shop-cart

Lendo: Capoeira: a montanha pariu um rato

Capoeira: a montanha pariu um rato

Capoeira: a montanha pariu um rato


A bipolarização em torno da Capoeira, nas suas variantes Angola e Regional, adquiriu um novo ênfase com o processo de institucionalização em curso, iniciado em Portugal com a criação da Federação Portuguesa de Capoeira em 2010.

«O capoeira é um artista e um atleta, um jogador e um poeta.»
Dias Gomes

História

A Capoeira é um jogo atlético criado pelos escravos africanos no Brasil. A movimentação da Capoeira baseia-se na Ginga, de onde se soltam os golpes de ataque e defesa a par de alguns floreios acrobáticos. O ritual do Jogo da Capoeira é a Roda, onde, ao som dos berimbaus e instrumentos de percussão, se executam os movimentos entre dois jogadores.

A origem da palavra «Capoeira» é ainda controversa. A teoria mais aceite é a de que deriva do termo indígena brasileiro caá-puera, que significa «mato cortado». A partir do séc. XVIII, o termo Capoeiras serve para designar todo o conjunto de malfeitores e desordeiros que habitavam nas cidades e, já no séc. XIX, define-se como um jogo-luta praticado por vadios e malandros.

A sua história tem três períodos marcantes. No primeiro, que vai do séc. XVI ao fim do séc. XVIII, e que corresponde ao período da escravatura nas sanzalas e dos quilombos de negros fugitivos, o Jogo da Capoeira foi usado como técnica de resistência. Durante o segundo período, entre o séc. XVIII e o início do sec. XX, ou seja, o período do crescimento das cidades e da abolição da escravatura, a Capoeira era proibida. Desde então, está-se num período de legalização da prática capoeirística em espaços de treino (academias).

Concentrando-nos no período mais recente, foi concedida uma licença para treinar Capoeira a um mestre de nome Bimba, em 1937, em São Salvador da Bahia. Este feito foi o primeiro para a racionalização da Capoeira como modalidade desportiva. Bimba criou um sistema de luta que denominou Luta Regional Baiana e, para a admissão de alunos, exigia-lhes uma prova de que trabalhavam ou estudavam.

Quase em paralelo, no início dos anos 1940, o mestre Pastinha recriou uma Capoeira que considerava tradicional, de raízes africanas e que viria a ser chamada de Angola.

Dicotomia Angola/Regional

Estas duas variantes marcaram o desenvolvimento da arte e as diferenças entre elas abriram paixões que ainda perduram nos nossos dias: a Regional focando a luta e a Angola o ritual. A primeira considerada como uma desnaturalização da Capoeira antiga, em que a eficácia dos golpes se sobrepõe ao estímulo lúdico. A segunda como uma arte que cedeu ao turismo em apresentações folclóricas.

Modernidade e tradição são as palavras-chave desta dicotomia. Se, para o Estado brasileiro, havia que limpar o passado da arte como actividade de escravos e malandros, para um conjunto de pesquisadores mais intelectuais, havia que se manter o carácter puro, africano, que lhes parecia ameaçado e a desaparecer.

Na prática, a Regional joga-se com movimentos rápidos e acrobáticos, a Angola pelo solo, lentamente. As roupas usadas nos treinos e Rodas (o abadá) são diferentes: na Regional, de branco (e de pés descalços) e, na Angola, com roupa mais informal ou colorida (e com calçado). A posição dos instrumentos musicais (a bateria) é diferente: na Regional pode-se usar apenas três instrumentos e na Angola usam-se até sete.

Ressalve-se ainda a existência de um terceiro estilo, criado nos anos 1970: a Capoeira Contemporânea, que se expandiu pelo mundo através da Federação ABADÁ com o mestre Camisa. Neste estilo, mesclam-se a Angola e Regional, num jogo acrobático que se considera uma evolução da Capoeira.

A Capoeira em Portugal

Sabe-se, através dos arquivos da polícia do Rio de Janeiro (durante o séc. XIX), que diversos portugueses foram detidos aí como «capoeiras», pois, partilhando os mesmos locais de trabalho e de recreio, contactaram com os grupos organizados desta arte.

A Capoeira enquanto cultura e desporto existe em Portugal desde os finais dos anos 1980. Na actualidade, existem mais de 50 grupos para a sua prática e cerca de 100 professores e mestres, alguns já formados em território nacional. Todos os anos decorrem encontros, festivais e até competições desta arte. Oficialmente, a primeira associação para a prática de Capoeira foi legalizada em 1991 por mestre Magoo (o nome actual da associação é CapoeiraNagôPT) e ainda mantém as portas abertas.

Outros imigrantes brasileiros conhecedores desta arte se seguiram e a Capoeira, a técnica de luta mas também os seus rituais, cantos e fundamentos, permitiu a materialização de significados e interesses bem díspares, em alguns casos uma profissão e noutros a simples difusão cultural afro-brasileira.

Nos locais de treino, a hibridização linguística e cultural entre portugueses, brasileiros e luso-africanos convoca a criação e troca de identidades. A Capoeira, apropriada como prática lusófona, remete para o imaginário das culturas resultantes do Atlântico negro, do período colonialista.

Alguns estudos decolonialistas apontam que, em relação a África, Portugal ainda está numa fase de transição, já que o 25 de Abril e o fim das guerras coloniais ainda está presente. Também a chamada «lusofonia» é um termo polémico e o seu espaço no planeta, no advento da globalização, é comandado pela burocracia das elites dos países de expressão portuguesa.

Convém referir que a Capoeira se difundiu por toda a orbe terrestre, é reconhecida como património imaterial da humanidade e, hoje, é quase vulgar serem organizados encontros europeus, internacionais, norte-americanos, mundiais e, aí, a língua portuguesa e o Brasil são objecto de divulgação.

A Federação Portuguesa de Capoeira

A profissionalização e a intromissão do Estado português no Jogo da Capoeira começa em 2009, com a obrigação de os professores e mestres que não possuíssem formação superior em Educação Física se registarem no Instituto Português do Desporto e da Juventude. Mais tarde procedeu-se à criação de federações para a certificação dos capoeiristas.

Todo este processo de combate à informalidade – e pensado como moderno e civilizacional por parte de um único organismo que trará ao corpo de praticantes um saber e fazer mais homogéneos – foi algo que, no Brasil, não ocorreu: as diversas linguagens do corpo e espírito da Capoeira são materializadas numa diversidade de organizações.

Em 2014, o que é temido no Brasil concretiza-se em Portugal: a Federação Portuguesa de Capoeira consolida-se como órgão regulador da Capoeira neste país. Salienta-se o trabalho de mestre Corisco nesta federação, que se tornou, embora com tensões, na única entidade que confere legitimidade legal aos praticantes, jogadores e mestres do Jogo da Capoeira.

Esta decisão não foi consensual, principalmente entre as associações de Capoeira Angola, que não participam em competições e entendem esta arte prioritariamente como cultura.

Como alternativa, estabeleceu-se entre a comunidade capoeirística a criação de várias federações reconhecidas pelo Estado português.

O momento actual da institucionalização da Capoeira em Portugal apresenta-se contraditório, mas reforçou as ligações entre os professores e mestres de Capoeira, aumentou a capacidade organizativa das associações e obrigou ao diálogo com o Estado e o seu aparelho burocrático.

As actuais modificações institucionais envolvem a acepção da Capoeira como desporto. Um desporto onde se verificava um crescimento económico e que, por isso, mereceu a atenção do Estado e criou relações de poder entre os diversos intervenientes. No fundo, é um jogo com o sistema que abana a vivência dos seus praticantes, mas que deve ser relançado em direcções variadas para a sua própria sobrevivência. De forma a que os valores e fundamentos não possam ser impostos e a que seja encorajada a individualidade e a cooperação.
 

O autor destas linhas joga Capoeira há mais de 30 anos. Treinou com grupos de Regional, Angola e Contemporânea em Portugal. O seu apelido é Mutante.
 

Ilustraçōes de  Carybé (1911 – 1997)

Artigo publicado no JornalMapa, edição #31, Julho|Setembro 2021.


#capoeira #JogodaCapoeira #Angola #Regional #FederaçãoPortuguesadeCapoeira #luta #ritual #CapoeiraContemporânea #mapa31

 


Written by

Noe Alves

Show Conversation (0)

Bookmark this article

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

0 People Replies to “Capoeira: a montanha pariu um rato”