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Lendo: Fragmentos de um antropólogo anarquista

Fragmentos de um antropólogo anarquista

Fragmentos de um antropólogo anarquista


Quando a administração colonial francesa chegou a Madagáscar no século XIX, dividiu a população em «tribos»: entre elas estavam os Tsimihety, que recusavam aliar-se a qualquer monarquia. Os Tsimihety mantiveram durante muito tempo a reputação de «mestres da evasão»: de cada vez que os colonos franceses enviavam delegações para contactá-los, encontravam aldeias completamente abandonadas – os Tsimihety tinham-se mudado. Uma outra «tribo», os Sakalava, fiéis à dinastia Maroantsetras, ignoravam os seus descendentes vivos e continuavam a adornar e reconstruir os túmulos dos antigos reis, «fossilizando» o poder e negando-o a quem pudesse exercê-lo em vida.

Este é um dos relatos que compõem Fragmentos de uma antropologia anarquista, uma publicação que reúne «pensamentos, esboços de potenciais teorias e pequenos manifestos», escritos por David Graeber. Graeber foi um antropólogo e professor, implicado no movimento Occupy Wall Street, aliado de processos revolucionários como o de Chiapas ou Rojava, e anarquista – embora recusasse o rótulo exótico de «antropólogo anarquista» nos meios universitários. Nesta publicação, Graeber pergunta: Porque não existe um corpo de antropologia anarquista? E porque há tão poucos anarquistas na academia?

Graeber foca-se numa questão de design: como é que as sociedades sem estado «desenham» o seu sistema de poder? E como é que esse desenho permite a recusa do estado?

Para responder a estas perguntas, Graeber começa por mapear o lugar da teoria anarquista na disciplina da antropologia. Claro que existe um corpo de teoria anarquista – Bakunin, Kropotkin, Goldman, de Cleyre – mas nenhuma corrente é representada através de um -ismo, à semelhança, por exemplo, do marxismo. O pensamento anarquista tem-se debruçado sobretudo sobre questões éticas da sua prática e pouco sobre definições conceptuais, como «mercadoria» ou «classe». Para além disso, as autoras e autores anarquistas não escrevem como quem inventa algo novo: os -ismos do pensamento anarquista são, por isso, criados a partir da prática: anarco-sindicalismo, anarco-comunismo, anarco-feminismo, e por aí fora.

Graeber relembra também alguns «clássicos» da antropologia que tiveram influência no pensamento anarquista. Por exemplo, o antropólogo francês Pierre Clastres que, através da documentação detalhada de povos amazónicos, em A sociedade contra o estado (1974), tornou evidente que a antropologia ocidental partia sempre do princípio que as sociedades sem estado não eram sociedades e que, portanto, não mereciam ser estudadas enquanto sistemas políticos. Graeber relembra também Marcel Mauss, antropólogo, fundador da «sociologia francesa» e autor da «teoria da dádiva» (1925), que foi uma das mais importantes críticas à disciplina da economia e ao argumento de que o dinheiro é necessário para resolver o «problema» da troca. Sobre a história do dinheiro, Graeber publicou, em 2011, um dos mais importantes trabalhos da antropologia contemporânea: Dívida: os primeiros 5.000 anos.

A proposta de Graeber para uma «antropologia anarquista» é, por isso, cuidadosa mas optimista. Reconhecendo o passado problemático da antropologia, aliada do processo de colonização, Graeber defende que nenhuma outra ciência social conhece tão bem sociedades sem estado e economias sem mercado. Na segunda parte da publicação, Graeber comenta excertos da «antropologia anarquista que quase já existe», a partir da pesquisa de várias autoras e autores, incluindo da sua própria pesquisa em Madagáscar. Graeber foca-se numa questão de design: como é que as sociedades sem estado «desenham» o seu sistema de poder? E como é que esse desenho permite a recusa do estado? Ao olhar para a «história moderna», e para os contextos insurreccionais onde estamos habituadas a falar de «teoria anarquista», as práticas «organizadas» que recusam o estado estão vivas: a acção directa, o consenso, a mediação. Graeber deixou-nos também trabalhos onde documentou detalhadamente estas práticas, como Acção directa: uma etnografia, um trabalho construído a partir da sua própria experiência nos Estados Unidos. David Graeber morreu em setembro de 2020.

 

Graeber

Fragments of an anarchist anthropology
David Graeber
Prickly Paradigm Press, 2004.

 


Fotografia [em destaque] de  Guido van Nispen [L1002830, CC BY 2.0], “David Graeber speaks at Maagdenhuis occupation, University of Amsterdam, 2015. To his left, political theorist Enzo Rossi.”


Artigo publicado no JornalMapa, edição #29, Dezembro 2020|Fevereiro 2021.


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Written by

Sandra Faustino

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