
Desculpa, mas não encontramos nada.
Desculpa, mas não encontramos nada.
Lendo: Sem chave não saio!
Entre o rio e o pinhal
Localizado entre o estuário do Tejo e o pinhal da Trafaria há mais de meio século, o 2º Torrão vê-se encurralado entre uma vala pluvial, a crescente pressão da especulação imobiliária e autoridades locais cujo modus operandis se encontra no ponto de (des)equilíbrio entre o dissimulado e o predatório. A comunidade de mais de 2500 pessoas, que chama de casa a este bairro de autoconstrução em Almada, não é alheia a coações relativas a despejos e a demolições. Ora sob o pretexto de ocupação de terrenos privados, ora do risco de segurança e saúde pública, diferentes gerações se recordam dos recorrentes momentos em que, durante décadas, a sombra do fim iminente do 2º Torrão foi surgindo.
Com o decorrer das últimas décadas, um outro fator foi ganhando forma na vida da comunidade e em toda a cidade, tal como no resto do país: no espaço de 5 anos, a especulação imobiliária levou o preço das casas em Almada a duplicar, tornando-a na quinta cidade portuguesa com os valores de arrendamento mais elevados.
Verificamos atualmente um aumento artificial e totalmente desproporcional, não só relativamente à evolução do rendimento das famílias, mas também ao real valor das propriedades em si. Isto é severamente óbvio se tivermos em consideração que mais de 3000 famílias almadenses vivem em condições indignas, das quais 40% vivem em habitação pública (segundo dados da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa).
É no meio deste cenário que o relatório de 2019 dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Almada (SMAS), até há pouco tempo escondido do público em geral, veio reportar que a extensa vala pluvial de drenagem que passa pelo 2º Torrão, sobre a qual várias habitações foram construídas pelos moradores, está obstruída e que existe a hipótese de colapso e de inundação de todo o bairro, o que coloca a vida de dezenas de famílias em risco.
Ao ter em suas mãos estas informações, o executivo da Câmara Municipal de Almada (CMA) decidiu nada fazer nos anos de 2019, 2020 e 2021. Pelo menos assim o foi até que, após uma nova visita dos SMAS ao local da vala pluvial, em março de 2002, e após novo relatório, em setembro − documento também não publicitado pela edilidade − foi acionado o Plano Municipal de Emergência de Proteção Civil e declarada a Situação de Alerta para o bairro, entre 22 de setembro e 31 de dezembro do corrente ano.
A 1 de outubro começaram as demolições, sem que a população afetada fosse informada atempadamente. Durante os seis dias que duraram as demolições, instalou-se a confusão, os receios e o clima de intimidação por parte da Câmara de Almada.
Demolindo casas, demolindo vidas
Em junho, a CMA fez uma reunião coletiva, numa escola da Trafaria, com as pessoas que viviam em casas sobre a vala para discutir o seu realojamento e, posteriormente, reuniões individuais com cada família. As soluções variaram de família para família, desde o enquadramento no programa Porta de Entrada (que se aplica às situações de necessidade de alojamento urgente) a outros programas vinculados ao Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU). Em 1 de outubro começaram as demolições, sem que a população afetada fosse informada atempadamente. Durante os seis dias que duraram as demolições, instalou-se a confusão, os receios e o clima de intimidação por parte da CMA.
Existia um mapa com indicação das casas a demolir e com a respetiva data de demolição, que nunca foi dado à população. As equipas de intervenção iam de casa em casa para avisar da demolição e propor soluções de realojamento. Estas equipas, à exceção da Proteção Civil, não tinham identificação e, em muitos casos, apresentavam documentos sem assinaturas nem carimbos da edilidade; davam informação contraditória às pessoas e pressionavam-nas para abandonarem as suas casas e aceitarem as propostas de realojamento. Houve casos de pessoas informadas no próprio dia que a sua casa ia ser demolida. Outras pessoas foram informadas de uma data para a demolição da sua casa que foi depois alterada, sem aviso. Outras foram informadas que as casas iam ser demolidas mas, afinal, não faziam parte da lista final. Outras foram chamadas a reuniões com os diferentes serviços sociais longe do bairro na hora em que as suas casas iam ser demolidas, para coibir a resistência. Alguns acordos de realojamento foram apenas verbais, sem prova escrita.
Os dados sobre as casas a demolir/ demolidas, e os agregados familiares afetados, variam nos dados oficiais da CMA e nos levantamentos realizados. Estima-se que há cerca de 65 famílias afetadas e 73 casas demolidas.
Os/as moradores/as encontram-se em situações diferentes:
− Pessoas que foram realojadas em casas camarárias ou do IHRU, em diferentes locais (Barreiro, Almada, Seixal, Lisboa). Não se sabe quantos são; o que se sabe é que muitas destas casas não têm condições de segurança e de habitabilidade (p. ex.: fugas de gás).
− Pessoas com soluções temporárias, que não sabem para onde irão a seguir, nem por quanto tempo poderão ficar ali alojadas. Nove famílias estão alojadas num hostel, em Campo de Ourique (Lisboa): uma família por quarto e uma casa de banho para todas. Partilham na cozinha uma placa elétrica. Não têm máquina de lavar roupa nem internet para que as crianças possam entregar os trabalhos escolares. Outras famílias foram alojadas em bungalows no parque de Monsanto (também em Lisboa), local sem transportes públicos nem serviços básicos, como mercados para comprarem comida.
− Pessoas que não foram consideradas elegíveis por parte da CMA – que alegou que não viviam no bairro ou que tinham outras casas – e recusaram deixar as suas casas, interpondo providências cautelares.
− Duas pessoas que ficaram de fora de qualquer processo de realojamento.
Os danos na vida destas pessoas são incontáveis. Na sua saúde, no seu trabalho (muitas perderam empregos e fontes de rendimento, porque tinham de estar no bairro, faltando ao trabalho), na escola (as crianças foram afetadas emocionalmente, cortaram as suas rotinas) e na relação com animais de estimação. De um momento para o outro, tiveram que enfrentar a perda de casa, do seu lugar de vida e do seu trabalho. Foram expostas a diversos perigos: o recinto das demolições nunca foi cintado; os escombros ficaram no bairro durante semanas, incluindo materiais de amianto. E foram, sobretudo, expostas a várias formas de coação e humilhação. Após a caída de uma parte de um alçapão que integra a vala, a CMA culpabilizou as pessoas que interpuseram providências cautelares pelas possíveis consequências, escusando-se de qualquer responsabilidade. A CMA acusou ainda as pessoas e associações, inclusive as/os as/advogados pro bono que se solidarizaram com os/as moradores/as, de os/as instigarem a recorrerem à justiça, ou seja, a exercerem os seus direitos.
A CMA desalojou pessoas, deixou-as na rua, num processo de cima para baixo e pouco transparente, sem lhes propor alternativas dignas. Acionou um plano de emergência sem acautelar respostas integradas. Tudo isto com a desculpa dos impactos da previsível subida da água do mar. O que justifica efetivamente esta remoção à força? Que planos tem a CMA para o bairro? Sobre isto nada se sabe. Neste momento, são 9 as famílias num hostel, 4 em bungalows, 2 pessoas sem nenhuma solução e 10 ainda no 2.º Torrão, que estão na resistência.
Histórias da resistência
Desde o início do processo de desalojamento e demolição que os/as habitantes envolvidos/as têm estado unidos/as e a resistir, apesar da situação extrema em que estão a ser colocados/as por parte da CMA. Optaram por uma abordagem também legal. Essa decisão foi apoiada pelos/as advogados/as que se solidarizaram com a causa e que têm estado a prestar auxílio no terreno. Apesar de o aparato policial no bairro ter sido visível durante as demolições e de as respostas municipais terem sido pouco humanas e nada dignas na maior parte das situações, a resistência nunca excedeu o contexto legal. A grande maioria das 65 famílias manteve-se unida, apoiando-se e lutando pela sua situação mas também pela dos seus vizinhos e vizinhas.
«Sem Chave não saio! Não vamos abandonar as nossas casas sem a garantia de ter outra para morar» foi o mote para a concentração no dia 13 de outubro na Cova da Piedade. O cartaz foi construído coletivamente pelos/as moradores/as, e vários/as habitantes do 2º Torrão deslocaram-se para apoiar as mais de 60 famílias e protestar contra o que tem sido a abordagem da CMA. Os/as habitantes do 2º Torrão vivem um clima de total incerteza quanto ao seu futuro.
No dia 19 de outubro foi convocada uma assembleia municipal extraordinária sobre habitação, em Almada, onde foi exigido por parte de um deputado do PCP um levantamento do número de habitações demolidas e de famílias desalojadas. Também foi pedido um levantamento dos espaços onde estão a ser feitos os realojamentos, visto esta informação não estar acessível. O atual executivo foi questionado sobre qual será a abordagem para o futuro em matéria de habitação condigna por parte da CMA. Até à data, ainda nenhuma resposta foi tornada pública.
Houve duas reuniões entre a Secretária de Estado da Habitação e os/as moradores/as com a finalidade de fazer o ponto de situação, de permitir esclarecimentos sobre as medidas cautelares e apresentar pedidos de informação. Foi uma das ferramentas de luta utilizadas pelos/as habitantes na tentativa de pressionar e obter respostas que continuam a tardar em aparecer.
Neste momento, são 9 as famílias no hostel, 4 em bungalows, 2 pessoas sem nenhuma solução e 10 ainda no 2.º Torrão, que estão na resistência.
Ao dia 28 de novembro – dia de fecho desta peça – não existiam sentenças face às providências cautelares interpostas. A maioria das famílias em resistência no território têm propostas de habitação, mas que não correspondem às suas necessidades.
Os processos de auto-organização mantêm-se e têm sido construídos pelos/as moradores/as e por gente que se solidarizou com a causa. Atualmente, existe uma rede de autoajuda com o objetivo de colmatar os problemas criados ao nível do acesso à alimentação e à saúde por todo este processo violento a nível económico e emocionalmente catastrófico para as famílias envolvidas. Não foram criadas respostas integradas por parte do poder local, deixando as pessoas envolvidas completamente desamparadas. Foram também lançadas duas petições e uma carta aberta contra os despejos (esta última em conjunto com outros bairros do país que sofrem situações similares) como forma de dar visibilidade à situação. Neste momento, visto que as respostas continuam a não ser favoráveis para os/as moradores que se mantêm na zona de demolição, está marcada pela assembleia de resistência do 2º Torrão uma manifestação para 5 de dezembro, às 14h, na praça São João Baptista, em Almada. A CMA continua a considerar dois dos agregados como não-elegíveis e desconsideram parte das restantes famílias, não dando respostas à altura das necessidades reais.
Os/as habitantes continuam focados/as em resistir, conscientes também das palavras recentes de Inês de Medeiros, presidente da Câmara de Almada, que referiu que «demore o tempo que demorar, será o princípio do fim do 2.º Torrão». Quem vive no bairro sente que está a ser desestruturada uma grande família, sem existir sequer uma abertura ao diálogo por parte da CMA. O impacto de todas estas decisões na vida de grande parte dos/as moradores/as do 2º Torrão é profunda, pois as redes de relações e de proximidade são fundamentais para enfrentar as dificuldades do dia-a-dia e para colmatar as carências económicas de uma comunidade maioritariamente precarizada. Desmantelar estas redes de segurança é condenar estas famílias a uma situação ainda mais débil.
Texto de 2º Coletivo
Fotografias de Renata Camargo
Artigo publicado no JornalMapa, edição #36, Dezembro 2022|Fevereiro 2023.
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