Desculpa, mas não encontramos nada.
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Lendo: A Europa do arame farpado
De acordo com as palavras do ministro polaco da Defesa, Mariusz Blaszczak, em conferência de imprensa de 23 de Agosto, a fortificação fronteiriça não se ficará por aqui, uma vez que também «é necessário aumentar o número de soldados… em breve, iremos duplicar o número de soldados para dois mil».
Para este governante, os fluxos de migrantes com que o país se vê neste momento confrontado são «um ataque à Polónia», chegando a afirmar tratar-se de uma «tentativa de espoletar uma crise de migrantes», ao mesmo tempo que mostrava fotografias de uma vedação de arame farpado com cerca de 100 kms que a Polónia ergueu nas últimas semanas.
A retórica do governo polaco passa por classificar as cerca de 2100 pessoas que tentaram entrar na Polónia através da Bielorrússia nos últimos meses como «migrantes económicos impulsionados pelo governo bielorrusso», no que seria uma resposta coordenada de Putin e Lukashenko às sanções da UE.
Se, por um lado, de acordo com o (polaco) Grupo pelos Direitos das Minorias, é verdade que houve pessoas atraídas e empurradas para a fronteira pelas forças armadas bielorrussas, que disparavam para o ar enquanto caminhavam, por outro, não parece ser mentira que muitas dessas pessoas foram empurradas por soldados polacos de volta para a Bielorrússia, em vez de terem tido a possibilidade de preencher pedidos de asilo.
«As pessoas estavam a pedir protecção aos guardas fronteiriços [polacos] e eles estavam a empurrá-las de volta», afirmou à Reuters Piotr Bystrianin, da Fundação Ocalenie, uma ONG polaca que dá apoio a a refugiados. «Isto quer dizer que entraram em contacto e isso quer dizer que lhes deveria ter sido dada a possibilidade de pedirem protecção… é muito simples», acrescentou.
A Bielorrússia estará também a expulsar refugiados em números elevados para a Lituânia e a Letónia. No mesmo dia 23 de Agosto, estes países, com a Polónia, emitiram uma declaração conjunta onde afirmavam que «a utilização de imigrantes para desestabilizar países vizinhos constitui uma violação clara da lei internacional e configura um ataque híbrido contra… a Lituânia, a Letónia, a Polónia e, como tal, contra toda a União Europeia».
Uma declaração de carácter militar que pura e simplesmente ignora os milhares de pessoas que são apanhadas neste jogo do empurra em nome de interesses com os quais nada têm a ver. E, assim, dezenas de pessoas acabaram retidas durante várias semanas numa «terra de ninguém» entre os dois países, sem abrigo nem acesso a fornecimentos regulares de comida, numa situação que, nas palavras da Organização Internacional para as Migrações, «representa uma ameaça grave para as vidas dos migrantes». Posteriormente, a 1 de Setembro, a Polónia declarou um estado de emergência numa zona de 3 km de largura que engloba 183 cidades ao longo da fronteira com a Bielorrússia, dando às suas forças policiais mais poderes, de forma a que consigam, por qualquer meio, manter os migrantes fora do seu território. «Não se poderão organizar viagens, happenings ou manifestações nesta zona», afirmou Mariusz Kamiński, ministro polaco da Administração Interna, numa referência pouco velada à recente presença na área de ONG de apoio a refugiados.
A UE, sempre tão célere a instaurar processos a Estados membros por toda e qualquer razão, fecha aqui os olhos e permite o pulular de muros anti-refugiados nas suas fronteiras externas, garantindo finalmente uma imagem gráfica concreta que corresponde ao seu carácter de fortaleza. A Lituânia também está a construir o seu muro de 3 metros de altura e 508 kms de comprimento na fronteira com a Bielorrússia, uma barreira que deverá estar concluída em Setembro de 2022. Para esta empreitada, o governo lituano está à espera de apoios comunitários, uma vez que, de acordo com a primeiro ministro Ingrida Simonyte, «uma barreira física é vital para repelir este ataque híbrido».
Esta súbita «febre dos muros» começou na Grécia, que informou, há algumas semanas, que tinha acabado uma vedação de 40 kms na fronteira com a Turquia para repelir eventuais refugiados afegãos. E alastrou para fora das fronteiras da UE, ainda que não da NATO: a Turquia iniciou a construção de um outro muro de cimento de 3 metros de altura e 241 kms de comprimento na fronteira com o Irão exactamente com o mesmo argumento. A Croácia, que já erguera uma vedação na fronteira com a Sérvia em 2016, enfrenta agora acusações de que a sua polícia, entre 6 e 29 de Agosto, roubou e empurrou para a Bósnia dezenas de refugiados afegãos, de acordo com testemunhos recolhidos pelo Guardian e ainda de acordo com um relatório da ONG Danish Refugee Council (DRC). Tudo isto transforma a UE num cenário surreal – mas lógico em capitalismo – de um território rico e poderoso que, ao invés de defender os que têm pouco ou nada, se defende deles.
Na realidade, aquilo para que a UE se está a preparar não é para garantir a dignidade, a vida e os direitos de quem quer sair do Afeganistão, mas antes para se unir em torno da ideia de não deixar que cheguem à Europa. «A UE e os seus Estados membro mantêm-se determinados a agir em conjunto de forma a evitar a recorrência de movimentos migratórios de larga escala e ilegais que enfrentámos no passado» era o que se podia ler no rascunho de uma declaração dos ministros da Administração Interna da UE (a que o site euobserver.com teve acesso), na sequência de uma reunião de emergência que decorreu a 31 de Agosto, exactamente o mesmo dia em que as tropas ocidentais abandonavam o território afegão, ao fim de 20 anos de presença.
Nesta reunião do dia 31 de Agosto, Jean Asselborn, ministro da Administração Interna do Luxemburgo, tentou quebrar o consenso, afirmando que a UE deveria receber refugiados afegãos. «O objectivo principal tem de ser o de apoiar pessoas que estão em perigo de morte… não proteger as fronteiras», afirmou, acrescentado que «em 2015, com crise Síria [de migração], a UE enfrentou um problema e não estava preparada para ele. Isto é claro. Seis anos mais tarde, ainda estamos menos preparados do que em 2015». A Alemanha, que muita gente vê ainda como a campeã da ajuda a refugiados, reagiu de imediato através do seu próprio ministro da Administração Interna, Horst Seehofer, dizendo que «não estamos a falar de centenas de pessoas, mas de muitos milhares que já estão na Alemanha, e temos de ter a certeza… de que estas pessoas não são um risco de segurança».
Ainda nessa reunião, a Irlanda pediu que a UE suavizasse os termos da declaração final, falando de migração «irregular» em vez de estigmatizar os requerentes de asilo como sendo «ilegais». Ainda assim, o texto final do comunicado usa a palavra «ilegal», ao mesmo tempo que coloca um foco cada vez mais forte nos receios quanto à segurança… europeia. No sentido oposto, a Polónia e os países bálticos pretendiam uma linguagem mais dura. E o texto final da reunião ministerial acabou por contemplar essa exigência, ao afirmar que a UE deve «responder a tentativas de instrumentalizar a migração ilegal… e outras ameaças híbridas», quase copiando as palavras da declaração conjunta da Polónia, Letónia e Lituânia de 23 de Agosto, que transforma os migrantes em armas dum alegado «ataque híbrido».
É apenas mais um episódio em que a ideia de Europa Fortaleza molda as políticas europeias. O orgulho e o preconceito presentes nos documentos sobre migrações e as referências a um «modo de vida europeu» são já uma mancha escura e arrepiante nas políticas europeias de fronteiras, de relações com o exterior, de segurança e de desenvolvimento. Agora, perante uma crise do tamanho da do Afeganistão, as preocupações sobre a «pressão migratória» não são mais do que uma piada reles sobre os infindáveis discursos à volta de valores e direitos humanos. Mesmo as aparentes e legítimas preocupações com as mulheres afegãs seriam mais credíveis se a Europa se preocupasse num grau semelhante com os largamente documentados abusos, violências e islamofobia que enfrentam as mulheres muçulmanas europeias.
Legenda da fotografia (em destaque): Mariusz Blaszczak em conferência de imprensa junto à fronteira com a Bielorrússia.
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