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Lendo: Do Racismo à Portuguesa

Do Racismo à Portuguesa

Do Racismo à Portuguesa


«Serão desalienados os pretos e os brancos que se tiverem recusado a deixar-se encerrar na torre substancializada do Passado. Para muitos outros pretos a desalienação nascerá, por outro lado, da recusa de considerar a actualidade como definitiva.»
Frantz Fanon
 

Mais uma vez, a polémica sobre o racismo em Portugal tornou-se escaldante e transbordou para as ruas. O assassinato em Moscavide de Bruno Candé, com claros contornos racistas, foi o detonador.

Novamente veio ao cimo a polémica sobre a presença do racismo na sociedade portuguesa. Uma certa esquerda anti-racista afirma apaixonadamente que Portugal é racista, a extrema-direita responde furiosamente que não é. Entre estes dois pólos fica a maioria dos portugueses, que acham que não são racistas ou que vivem as suas vidas indiferentes a este tipo de polémicas, deixando escapar, uma vez ou outra, um comentário menos adequado, ou mais «politicamente incorrecto», como agora se diz.

No entanto, o problema sempre me pareceu mal colocado. Só por figura retórica se pode dizer que Portugal é, ou não é, racista. Portugal não é racista, nem anti-racista. Quem pode ser racista, ou anti-racista, são os portugueses e as portuguesas. Obviamente, também o Estado português pode ter políticas racistas, e teve-as no seu passado colonialista. Hoje, mesmo aos olhos de um libertário, não parece que o Estado português tenha políticas racistas, embora se mostre incapaz de resolver o problema de alguns quistos racistas nas suas forças policiais e nos serviços prisionais, ou de desenvolver políticas sociais que contribuam para uma vida digna das populações pobres, em particular dos imigrantes provenientes das antigas colónias e seus descendentes, mas também dos diferentes segmentos excluídos da nossa sociedade, na sua maioria, plebeus brancos.

Quanto aos portugueses, e portuguesas, haverá um número significativo que são racistas, desde logo, muitos dos ex-combatentes da Guerra Colonial que nunca ultrapassaram a sua doutrinação militar e os traumas de uma guerra de guerrilha em terra estranha, ou muitas das pessoas que vieram das colónias, numa fuga difícil, em resultado da independência destas. Mas, mesmo entre esses, todos sabemos que há muitos que nada têm que ver com o racismo, bem pelo contrário, serão até africanos saudosos. No entanto, não me parece que em Portugal a maioria das pessoas seja racista, mas esta opinião é tão subjectiva como a que afirme o contrário. Só um estudo sério e exaustivo o poderia determinar, e não é a partir de uma pesquisa, como a que andou pelos jornais nos últimos meses, do European Social Survey (ESS), assente numas poucas perguntas discutíveis, que se pode tirar uma conclusão. Até porque mesmo nesse inquérito há substanciais diferenças entre várias faixas etárias.

Portugal não é racista, nem anti-racista. Quem pode ser racista, ou anti-racista, são os portugueses e as portuguesas.

Seja, ou não, maioritário o racismo da população portuguesa, nunca poderíamos afirmar que os portugueses são racistas. Uma generalização insultuosa que coloca todos no mesmo saco com o argumento de um «racismo estrutural» que não sabemos como se articula com a culpa individual de cada um. Para muitos anti-racistas todos somos culpados ou cúmplices, no mínimo por omissão, havendo até uma pessoa bem-intencionada que escreveu na Internet que todos pusemos o dedo no gatilho da arma que matou Candé. Esta visão aplicada à realidade, ou à história, teria consequências desastrosas: todos seríamos responsáveis pela escravatura, pelos genocídios dos povos indígenas, pelo Holocausto, pelo Estalinismo, pelo Salazarismo e até por um violento agressor que vive incógnito no outro extremo do país. O resultado é claro: sendo todos responsáveis, não há ninguém, em particular, que o seja pessoalmente…

Esta retórica, se fosse só literária, não teria maiores consequências, mas ao que parece representa o pensamento efectivo de uma boa parte dessas pessoas. Sendo assim, é um erro de análise grave. Há muito que o próprio direito penal dos estados ultrapassou a ideia arcaica de uma culpa colectiva, de um grupo ou de uma comunidade, que permitia punir todo um grupo (família, tribo, aldeia, comunidade) pelos actos de um seu membro. Hoje a responsabilidade é individual, podendo ser criminalizados terceiros por cumplicidade com um delito, se ficar demonstrado que nele tiveram uma participação ou colaboração directa. Uma consequência desta visão da culpa colectiva é que empurra o cidadão comum para os braços da extrema-direita, ao sentir-se insultado por algo que pensa não corresponder à realidade. Essa é uma das explicações para o crescimento do Chega.

A ideia reaccionária da culpa colectiva resulta de uma visão judaico-cristã, ainda muito presente na sociedade portuguesa, que nos considera a todos portadores de um pecado original, mesmo que nunca tivéssemos partilhado do Paraíso com Adão e Eva.

A retórica de diversos movimentos identitários, ou mais precisamente de alguns dos seus participantes, por trás de uma aparente radicalidade, esconde a busca sectária do conflito permanente com todos os que são vistos como estranhos às suas causas, para não dizer exageradamente, com toda a sociedade vista como inimiga. O resultado é a incapacidade de propor plataformas comuns agregadoras para os diferentes grupos e classes sociais, na sua diversidade de género, de cultura e de cor, que partilham uma condição social de serem subalternos e sujeitos a injustiças, discriminações e processos de exploração e de dominação. Como escreveu João Bernardo, um crítico feroz do identitarismo, «Assim como o nacionalismo assumiu as formas mais extremas — e também mais delirantes — no racismo, em que numa dança de roda se passava dos aspectos culturais para os biológicos e dos biológicos para os culturais, também os identitarismos fazem o mesmo, tanto os de género como os de cor de pele ou de sexo ou de qualquer outra coisa.»

Essa é uma das explicações para a incapacidade nas últimas décadas de se reconstruir uma cultura de resistência dos «de baixo» retomando a tradição de solidariedade e internacionalismo das classes e grupos subalternos, reformulando um projecto comum para a mudança social cada vez mais imperiosa. Por isso estamos como estamos.

 


Texto de M. Ricardo de Sousa
Fotografia [em destaque] de Gabriel Bieco Garcia


Artigo publicado no JornalMapa, edição #28, Novembro 2019|Janeiro 2020.


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