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Lendo: Apoio mútuo em tribunal

Apoio mútuo em tribunal

Apoio mútuo em tribunal



Em plena pandemia, um grupo de meia centena de pessoas ocupou um edifício abandonado em Lisboa e transformou-o em Centro de Apoio Mútuo. Um mês depois, os proprietários, armados de seguranças privados e protegidos pelas forças policiais do Estado, despejaram-no à força. Neste momento, seis das pessoas identificadas nesse despejo estão acusadas de usurpação de imóvel e arriscam uma pena de dois anos de prisão.

Depois de comprado por um fundo imobiliário (Spark Capital – que, além de serviço imobiliário, gere vistos gold) para ser lançado à fúria especulativa, o número nove do Largo de Santa Bárbara, em Lisboa, esteve abandonado durante quase dois anos, até que um grupo de pessoas decidiu ocupá-lo para o transformar em centro de solidariedade e apoio mútuo. O grupo incluía cerca de 50 vizinhos e vizinhas, maioritariamente de Arroios. Chamaram-lhe Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara e abriram-no a 9 de Maio de 2020.

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Em plena pandemia, na decorrência do súbito corte nos salários, da burocratização e demora dos apoios institucionais, bem como da inexistência de estruturas habitacionais facilmente disponíveis para quem delas carecia, perante o aprofundar de precariedades antigas e o surgimento de novas, a Seara foi, durante o mês que a deixaram existir, um local de encontro e partilha que se afirmava como arma contra um mundo higienizado, narcotizado pelo medo, onde se assumia que toda a gente tinha uma casa onde deveria obrigatoriamente ficar. Na Seara, as pessoas, incluindo sem-abrigo, podiam satisfazer necessidades do dia-a-dia, como usar a casa de banho, tomar banho, lavar a roupa, ter acesso a pontos de electricidade e internet, jogar às cartas, sentar-se para comer uma refeição quente, ou simplesmente sentir calor humano perante o isolamento instituído.

A 8 de Junho de 2020, o fundo imobiliário enviou uma força privada de segurança para um despejo que não poderia nunca, aos olhos da lei, decorrer daquela forma. A polícia, no entanto, como sempre, tomou o lado dos proprietários, assistindo e protegendo a operação. No final do dia, algumas das pessoas foram identificadas e a Seara, juntamente com outros dois edifícios, passava a estar emparedada, vazia e inútil. A resposta popular, mesmo que não tenha conseguido impedir o despejo, serviu para mediatizar as violências a que as pessoas estão sujeitas, o papel da polícia e, portanto, do Estado, na defesa da propriedade sobre o direito à vida, para trazer de novo a público a discussão sobre a legitimidade da ocupação e para agregar solidariedades.

Neste momento, a antiga Seara está a transformar-se num complexo de apartamentos modernos, demasiadamente caros, destinados a uma classe bastante acima da média, com a qual se quer, aqui como em muitos outros locais de Lisboa e de outras cidades, expulsar os velhos, os esfarrapados, os migrantes, os sujos.

Também neste momento, seis das pessoas identificadas no despejo da Seara enfrentam um processo judicial que começou com uma «denúncia apresentada pelos proprietários do imóvel (…) desejando procedimento criminal contra as pessoas» que ali «se introduziram (…) sem qualquer tipo de autorização do legítimo proprietário», nas palavras da acusação.

A procuradora Margarida Godinho Silva afirma, sem qualquer tipo de prova, que «os arguidos (…) removeram e destruíram as taipas de madeira que ali haviam sido colocadas e, desse modo, introduziram-se naquele imóvel, que se encontrava vedado ao público». A defesa contrapõe que o edifício «não tinha quaisquer taipas ou emparedamentos, à exceção de um bocado de uma das janelas do piso térreo».

seara«Eu não tenho experiência em ser acusado, mas esta acusação surpreende-me pelos termos usados porque fala de coisas impossíveis de provar porque não aconteceram. Por exemplo: nós não arrombámos nada, não destruímos nada para entrar. E avisámos as autoridades do que íamos fazer», garantiu ao Expresso Bernardo Álvares, uma das seis pessoas acusadas. «O que eu espero do julgamento é que pelo menos sirva para discutir a política de habitação da cidade», rematou.

Estas pessoas arriscam uma pena de dois anos de prisão e, como último toque de ironia, ainda poderão ter de pagar o que a imobiliária gastou em segurança privada e no emparedamento do edifício: cerca de 30 mil euros.

Independentemente dos resultados do julgamento, é necessário angariar fundos para as custas judiciais destes processos. Nesse sentido, está a ser organizada uma série de eventos para os próximos meses, o primeiro dos quais decorreu no bar Damas, em Lisboa, com concertos de Luís Severo e Filipe Sambado e dj sets de Caroline Lethô e Giulio Giulia meets DJ Pena Suspensa. Os próximos, já em 2023, estão planeados para 10 de Fevereiro, no Arroz Studios, em Marvila, e 15 de Abril, na Recreativa dos Anjos (RDA 69). Mais informações vão sendo divulgadas na página de fb da Seara.

 


Fotografias de  Outros Ângulos


Written by

Teófilo Fagundes

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