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Lendo: Visibilidade LGBTQIA+: Reclamando a nossa voz

Visibilidade LGBTQIA+: Reclamando a nossa voz

Visibilidade LGBTQIA+: Reclamando a nossa voz


Nos últimos meses tem-se falado muito da visibilidade da comunidade LGBTQIA+ e da sua importância. Todavia, existem duas visões antagónicas sobre este tema. Por um lado a permissa de que é importante para a libertação do estigma associado à comunidade, por outro, o argumento é de que a visibilidade é apenas uma forma de exibição e afirmação desnecessária. Simultaneamente, também, se pode discutir qual a melhor forma de visibilidade: uma visibilidade com referentes positivos e/ou uma visibilidade centrando-se numa realidade difícil para a comunidade. Ter referentes positivos é importante. Também a necessidade de educar para as adversidades que a comunidade atravessa. A complexidade reside no tratamento que se faz da visibilidade e no impacto que terá nas vivências LGBQIA+.

Nestes tempos recentes, mesmo com a crise pandémica, a comunicação social abordou frequentemente esta temática com ambas as visões. Dá visibilidade para as questões LGBTQIA+, mas, em contrapartida, também, usa linhas argumentativas que vão contra os direitos humanos fundamentais. Argumentos que passam pela referência à Ideologia de Género como uma teoria que está a ser imposta às crianças ou, até à afirmação de que as pessoas que fazem ativismo LGBTQIA+, nomeadamente, nas questões da identidade de género, estão a doutrinar para um pensamento totalitarista. Esta última tese também muito usada por um sector do feminismo bastante específico, o feminismo radical trans excludente (TERF’s). Movimento que se recusa a deixar os príncipios bio-essencialistas e ignora a construção da identidade de género dentro de uma matriz sócio-económico-política. Uma manipulação através de uma tática de alieniação e discurso populista. São feitas generalizações problemáticas usando como referência exemplos muito concretos e particulares para generalizar os comportamentos de uma comunidade tão diversificada.

Fora de Portugal, várias pessoas de diversos sectores, desde o desporto à música e ao cinema, ou até à política, falaram ou reafirmaram as suas identidades (seja orientação sexual ou identidade de género) procurando contruir um modelo de referentes positivos na sociedade. Por exemplo, em Setembro na capa da Vogue surge Ariel Nicholson, a sua primeira estrela de capa abertamente trans – seguindo os exemplos de Valentina Sampaio e Larverne Cox, as primeiras modelos trans nas capas da Vogue Paris e Vogue Britânica, respectivamente. Ou, como, Tamara Adrián, deputada na Assembleia Nacional da Venezuela, Petra De Sutter, vice primeira-ministra na Bélgica, Érika Hilton, vereadora na Câmara Municipal de São Paulo, apenas para referenciar alguns nomes. Em Portugal este processo é mais lento, pois ainda há um reduzido número de pessoas de referência que falam das suas identidades publicamente. Temos, por exemplo, Sara Tavares, cantora e compositora, que falou da sua bissexualidade e Paulo Rangel, advogado e político, que também anúnciou a sua homossexualidade. Ainda não é claro para muitas pessoas a importância que tem falar publicamente de se ser trans ou não-binário e/ou homossexual ou bissexual (entre outras identidades). Tão necessário, até para jovens que estão a encontrar-se e que, muitas vezes, crescem com o insulto. O isolamento social é consequência deste processo.

No entanto, falar abertamente sobre ser LGBTQIA+ ou apoiar a causa, nem sempre é um processo tranquilo. Por exemplo, os artistas que criaram o livro de comics, Superman: Son of Kal-El, onde o novo super-homem se revela bissexual, receberam protecção polícial depois de terem sido ameaçados de morte. Ou, como, na Hungria, que proibiu a divulgação de conteúdos sobre a temática LGBTQIA+ junto de menores de idade. Um pouco na mesma linha do que aconteceu na Polónia em 2020 com a criação de zonas “livres de LGBTQIA+”.

A visibilidade é um motor para um crescimento saudável. Porém, a generalidade das referências positivas encontram-se em torno de um sistema binário cis e hetero. Pode-se nomear vários exemplos, mas basta pensar na diversidade de vezes que pessoas cis e hetero referem indirectamente a sua identidade ou a orientação sexual por via dos seus hábitos de conversa diários. Este comportamento é resultado do privilégio cis-hetero-normativo – estas identidades (pessoas cis e hetero também têm identidade de género e orientação sexual) nunca são questionadas, invalidadas ou apagadas.

Sabemos, infelizmente, que cerca de 70 países ainda criminalizam a homossexualidade, nos quais 13 prevêem a pena de morte. Em Portugal, apesar de a homossexualidade ter sido discriminalizada e despatologizada, a violência simbólica, estrutural e sistemica ainda está muito presente nas nossas raízes sociais e culturais. Falando em mudanças mais recentes, apesar das pessoas trans terem, desde 2018, uma lei que lhes permite a sua identidade ser reconhecida pelo Estado, contínuam a ser vítimas do sistema de saúde e escolar, da justiça e da empregabilidade. Todas estas pessoas continuam continuamente a sofrer violação dos seus direitos mais fundamentais. É, por esta razão que é necessário criar visibilidade em torno de referentes positivos.

Quando nos referimos a representatividade e visibilidade estamos a procurar um conjunto de práticas sociais que permitam pessoas de determinada comunidade verem-se reflectivas de uma forma construtiva para o seu desenvolvimento pessoal. Em particular, a necessidade da comunidade LGBTQIA+ se ver reflectida nas diversas esferas da vida. Seja em casa, no trabalho, na escola, na saúde, na justiça, na política ou nos média. Lutar pela representatividade e visibilidade é configurar um mundo onde nós existimos. Lutar pela representatividade e visibilidade é reafirmar que a nossa orientação sexual e identidade de género não é uma vergonha nem um insulto. Lutar pela representatividade e visibilidade é recentrar o problema da cis-hetero-normatividade.

Não é rara a vez que pessoas LGBTQIA+ são acusadas de exibicionistas por falarem abertamente da sua identidade e/ou orientação. Porém, ninguém questiona a sociedade cis-hetero centrada em que vivemos e as suas consequências. Ninguém perde um emprego por ser cis e/ou hetero. Ninguém tem de esconder da família que é cis e/ou hetero. As evidências mostram que a comunidade LGBTQIA+ vive, na sua maoria, no isolamento, na vergonha e no insulto. Nós precisamos de orgulho e sororidade. Porque o nossos direitos fundamentais estão limitados por uma visão político-ideológica de que nós não devemos existir.

Podemos questionar a chamada Teoria da Ideologia de Género. O argumento comum é de que esta teoria, que é apenas isso (dizem), pretende ser usada par doutrinar as crianças de que podem ser o que querem, que podem escolher quem são e quem amam e que a família tradicional não é a única forma de compor família, mas que há mais formas possíveis. Na falta de ensino para a diversidade, não há ninguém a dizer que ser LGBTQIA+ não é errado, segue-se a solidão. As tecnologias de género asseguram que as pessoas devem ser e comportar-se de determinada forma pré-estabelecida e que devem constituir família de determinada forma. Estas formas de engenharia de género estabelece regras bastante rigídas para se existir no mundo.

Entender o contexto em que aparece esta suposta Ideologia de Género passa por compreender que essa “dita doutrinação” oculta uma forma de manter controladas e limitadas as dínâmicas entre pessoas, da sua experiência, da sua sexualidade e do seu futuro. É por isso que o ativismo LGBTQIA+ demonstra a necessidade de questionar esta ordem social e de criar políticas públicas concretas para salvaguardar todos os direitos das pessoas com diversidade sexual e identitária. Políticas essas que devem ser implementadas na saúde, no emprego, na escola, etc… Ainda há, sem dúvida, muito trabalho para fazer nos próximos anos, um deles trabalho fundamental. Somos um país que se recusa a olhar para dentro e fazer uma introspecção sobre a sua LGBTI+fobia internalizada e mesmo externalizada.

Num sentido mais lato, por falta de coerência e conhecimento e/ou vontade, a comunicação social provoca imensos danos quando retrata a comunidade. Desde a infantilização, da condescendência e da patologização, são várias as formas de nos colocar debaixo de escurtinio público. E, nos dias atuais, nomeadamente, com a comunidade trans. Quando apontamos para uma visibilidade positiva estamos a referir algo que temos em falta na comunicação social. Queremos vivências e agência das pessoas e não histórias contínuas de vitimização e exploração do nosso sofrimento. Isto demonstra como a sociedade é estruturalmente LGBTQIA+fóbica e por isso é importante recentrarmos identificar o centro da violência. Ou seja, deixar de falar só das vítimas. É preciso nomear aquilo que é um produto de uma sociedade capitalista patriarcal cis-heterosexista, é preciso falar da herança histórica e do apagamento continuado das nossas identidades.

Em suma, há uma responsabilidade social de nos devolver a voz a que temos direito, reconhecendo a nossa agência política e capacidade de falar sobre quem somos e sobre as nossas experiências diárias. Acredito que só assim será possível reestabelecer e contrariar a opressão vivida devido a estas tecnologias e engenharias de género. Só assim estamos a revolucionar os métodos e formas de criar conhecimento. Pessoas LGBTQIA+ não são teorias, são realidades e vivências concretas de pessoas que existem. É preciso e necessário criar espaços onde possamos também reenvindicar os nossos direitos, tão rapidamente distituidos pela falácia da Ideologia de Género. É preciso termos plataformas ao nosso alcance onde possamos falar das nossas experiências sem especialistas que nos colocam na posição do objeto de estudo e de exploração. É preciso dar condições às pessoas LGBTQIA+ para poderem participar de forma segura nas várias esferas da nossa sociedade. Nós não queremos apenas ver histórias de sofrimento sobre nós, queremos ver histórias de sucesso, de mudanças estruturais, de autonomia, de construção de comunidade, afectos. Independência… de esperança. Histórias que nos ajudaram a nos referenciar no mundo e a procurar um caminho melhor.

É por tudo isto que devemos repensar o que significa visibilidade, com o que nos comprometemos e com o que a sociedade se compromete. Temos ainda um caminho árduo pela frente – só conseguir contornar o atual comportamento da comunicação social é um desafio enorme, tendo em conta o atual panorama das plataformas de notícias. Por isso tão importante é, criar plataformas onde possamos colocar também as nossas visões e perpectivas. Plataformas essas que nos possam dar o direito de fala e resposta. Queremos mais visibilidade porque merecemos ter uma representatividade justa. Queremos que todas as pessoas possam crescer com referentes que lhes permitam sonhar com o futuro, ao contrário de ter medo dele.

Novamente, nós não somos teorias. Somos pessoas com vivências e experiências concretas. Somos realidades diversificadas e somos realidades únicas. Merecemos não ter medo de viver, não ter medo de sentir. Queremos um mundo que nos respeite. Queremos um mundo que não nos diga quem somos e que não nos coloque em caixas compartimentadas e delimitadas por padrões rígidos e na sua generalidade tóxicos. Somos mais.

 


Fotografia [em destaque] de  Sâmia Bomfim. Legenda: Érika Hilton,  vereadora na Câmara Municipal de São Paulo, na Marcha do Orgulho Trans de 2019.


Written by

Daniela Bento

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