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Lendo: Uma janela para a grande escassez

Uma janela para a grande escassez

Uma janela para a grande escassez


Texto publicado pelo El Salto em Dezembro de 2021, portanto, antes da invasão russa da Ucrânia, que nos pareceu importante traduzir para que as «culpas» da crise que vem não fiquem apenas nas costas da guerra. De forma a que se possa reflectir sem a névoa da informação parcial.


A escassez de matérias-primas e de energia que a economia global sofreu nos últimos meses é uma pequena amostra do que pode acontecer nos próximos anos se os padrões de consumo não forem alterados.

Primeiro foi o álcool-gel, as máscaras, os ventiladores e até, em alguns supermercados, o papel higiénico. Durante alguns meses, a população dos países mais desenvolvidos do mundo assistiu com admiração – com a mesma incredulidade com que assistia em directo à propagação de uma pandemia global que, nas sociedades de abundância, podiam faltar coisas – tal como assistira ao vivo à propagação de uma pandemia global.

À medida que a vida começava a normalizar-se, tornou-se cada vez mais evidente que algo tinha corrido mal na reinicialização da economia depois do abrandamento económico. A era da escassez não estava a terminar. Pelo contrário, acabara de começar.

Um ano depois do fim do confinamento mais duro e do reinício da actividade, a escassez e os problemas de abastecimento já estavam a afectar, em diferentes graus, todas as mercadorias e todos os sectores. Em Setembro de 2021, a escalada dos preços da energia iniciada antes do Verão adoptava a forma de apagões por toda a China e de encerramentos de fábricas nos EUA e na Europa. O aumento do preço da electricidade, gás, gasolina, gasóleo e carvão espalhou-se rapidamente por toda a economia e gerou taxas de inflação nunca vistas nos países ricos desde a última grande crise energética, nos anos 70.

A explicação oficial para este caos generalizado é o desfasamento entre a oferta e a procura, «estrangulamentos» de rápida recuperação, agravados pelas tensões geoestratégicas com a China, a Rússia ou a Argélia. De acordo com estas análises, trata-se de uma crise temporária que será resolvida numa questão de meses. No entanto, são cada vez mais vozes na comunidade científica que alertam para os aspectos estruturais por trás destas perturbações, curto-circuitos que não podem senão aumentar à medida que o crescimento exponencial do consumo colide com os limites físicos do planeta.

Venha ver: a grande carência

Em meados de Outubro, alguns indicadores começaram a mostrar que o pior já tinha passado, com descidas no preço do transporte marítimo e da madeira. No entanto, no fecho desta edição 1 , a crise energética continua a agravar-se e a falta de materiais básicos para o funcionamento da economia continua a ser um problema de primeira ordem. A indústria tecnológica prevê problemas no fornecimento de chips até 2023 e o encerramento das fábricas de fertilizantes põe em risco as colheitas de 2022. Ao mesmo tempo, a falta de matérias-primas vitais para a indústria global, tais como o magnésio, o papel ou o aço, entre uma longa lista, ainda não tem solução à vista.

As cenas de escassez continuarão em 2022 e tornar-se-ão cada vez mais comuns, defende Antonio Turiel, cientista do CSIC 2, numa conversa com El Salto. Mais de um ano após o início da recuperação económica, a desculpa dos «engarrafamentos» já não tem razão de ser, diz o investigador. Os curto-circuitos na economia global devem-se – continua – sobretudo a razões estruturais, especialmente a uma crise energética que já se arrasta há muito tempo e que veio para ficar.

Estamos à beira do que Turiel chama «a grande escassez», um processo que amplos sectores da comunidade científica documentam há décadas. «Atingimos o pico e, de agora em diante, o que nos espera é um processo de declínio que, em alguns pontos, será mais rápido, noutros mais lento, mas, em qualquer caso, é um declínio que irá durar muito tempo. Não é que os recursos se esgotem de hoje para amanhã, mas haverá cada vez menos e teremos de aprender a fazer as coisas com cada vez menos», diz o autor de Petrocalypsis (Alfabeto, 2020).

Um ponto de inflexão

Alicia Valero é investigadora na Universidade de Saragoça e directora do grupo de Ecologia Industrial no Instituto Circe. Escreveu mais de uma centena de publicações sobre o esgotamento dos recursos do planeta e também trabalha como consultora para várias empresas, incluindo a Seat, às quais dá assessoria sobre a disponibilidade de matérias-primas.

Durante anos, diz ao El Salto, falar sobre escassez de recursos era tabu, mas isso mudou no último ano, depois de as pessoas e muitos sectores económicos «terem experimentado a escassez em primeira mão». Para a co-autora de Thanatia, los límites minerales del planeta (Icaria, 2021), esta crise de materiais e fornecimentos é uma «janela» para um mundo em que «os problemas de escassez serão o pão nosso de cada dia».

Muitos dos problemas conjunturais irão desaparecer, argumenta, especialmente os causados por uma procura galopante e fábricas e cadeias logísticas limitadas. Mas a crise subjacente permanecerá: «Tal como as fábricas têm um limite, se extrapolarmos o problema para a grande fábrica que é a natureza, mais cedo ou mais tarde iremos deparar-nos com esses limites». E esses limites «estão muito próximos», se continuarmos com este «consumo exponencial».

Entre os muitos exemplos à mão, Valero fala sobre o cobre: nos últimos 20 anos foi extraído tanto deste material como em toda a história da humanidade. E o mesmo é verdade para todos e cada um dos elementos-chave da economia global: nas próximas décadas haverá problemas de fornecimento de crómio, germânio, estanho, cobalto, níquel, lítio, cádmio, gálio, índio, prata, platina, selénio, telúrio, titânio, vandânio, zinco ou dos 17 elementos das terras raras. Por outras palavras, as baterias de telemóveis e carros eléctricos, ecrãs tácteis e painéis fotovoltaicos, lâmpadas LED e semicondutores, ou seja, praticamente tudo o que é necessário para a revolução digital e verde depende de materiais finitos que, ao ritmo actual de consumo, não se pode garantir que sejam fornecidos na segunda metade do século. Ainda menos se as previsões se tornarem realidade e, dentro de 25 anos, o mundo consumir o dobro do que consome actualmente.

O grande problema, diz Valero, é que não existem reservas exploráveis suficientes e a abertura de uma nova jazida demora em média 16 anos. Além disso, existe uma grande dependência dos países que fornecem componentes e matérias-primas. Taiwan produz 90% dos chips mais avançados. As reservas de lítio – vital para baterias de todos os tipos – estão concentradas na Austrália e no triângulo do lítio, na América do Sul, embora seja a China que monopoliza a sua refinação. É também a China que controla 86% da produção de terras raras – imprescindíveis para os electrodomésticos, computadores, telemóveis e veículos – e controla uma proporção semelhante do magnésio, essencial para toda a indústria que utiliza alumínio. A decisão da China de deixar de exportar alguns destes materiais para garantir o fornecimento das suas próprias fábricas é a chave para compreender a actual crise de escassez.

«Estamos perto de atingir os limites geológicos do planeta. E não estou a dizer que esgotaremos todos os recursos, mas que estamos a esgotar os recursos acessíveis. Na prática, já extraímos o que é mais acessível e agora fala-se em ir para os oceanos, para a Amazónia, para a Antárctida… Mas a que preço?»

A crise de escassez de recursos corre paralelamente às duas outras grandes crises que o planeta enfrenta: as alterações climáticas e a perda de biodiversidade. «Temos um problema de alterações climáticas devido à sobre-exploração dos recursos fósseis e, se hoje há escassez de petróleo, é porque o consumimos de forma exagerada, e isto, por sua vez, causou os problemas que temos com as alterações climáticas», salienta Valero. O consumo exponencial de recursos naturais também levou à perda de biodiversidade com consequências tão graves como as crises de polinizadores ou a própria pandemia do coronavírus, causada, em última análise, pelo avanço da actividade humana sobre os ecossistemas naturais.

A mãe de todas as crises

Apesar do debate sobre a escassez de recursos ter entrado na agenda pública, Turiel reconhece que ainda existe «uma certa “maldição”», que condena quem aponta razões estruturais por detrás da crise de abastecimento. «Na comunidade científica, entre os investigadores que trabalham o tema dos recursos, esta é uma questão bem conhecida e bem discutida…. Mas, no debate público, é diferente. Quando se diz que não se pode continuar a aumentar o consumo de materiais e energia, entra-se em contradição com a ideia de manter um sistema económico baseado no crescimento contínuo», diz Turiel. «Se se aceitar que existe um problema de escassez, aceita-se que o capitalismo está a acabar e que há pessoas que podem perder muito dinheiro porque não vai haver investidores para os seus negócios», acrescenta.

De facto, é exactamente isto que tem acontecido com o petróleo desde antes da pandemia, especificamente desde 2014, quando a indústria desistiu de procurar novos poços de petróleo.

Já em 1998, os geólogos Colin Campbell e Jean Laherrere, num artigo publicado na revista Scientific American, justificavam com dados da indústria que o petróleo convencional, o que é mais fácil de extrair, o que tem maiores rendimentos energéticos, estava a esgotar-se a toda a velocidade. Ao mesmo tempo, o crude que ficou por explorar, o petróleo não convencional, o que está debaixo do mar, misturado em areias betuminosas, ou que tem de ser extraído por meio de injecção hidráulica poluente ou fracking, seria tão caro de extrair que, mais cedo ou mais tarde, haveria problemas de abastecimento.

E assim aconteceu, explica Turiel. Em 2005, o pico do petróleo convencional foi atingido ou, por outras palavras, em 2006, a humanidade começou a consumir a segunda metade das reservas mundiais do melhor petróleo. Entre 1998 e 2014, as companhias petrolíferas triplicaram os seus investimentos na procura de novas jazidas, mas obtiveram um «magro resultado»: nesse período, a produção cresceu apenas 26%. O que se seguiu era de esperar: reduziram o seu investimento em novas explorações em 60%. Algumas companhias petrolíferas, como a Repsol, abandonaram completamente a procura de novas jazidas. «O que se passa é que se cansaram de perder dinheiro», diz. Os efeitos deste desinvestimento significaram que, em 2018, se registou o pico na extracção de todos os tipos de petróleo. Na altura do fecho desta edição 3, o preço da gasolina e do gasóleo estava perto de ultrapassar o seu máximo histórico, atingido na crise de 2008.

Histórias e futuros semelhantes são repetidos em relação aos outros combustíveis fósseis. «Atingimos o pico da extracção de petróleo, carvão e urânio e, em breve, atingiremos o pico da extracção de gás. Considerando que estas quatro matérias-primas não renováveis fornecem quase 90% de toda a energia primária consumida no mundo, isto deixa-nos numa situação complicada. E não tem remédio», argumenta Turiel.

Para este doutorado em Física Teórica pela Universidade Autónoma de Madrid, ainda não existe tecnologia em cima da mesa que possa substituir os combustíveis fósseis. A revolução das energias renováveis, pelo menos tal como é actualmente concebida, vai contra os limites materiais do planeta e só poderia substituir parte da energia fóssil actualmente em uso. A prometida energia de fusão – a que alimenta as estrelas – é uma «experiência com um prazo de 35 anos que chega demasiado tarde». E as tentativas de ressuscitar a energia nuclear estão de novo a esbarrar com a realidade: as centrais são perigosas, caras, levam anos a construir, enfrentam uma enorme oposição pública e exigem um combustível fóssil, o urânio, cuja produção caiu 20% desde 2016.

Valero também identifica limites à anunciada transição ecológica: «O que não podemos fazer é continuar a crescer no consumo de energia e substituir os combustíveis fósseis por energias renováveis. Não há cobalto suficiente, não há lítio suficiente, não há telúrio suficiente, e assim por diante. Vai ser impossível pintar a economia actual de verde».

Mas nem tudo são más notícias. A grande escassez é «inevitável», mas, pelo menos de acordo com Antonio Turiel e Alicia Valero, não está escrito na pedra como a história termina. A forma como os governos e os cidadãos lidam com este novo desafio determinará se este declínio levará a um colapso do sistema ou a um reajustamento dos padrões de consumo que nos permita viver dentro dos limites físicos do planeta.

Decresçamos!

As guerras por recursos, a perda de população ou de interligação, a fome e a ascensão de soluções autoritárias, entre um largo leque de possibilidades que poderiam provocar o colapso, são evitáveis. O que não é evitável, afirma Turiel, é o decrescimento.

Todas os caminhos levam ao decrescimento, argumentam tanto Turiel como Valero. A diferença «é se se pilota o processo ou não», diz o primeiro. «Ou o fazemos a bem ou, no final, os limites físicos forçar-nos-ão a recuar pelo caminho mais difícil», afirma a segunda.

«Com o conhecimento científico e técnico que temos hoje, podemos garantir um nível de vida igual ao actual, ou mesmo superior, consumindo muito menos energia e muito menos materiais», argumenta o cientista do CSIC. Embora nem todos os países ou todos os sectores sociais devam decrescer ao mesmo ritmo, acrescenta. De acordo com a Oxfam, 1% da população mundial é responsável por 16% das emissões globais.

No entanto, para Turiel, o caminho está longe de ser claro e o problema é social e cultural: «Nada é concebido fora do capitalismo. As pessoas pensam que o fim do capitalismo é o fim do mundo, mas isso não é verdade. O capitalismo só existe há dois séculos e o que tem de ser feito é ultrapassar esta etapa».

O autor de Petrocalypsis compara o capitalismo à adolescência da humanidade. «Estamos a ter uma adolescência difícil, um período de crescimento rápido. Mas o que temos de fazer é amadurecer e alcançar uma situação de equilíbrio com a natureza. Podemos continuar a viver neste planeta se o fizermos com base no que pode ser regenerado todos os anos, de uma forma verdadeiramente sustentável». Os três grandes desafios que a humanidade e o planeta enfrentam passam todos pelo mesmo gargalo, o decrescimento. «O decrescimento é inevitável, mas estamos a tempo, podemos reagir, temos os conhecimentos para nos adaptarmos a ele». Como nos lembra Turiel, o colapso das civilizações «é sempre um dano auto-infligido». Seremos nós capazes de superar a adolescência da humanidade?

 


Texto de Martín Cúneo
Fotografia [em destaque] de David F. Sabadell


 

Notas:

  1. Este texto saiu na edição #56 (Dezembro 2021).
  2. Consejo Superior de Investigaciones Científicas – N.T.
  3. Este texto saiu na edição #56 (Dezembro 2021).

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Jornal Mapa

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