e do Vietname ao Iraque, da ex-Jugoslávia à Síria e ao Sudão. Por fim, hoje de novo perto de casa, na Ucrânia.
Parece cada vez mais óbvio que a classe capitalista não mostra nem a capacidade nem a vontade de sacrificar os seus lucros mesmo quando é a sobrevivência da espécie humana que está em jogo. Para proteger o seu sistema social assente na exploração das energias fósseis, ela recorre ao racismo, ao nacionalismo, ao patriotismo e outras formas de autoritarismo. E, numa época em que a recessão se instala na sua economia, a opção da guerra é, como sempre o foi, privilegiada. Assim, e para voltar à guerra na Ucrânia, disse recentemente Noam Chomsky — numa daquelas fórmulas lapidares de que ele é costumeiro — que o capitalismo americano e os seus zelosos representantes estão decididos, caso seja necessário, a fazer morrer toda a juventude ucraniana, a do oeste como a do Donbass, no altar da defesa dos seus interesses. O que não significa ignorar, ou negar, os objectivos do frágil e estagnante regime russo que lhe faz face. O afrontamento mortífero entre duas formações capitalistas, de calibre e dimensões desiguais, poderá provavelmente ocultar o afrontamento decisivo que se perfila, num horizonte mais ou menos próximo, entre o capitalismo americano e o chinês.
Isto bem considerado, o facto é que, nesta guerra como em todas as guerras, os interesses de classe divergentes e opostos são ocultados pelo patriotismo. Os oligarcas ucranianos, divididos entre uns raros pró-russos e uma maioria seduzida pelas sirenes do capitalismo ocidental, têm sem dúvida interesses comuns, não obstante concorrentes, com os seus primos russos, prisioneiros de uma formação politica e ideológica que os limita. Se há uma lição importante a tirar desta guerra, que dura há mais de cinco meses, ela diz respeito à sempre presente capacidade dos senhores do mundo de utilizarem valores irracionais e primários para ocultar a defesa dos seus interesses de lucro. Valores que alguns pensavam estarem definitivamente ultrapassados, como o patriotismo e o nacionalismo, reaparecem como forças sociais potentes. Eles são as formas mais primitivas e violentas da ideia de colectividade humana, animam a pulsão de morte. Os valores de traição ao género humano triunfam de novo, revelam-se extremamente eficazes para os dominados protegerem os interesses daqueles que os dominam. Em 1914, dizia Romain Roland, milhões morreram pelos industriais pensando que morriam pela pátria. Hoje há milhares de jovens e menos jovens ucranianos e russos a morrerem por interesses que são obviamente outros, que não os da delirante «alma russa» ou da abstracta «liberdade ucraniana à moda FMI».
«Aqui não há mais mentiras. O cemitério é a verdade da guerra.»
Mas é nesta fractura criada pela selvageria da guerra, nos seus mortos, na sua desolação, que escapa um sopro de consciência critica e de esperança. Desejo profundo pela defesa do que é vivo, pela derrota da pulsão de morte. Num recente artigo, publicado pelo jornal Le Monde, um banal jornalista decidiu ir além da propaganda NATO-zelenskista ou putiniana e acampou à porta de um dos inúmeros cemitérios ucranianos, onde, dia após dia, são enterrados os jovens da geração dizimada pela guerra 2. Uma foto dantesca que anula todos os discursos heróicos e delirantes dos que fazem o elogio da morte imposta, programada. Estes cemitérios, centenas de cemitérios dos dois lados da linha de fogo, são os lugares da verdade da guerra. No cemitério de Krasnopilske, perto de Dnipro, no Sul da Ucrânia, os familiares dos soldados mortos recolhem-se, calam-se, ousam umas palavras que dizem o essencial. Aqui ficam uns excertos.
Alina, viúva de Serhi Karnaouhov, diz: «A minha página Facebook é um enorme cemitério. Só há mortos… os melhores dos nossos homens, os que defendem o seu país e as suas famílias e que não terão filhos.» Joulia, viúva de Serhi Ivjenko, quer «que esta guerra acabe, que mais ninguém morra. Eu quero a paz». A mãe de Volodymyr Antipov, explica que «Volodymyr queria defender o seu país. Enfim, na nossa aldeia, Vremivka, só há duas opções para um jovem: beber todo o dia e tornar-se alcoólico ou então alistar-se no exército. Ele era condutor de tractores, desempregado, e alistou-se. […] Se Deus nos deu a possibilidade de falar é para que possamos comunicar entre nós de maneira civilizada, não para chegar a esta situação… Estes tipos dos governos, onde quer que seja, quem quer que sejam, vivem nos bunkers, passam na televisão, fazem a guerra com os nossos filhos. Depois não vêm aqui, nestes cemitérios, não nos enfrentam, olhos nos olhos». A mãe de Vladislav, Loudmila, fixa a sepultura do seu filho e indigna-se: «Quem é que poderia ter imaginado uma tal guerra na nossa época? […] Os nossos filhos pensam morrer pela pátria. Para mim, a morte deles não serve para nada.» E acrescenta que afastou o seu outro filho da linha de combate, «para que pelo menos um rapaz na família escape à morte» Lena, viúva de Rouslan Talovyria, traz umas flores. Os seus óculos-de-sol têm as lentes marcadas, na lente direita com a letra N e, na lente esquerda, com a letra O, NO. Ela não aceita a situação: «Odeio-os a todos, os dirigentes deste mundo, Putin e todos os outros. Se eles enviassem os seus filhos para a frente de batalha antes de enviarem os filhos dos outros, não haveria mais guerras no planeta.» Tatiana perdeu o seu filho, Serhi Skliarov, «Quando a guerra começou, pedi-lhe para não ir. Eu tinha medo e ele dizia-me que eu devia estar orgulhosa do seu patriotismo. […] E agora, devo estar orgulhosa?», diz ela com sarcasmo e mostrando a sepultura. O filho de Olena, Dmitro Moussine, morreu em combate. Diante da sua sepultura, Olena diz ao jornalista: «Aqui não há mais mentiras. O cemitério é a verdade da guerra.»
A verdade da guerra contra as mentiras da guerra, nos dois campos da guerra são as mulheres que a afirmam, são elas que salvam a dignidade do humano. Assim, numa reportagem vídeo do The Guardian 3, os agentes recrutadores do exército russo no Donbass confrontam-se com mulheres que tentam proteger os seus filhos da morte. Uma grita de punhos fechados: «Ninguém quer bater-se, ninguém quer a vossa guerra!»
Uma resistência surda, abafada, mas insistente que explica a crescente presença de mercenários na frente de guerra. Do lado russo em particular. A partir de um certo grau de horror, os valores do nacionalismo e do patriotismo parecem perder eficácia na alimentação da pulsão de morte, na ocultação das diferenças de classe, na aceitação da morte em nome dos interesses dos dominantes.
Maldita seja a guerra e os valores que a engendram.
A guerra, os horrores e a desolação, os mortos. Como sempre, os nossos mortos, as guerras deles.
Ilustração [em destaque] de André Lemos.
Artigo publicado no JornalMapa, edição #35, Setembro|Novembro 2022.
Notas:
A story about
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