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Lendo: «Não se tratava de uma trafulhice retorcida, mas de fazer a resistência a um sistema ditatorial»

«Não se tratava de uma trafulhice retorcida, mas de fazer a resistência a um sistema ditatorial»

«Não se tratava de uma trafulhice retorcida, mas de fazer a resistência a um sistema ditatorial»


José Hipólito dos Santos, então refugiado político em Paris, recorreu a Adolfo Kaminsky entre 1969 e 1971. Até Kaminsky largar a falsificação, este forneceu-lhe passaportes, cartas de condução, bilhetes de identidade «portugueses» e um sem número de carimbos. Ainda se encontram em seu poder exemplares desses documentos.
Em Julho de 2020, Irene Hipólito dos Santos foi ao encontro do casal Leïla e Adolfo Kaminsky, em Paris, com a intenção de conhecer a relação que estabeleceram com José Hipólito dos Santos, seu pai, e com Portugal, com os movimentos de libertação de Angola e da Guiné-Bissau, e até o apoio a revolucionários brasileiros na época da ditadura. Voltariam a encontrar-se quando a filha, Sarah Kaminsky, quis indagar sobre o passado do pai. Aqui ficam, para já, extractos da entrevista que Irene Hipólito dos Santos realizou ao casal Kaminsky.

Adolfo – O que José (Hipólito dos Santos) tinha de bom era ser extremamente discreto. Ele não hesitava, quando tinha um compromisso, em deixar os seus documentos no meu laboratório e voltar a buscá-los mais tarde. Entre nós havia uma total confiança.

Como se constrói essa confiança ?
Adolfo – Pela regularidade, pelos pedidos, pelas urgências. A confiança era espontânea, mas constantemente posta à prova pela repetição dos pedidos e dos riscos. Conseguimos organizar um sistema com alguma ordem, agrupando os pedidos de acordo com as técnicas. Ao mesmo tempo, o seu pai fez uma formação técnica em fotogravura, impressão, etc., que não foi até ao fim porque, entretanto, parei minha actividade 1, criei uma família com Leïla e dediquei-me a ela. Com José [Hipólito dos Santos] tinha uma relação pessoal desprendida, de confiança total, que nunca foi traída. Estabelecemos um acordo de segurança que ele seguiu escrupulosamente.

Que acordo foi esse que estabeleceram?
Adolfo – Que a segurança geral era mais importante do que a segurança de uma única pessoa, que podia proceder de forma insegura. Não foi dito mas foi feito, não fazíamos discursos. Quando havia um encontro na rue des Jeûneurs, no meu laboratório, tudo tinha que ser feito de forma a que as pessoas acreditassem ser uma clientela habitual de fotografia, como as outras. A técnica devia esconder a política. O laboratório era um endereço parisiense neutro, sem rótulo político. No entanto, a razão de ser do laboratório era a luta do vosso país, a independência de cada país. Não havia razão para que um país fosse colonizado por outro.

Em que consistiu a formação que deu ao meu pai, José Hipólito dos Santos?
Adolfo – O conhecimento da fotogravura, o conhecimento das densidades do papel, das marcas de água… Vê-se nos [meus] arquivos, que [os documentos portugueses que ficaram] serviam para a formação. Também fizemos carimbos de relevo… Tudo foi passado em revista. Sei que, no final, quando tudo parou, ele tinha uma bagagem técnica excepcional. O objectivo não era apenas fazer documentos falsos, mas torná-los úteis. Não se tratava de uma trafulhice retorcida, mas de fazer a resistência a um sistema ditatorial. E ele tinha o sentido de organização. O principal não era uma ou outra técnica, era o espírito de resistência à ditadura, dar voz ao povo.

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Leila e Adolfo Kaminsky durante a sua estadia em Lisboa, em 2010.

O meu pai contou-me que eram necessários documentos para os desertores, pessoas que fugiam de Portugal por não quererem cumprir o serviço militar e, portanto, fazer a guerra. Mas também para aqueles que estavam na resistência, na criação de uma oposição que derrubou a ditadura.
Tenho a impressão de que ele se ocupou mais das pessoas ligadas à política e menos dos desertores. Lembra-se?
Adolfo – Sim, foi mesmo pela política, não havia outro interesse da sua parte. Resistência e política, com certeza.

Como entraram em contacto?
Adolfo – Foi ele que veio ter comigo. Primeiro, deu-me garantias sobre quem era, deu-me nomes e conhecimentos. Provavelmente fomos postos em contacto pelo George Matteï 2, que era o meu agente de ligação nessa época. Então, pediu a minha ajuda. Sabia o endereço do laboratório, vinha, entrava e sentava-se na sala de espera. Tinha prioridade sobre os clientes, claro. Mas os clientes serviam de proteção porque a clientela era real. Sentava-se à espera da sua vez com um jornal aberto, de forma a não se lhe ver o rosto [mostra a fotografia de um aprendiz de falsificador 3 na mesma posição]. Esta era a realidade. Foi uma relação positiva, de uma confiança que nunca foi defraudada.

Como é que ele participou na fabricação de documentos?
Adolfo
– O trabalho mais importante era o preenchimento. Existem as técnicas de reprodução, mas não é necessário reproduzir tudo. Como esses papéis existem, basta mudar o nome, a data, o local de residência, ou seja, apagar o que está escrito e colocar o que se deseja. É o mais comum. E as técnicas de descoloração e de recoloração eram as principais [tarefas de] fabricação. Não andávamos a imprimir um bilhete de identidade em 25 exemplares, ou 2000. Nós transformávamo-los. Eram documentos reais. Por exemplo, no meu bilhete de identidade, em vez de Adolfo Kaminsky, vou colocar o nome de Julien Legrand. Desta forma, não preciso de o fabricar. Na maior parte dos casos, basta alterar o nome e a fotografia. Para fazer isso, tem de se saber bem como apagar e recolorir. É uma técnica muito delicada. Além disso, o cartão tem um número de registo oficial, que obviamente é falso, mas que consta neste documento. São várias técnicas, efectuamos transformações de alto nível para resistir a todo um conjunto de situações e garantir o dia a dia, uma vida quotidiana com uma nova identidade: cartão da cantina, título de transporte, … Ou então, é necessário fazer uma pequena modificação num documento, suficiente para permitir uma passagem de fronteira.

Portanto, o meu pai encomendava-lhe documentos?
Adolfo
– Sim, ele trazia os pedidos e participava quando podia. Fazia-o sem reclamar, fazia o preenchimento. Teve formação em descoloração de tinta, pois essa era a minha especialidade, e ele fazia-a muito bem. Os papéis falsos não são tarefa fácil, há cinquenta detalhes em que não se pensa de imediato. A minha porta de entrada para os papéis falsos foi a tinturaria. O meu trabalho na tinturaria impulsionou em mim uma curiosidade que me facultou uma formação de base real em corantes. Alias, foi por essa razão que fui recrutado pela Resistência francesa, durante a ocupação alemã.

O Adolfo e o meu pai, Hipólito, criaram uma cumplicidade, um grande respeito, por uma causa que vos era comum. E formaram uma amizade, que começou nos anos 1970.
Adolfo
– Sim, uma amizade sem nome, porque tudo acontecia discretamente. Não era possível envolver um membro da família. Era ele e eu, não em sentido negativo, mas no respeito pela liberdade do outro. O menor erro seria um desastre criminoso, por isso, devíamos assumir, para nós mesmos e para os outros, uma responsabilidade real e profunda.

A sua filha Sarah disse-me que ainda tem em sua posse documentos portugueses?
Leïla
– Sim, sim, nós temo-los. Temos impressos de Portugal, da Grécia, mas não temos de outros países. Poucos documentos foram recuperados, o Adolfo esvaziou o laboratório antes de partir [para a Argélia]. Encontrámos restos do que ele deixou, mas não tudo. Tivemos muita sorte. É assim que temos alguns impressos portugueses.

Como os recuperou?
Leïla
– Primeiro, pelo gerente do laboratório que o guardou intacto, o que foi excepcional. E também na casa de uma amiga a quem o Adolfo deixou uma caixa de sapatos com uns passaportes e alguns papéis impressos. Na época, comprava-se um impresso de bilhete de identidade. Ele tinha fabricado esses impressos, fabricava os documentos, ficavam prontos para serem usados. Encontrámos a caixa de sapatos na casa desta amiga muito mais tarde, quando viemos para França. Tínhamos ido almoçar a casa dela e a certa altura ela disse: «Lembras-te de que me deixaste uma caixa de sapatos? Tenho-a aqui mas não sei o que contem.» Os seus filhos foram buscá-la e, juntos, descobrimos o que havia: passaportes, bilhetes de identidade, alguns papéis e selos. E, então, ela devolveu-nos a caixa.

O que aconteceu ao laboratório?
Adolfo
– Limpei-o quando decidi ir para a Argélia. Acabava com a fabricação dos papéis falsos. Dei uma mala grande ao Henri Curiel 4. Deixei-lhe uma mala grande, cheia de papel timbrado, mais um estojo para falsificações, para gravar carimbos, com bastante equipamento.

Como o estojo de falsificação que guardava o meu pai? Há um estojo de falsificação que se encontra no Centro de Documentação 25 de Abril. Ao que parece, veio de si.
Adolfo
– Haha (grande sorriso).

Leïla – Temos que ir vê-lo. Ele deixou o laboratório como estava, em França, e foi para a Argélia durante 10 anos. E, quando voltaste, o laboratório estava lá, intacto.

Adolfo – Sim, já que o gerente, Monsieur Petit, o manteve tal qual. Era um homem de extrema-direita, mas, como nunca falamos de política, ele pensava que eu era como ele. (risos) Foi muito engraçado, quando saiu um artigo no jornal Minute para me denegrir: o «ex-membro da Resistência defende os argelinos contra nós, franceses». Era o período em que os franceses estavam a ir embora, os pieds noirs 5, e o meu gerente era pelos pieds noirs. Quando leu, ficou ultrajado. Mas não me aqueceu nem me arrefeceu (risos). Aliás, ainda tenho o jornal aqui em casa.

Como se conheceram, a Leïla e o Adolfo?
Leïla
– Quando conheci o Adolfo, ele trabalhava para o PAIGC [Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde]. Encontrámo-nos no aeroporto [de Argel], ele tinha lá levado uma delegação da Guiné-Bissau e eu acompanhava o grupo do MPLA [Movimento Popular de Libertação de Angola]. Eles apanharam o avião e encontrámo-nos lá.

Adolfo – Foi o Neto [Africano Neto, dirigente do MPLA] quem me pediu para vos trazer de volta, a ti e à tua mãe. Foi assim que nos conhecemos e marcámos um encontro para vires ver o laboratório extraordinário que montei na Argélia, não clandestino, para a reprodução de imagens gigantes, isto é, aquelas que se colocam nas vitrines. Ficava na Companhia Siderúrgica Nacional (SNS), onde eu trabalhava, e que usava para tudo. Com a serigrafia, criava cartazes e outro material de propaganda para os movimentos de libertação.

O que fazia para o MPLA?
Leïla
– Assistia às reuniões, ajudava quando era preciso. Traduzia documentos para inglês ou para o árabe.

carimbos

Positivo de selo branco fabricado por Adolfo Kaminsky.

Como entrou em contacto com os angolanos, com o MPLA?
Leïla
– Assisti a uma reunião onde fui levada por um amigo. Era estudante, solteira, queria descobrir o mundo. Lá, disseram-nos que precisavam de ajuda. A Argélia acabava de ganhar a independência e, enquanto estudantes, estávamos realmente prontos para apoiar. Eu aceitei. Havia, na altura, uma amiga que trabalhava para os Black Panthers 6. Estávamos impregnados por tudo aquilo. Fiquei no MPLA, porque havia muito que fazer.

No livro é mencionado o Luís Cabral, da Guiné-Bissau…
Leïla – Ia ser criada uma gráfica na Guiné-Bissau, ele [Adolfo] ia ocupar-se disso. Estava previsto irmos lá logo em 73, após a independência [declaração unilateral de independência pelo PAIGC, em setembro de 1973]. O Luís Cabral pediu-lhe que tratasse disso. Não pudemos ir, a nossa situação não nos permitiu ir [um acidente incapacitou Adolfo Kaminsky por um ano].

Em Argel estava outro guineense, José Araújo…
Leïla – Araújo! Foi o Araújo que levaste ao aeroporto. O Araújo e os outros foram embora, tu tinha-los acompanhado. Devíamos encontrar as fotografias, temos uma fotografia com a esposa do Araújo e todo o grupo da direção.

Que relações teve com o PAIGC?
Adolfo – Com o PAIGC, muito simpáticas. Eram normais, quer dizer, eu não estava em contacto com um PAIGC clandestino, mas com um PAICG reconhecido pela Argélia.

Leïla – Eram conviviais. Havia pedidos dos movimentos de libertação que estavam na Argélia; eles precisavam de comunicar entre si na Argélia mas também internacionalmente. Precisavam principalmente de artigos ou cartazes, para a propaganda. Era sobretudo nesse sentido.

No livro que fez com a sua filha Sarah mencionou brasileiros para quem também fez documentos.
Leïla – O elo com o Adolfo é Georges Mattei. Houve também a América do Sul, cujo agente de ligação era a Michèle Firk. Para o Brasil foi o Georges, que falava muito sobre a situação daquele pais. Quando voltámos da Argélia, ele continuava a falar muito sobre isso.

O que ficou do jovem tintureiro curioso, da criança, no falsificador altamente responsável? Gostou de fazer documentos falsos e de inventar máquinas?
Adolfo – Não particularmente, porque se travava sempre de uma questão de vida ou morte neste mundo. Todos os sucessos não eram de alegria, eram sobrevivência. Sabe, quando, aos 14 anos, já tem que enfrentar o racismo, quando lhe matam a sua mãe, a cabeça funciona de outra forma.

Como se sobrevive a essas emoções?
Adolfo – Salvando o maior número possível de pessoas… É uma fuga para a frente.

 


Texto de Irene Hipólito dos Santos e Fernando Silva
Fotografia [em destaque] Adolfo e Leila Kaminsky, em Argel.


Artigo publicado no JornalMapa, edição #31, Julho|Setembro 2021.


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Notas:

  1. No livro Adolfo Kaminsky, o falsificador, encontra-se a explicação em detalhe do abandono da actividade de falsificação.
  2. Georges Matteï, [jornalista e escritor, fundador da revista Partisans, que tinha cumprido o serviço militar na guerra da Argélia, onde testemunhou práticas de tortura e assassinatos por parte do exército francês, de que deixou relato nas páginas da revista Temps Modernes, edição imediatamente apreendida pelas autoridades francesas], substituiu Henri Curiel, depois da prisão deste, na coordenação da rede Solidarité, que apoiará nas duas décadas seguintes as causas pela libertação das colónias africanas, os movimentos revolucionários da América Latina e as organizações que lutavam conta as ditaduras da Grécia, Espanha e Portugal.
  3. A conversa foi, por momentos, acompanhada pelo comentário a fotografias suas, editadas no livro de fotografias Adolfo Kaminsky, Changer la donne (ed. Cent Mille Millards, 2019).
  4. Henri Curiel, egípcio, judeu e comunista que retoma a organização do apoio ao FLN, movimento de libertação da Argélia, após o desmantelamento da rede Jeanson.
  5. Literalmente «pés negros», equivalente aos «retornados» portugueses das ex-colónias, termo que identificava os franceses brancos que se fixaram na Argélia durante o tempo colonial.
  6. Black Panthers (Panteras Negras), organização criada nos anos sessenta nos EUA contra a opressão racial, o supremacismo branco e a violência policial. Reivindicavam, entre outros objectivos, a autodefesa por todos os meios contra os agressores, o direito à saúde, à educação, à habitação, ao trabalho, a liberdade dos negros e dos pobres injustamente encarcerados em condições desumanas e o fim da guerra no Vietname. Mumia Abu Jamal, actualmente a cumprir prisão perpétua depois de lhe ter sido comutada a pena de morte, foi militante dos Black Panthers na sua juventude.

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Jornal Mapa

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